Retomando uma velha obsessão

Como é possível, hoje em dia, uma pessoa se julgar inteligente, culta, intelectualmente independente, e ainda assim deixar de questionar os fundamentos de teorias formuladas há um século e meio, por exemplo?

Isso é medo de ir contra o pensamento dominante? É ignorância? Ou é apenas comodismo, opção por deixar pra lá, fazer de conta que está tudo certo, que chegamos até aqui do jeito que vinha sendo, pra quê mexer?

Não sei quais sentimentos sustentam esse faz de conta intelectual de que estaria tudo bem, tudo estaria resolvido e decodificado. O que sei é que isso me incomoda, e muito. Desde o início da minha idade adulta, e já lá se vão mais de cinquenta anos, tenho me insurgido (intimamente, ao menos) contra a aceitação passiva das bases do Comunismo, as quais estabelecem o início do gregarismo como o ponto de partida da História do homem. Toda a teoria proposta por Marx-Engels, até onde pude compreender, funda-se nesse alicerce.

Digo, desde já, que reconheço e me rendo à força dos argumentos lançados por esses impressionantes pensadores, admitindo o acerto de suas análises e diagnósticos históricos, econômicos e sociais, bem como a validade incontestável de suas principais teses, dentre elas a da 'luta de classes'.

Sim, a nossa civilização foi erguida sobre os escombros e os cadáveres de renovadas lutas de classes. E nunca parou de ser assim, até hoje, sofisticando-se à medida que novas tecnologias se impunham, em especial as voltadas à produção, ao transporte de pessoas e mercadorias, às comunicações interpessoais. Mudou e muda, mas apenas e tão-somente na aparência, resistindo ao fundo da cena social a velha, sabida e execrável exploração do homem pelo homem.

Até aqui estamos de acordo. Eu também me revolto contra isso. O que não está bem e, nesse sentido, julgo ser o maior entrave a que conquistemos o ideal proposto --- qual seja, a eliminação de todas as classes e o império do homem como dono e senhor de seu destino ---, o que me parece ser o maior impedimento a que isso venha a ocorrer é justamente o fato de que o agente e a síntese desse processo dialético é o próprio homem, com seus (nossos) medos, inseguranças, imperfeições.

Com as fraquezas inerentes à sua (nossa) humanidade mesma. Esta que não nasceu com o gregarismo e com as primeiras relações de produção, mas que vem se constituindo desde os primórdios da espécie, em sua (nossa) luta contra as forças da Natureza e na paulatina construção de linguagens, molas propulsoras dos mecanismos psíquicos que capacitaram o ser original (a espécie que nos originou), impulsionando-o à superação paulatina de seus infortúnios.

Sem aceitar a fragilidade psíquica desse agente e sem formular soluções capazes de superar tamanho obstáculo, o que nos restará sempre, ao fim e ao cabo, será a renovada frustração há muito personificada pela mitologia grega na figura de Sísifo, condenado a empurrar eternamente uma pedra até o topo de uma montanha, sem sucesso.

Aceita essa óbvia fragilidade, o caminho que nos resta, enquanto seres pensantes neste planeta, é a construção de uma nova prática educativa; uma que se destine a promover a maioridade da espécie e seja capaz de realizar a ideia do homem em paz com seus semelhantes e todos em harmonia com a Natureza.

Minhas premissas, meus dogmas

O mal dos formuladores de teorias — dentre os quais me incluo, naturalmente — é que eles passam a acreditar cegamente em suas premissas, transformando-as em dogmas.

Isso é natural e compreensível. Afinal, os pontos de partida constituem os alicerces de toda tese e há mesmo que defendê-los, sob pena de vermos a sua ruína ou o desmerecimento de sua pretensa originalidade, ao menos.

Para mim, por exemplo, não é correto afirmar que a conformação da absurda, criminosa desigualdade social brasileira seja fruto exclusivo de fatores nativos, isto é, das relações que aqui se desenvolveram ao longo dos 500 e tantos anos desta nossa existência como colônia e depois país.

Os seres vindos da Europa, da África — e, tantos anos antes, da Ásia, da Oceania e sabe-se lá de onde mais —, que aqui construíram uma nação, não o fizeram senão a partir da formação cultural, política, religiosa e social adquiridas em suas terras de origem.

Nós, brasileiros, somos consequência dos povos que nos deram origem e das nossas relações e vivências desenvolvidas desde que passamos a construir a nossa própria história. Não é, sequer, razoável dizer que somos o que somos porque, em determinado momento, um grupo de intelectuais quis que nós pensássemos que assim somos.

Como também não me parece aceitável afirmar, peremptoriamente — e a partir disso construir um sistema inteiro de pensamento —, que a complexidade da sociedade humana, como hoje a conhecemos, nasceu e decorre única e exclusivamente das relações estabelecidas quando o homem deixou a condição de nômade, caçador, coletor, e passou à de sedentário, produtor, proprietário.

Por mais que tal construção (premissa) faça sentido histórico e tenha sustentado, com méritos incontestáveis, o desenvolvimento de um arcabouço ideológico e as práticas dele decorrentes, isto não autoriza a ninguém concluir que este seja o caminho adequado e definitivo para a compreensão inteira da realidade e a determinação do processo que nos levará a um real avanço civilizatório.

O enigma por trás da falência do nosso modelo de civilização está longe de ser desvendado. Isto salta aos olhos, ainda mais hoje, quando vemos o aprofundamento dos conhecimentos em torno da formação genética e da psiquê humanas.

Agora mesmo, revelou-se que cientistas do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolucionária, em Leipzig, Alemanha, e do Instituto Karolinska, em Estocolmo, Suécia, conseguiram genomas de alta qualidade a partir de material de neandertais (que viveram no período paleolítico, entre 30 mil e 300 mil anos atrás) obtido em cavernas na Croácia e Rússia. Esse estudo revelou que "uma variação do DNA neandertal, envolvido no controle dos impulsos dos nervos, pode ser responsável por fazer os ditos ancestrais dos homens mais propícios a sentir dor".

De acordo com os cientistas, "pelo menos 0,4% dos participantes de um banco biológico do Reino Unido, com 500 mil genomas britânicos modernos, carregam o gene neandertal mutante. Em tais pessoas, o gene cria uma proteína responsável pela duração dos sinais de dor enviados ao cérebro e à medula espinhal". Ou seja, isso explicaria porque algumas pessoas sentem mais dor do que outras.

Assim, ao contrário das premissas que sustentam as teses acima (1 - Irrelevância das raízes culturais, políticas, religiosas dos povos que originaram o Brasil para explicar as relações de desigualdade predominantes hoje em nosso pais; e 2 - Determinação das relações baseadas na produção como fundamentos irrecorríveis da construção desta nossa civilização), a minha teoria, como se percebe, aponta para a relevância incontornável do fator humano; aponta para o mistério que constitui este individuo que é, sim, o sujeito da História, mas que também é seu paciente. Errático, inseguro, amedrontado paciente.