"Meu camarada" Mauri

O bom do Mauri era a sua transparência. Nem imagino qual poderia ser a cara do Mauri mentindo — acho que seu caráter o impedia de praticar tal fraqueza, tão humana e hoje corriqueira, a ponto de existirem — pasmem! — escolas superiores para graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado de mentirosos. Sou testemunha de que o Mauri não mentia. Ao menos para mim, nunca mentiu!

Outra coisa boa do Mauri era a sua tolerância, inclusive com os chatos. Nisso nós discordávamos, embora eu preferisse não expressar muito minhas contrariedades com a sua disposição de ouvir, sinceramente interessado, as cretinices de elementos de quase todas as colorações ideológicas. Talvez ele respeitasse a humanidade dessas pessoas, mais do que eu sempre fui capaz.

A terceira qualidade do Mauri era a afabilidade. Ela se revelava no sorriso aberto e sincero, nos gestos largos e envolventes, nas palavras sempre solidárias. Encontrá-lo era um conforto.

Ah, sim: dos oito ou nove sujeitos realmente inteligentes que eu conheci, o Mauri foi de fato um hors-concours. Talvez porque com ele tenha convivido por mais tempo e enfrentado paradas desafiadoras, como aquele dia, nos anos setenta, em que quase morremos arrastados pela correnteza de uma bela praia do Litoral Norte paulista.

As experiências de quase morte aproximam (ou afastam) as pessoas, fazendo-nos respeitá-las mais, quem sabe? O fato é que o cara era inteligente. Tranquilamente inteligente. Despretensiosamente inteligente. Ciente disto.

Falei hoje pela manhã com sua companheira Heloísa. Contou-me que, apesar da pressão altíssima que vinha enfrentando nos últimos tempos, nesse final de semana fatídico ele estava feliz, cercado pela família, em confraternização. O ataque foi fulminante. Morreu nos braços do filho Daniel.

Para não dizer que meu amigo era perfeito, tenho a declarar que ver o Mauri insistindo em tocar violão, até os dedos sangrarem, e apesar de sangrarem, era uma visão perturbadora e reveladora de quem, afinal, se tratava o sujeito. Neste ponto exato tinha início a nossa única e verdadeira discordância, nunca claramente explicitada, porque, afinal, de quê adiantaria? Eu não ia mudá-lo, nem ele a mim!

Tal senão era o elã, digamos, panfletário da personalidade do meu amigo. Viver para ele era uma causa. Seus atos pessoais, familiares, sociais, profissionais decorriam desse comprometimento íntimo e total com as coisas em que ele acreditava. Evoé, Mauri! Não me cabe, aqui, contraditá-lo. Ao meu modo lhe fui solidário. E um inquestionável amigo. Disto me orgulho. Adeus, Carlos Mauri Alexandrino, 65 anos.

Texto produzido em 6/11/2017