O dever de ser humano

A luta é em prol da disseminação do humanismo, aquilo que de melhor foi inventado, até este momento, no plano das relações que se desenvolvem entre os seres desta espécie que, com suas escolhas, domina as ações na casca deste planeta.

Radicalmente humano, atuo em favor do compartilhamento igualitário das benesses da existência, pois não ignoro que o humanismo radical implica, igualmente, o direito de cada um construir sua jornada. E mais do que o direito: o dever de fazê-lo. 

O primeiro passo, portanto, é enfrentar a relação direito plus dever. Possuir o direito é uma assertiva quase tão antiga quanto a aquisição de competência cognitiva pela nossa espécie, ou dela decorrente.

Sua apropriação gradativamente mais ampla, no entanto, tem origem na Renascença (1300-1600), ganhando força a partir da Declaração do Homem e do Cidadão (1789, pós Revolução Francesa) e popularizando-se com Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), graças ao advento dos meios de comunicação de massas (rádio e tv).

Nesse segundo momento (1948), nós, potenciais detentores dos direitos, logo viemos a saber que se tratavam, em verdade, de belas palavras lançadas num papel em branco, como sói acontecer no que diz respeito a tudo o que se pactuou pós II Guerra Mundial.

Vem daqueles anos — sob influência das formulações de Albert Einstein, no campo da Física  a compreensão de que a ideia e a prática da relatividade se aplicavam com perfeição à esfera social, em particular aos pactos e compromissos. 

Ainda assim, as belas palavras estavam lá, a enfeitar o papel e a servir de inspiração teórica e desejável, passível de ser perseguida pelas gerações seguintes. E esta é a condição do direito, inclusive o de cada um construir seu caminho. Já com respeito ao dever de fazê-lo, este, sim, é um capítulo novo da nossa História.

Embora pareça contraditório, o dever é uma propriedade do direito, ou a consequência imediata de sua posse. Ou seja, possuir o direito implica necessariamente assumir o dever de exercê-lo. E não por um imperativo moral, mas essencialmente por consequência lógica (e talvez também ética), o que não quer dizer que essa relação indispensável seja compreendida, aceita e pacificamente exercitada pelas pessoas.

Este, exatamente, é o impasse civilizatório que nossa espécie precisa enfrentar nestes dias: Como praticar o dever de ser humano? A resposta a essa pergunta, que vem sendo construída desde Tales de Mileto (624-546 a.C.) e Confúcio (552-489 a.C.), passando pelos Existencialistas nos séculos XIX e XX, hoje nos parece evidente: É preciso termos plena consciência do nosso lugar no cosmo.

A dívida que o nosso modelo de civilização carrega, e que nos trouxe ao desastre do presente, é a de não ter cuidado desde o início (ao menos com a visão que se fazia necessária) daquilo que se apresentava como essencial: o debate aberto em busca do lugar ocupado por nossa espécie. Ao invés de enfrentar esse desafio, cuidou-se do caminho do prosseguimento, o caminho da luta pela sobrevivência.

Muitos haverão de afirmar que sobreviver era o que se impunha a todo instante, desde sempre, não restando àqueles seres já socializados espaço e tempo para reflexões cosmológicas. Mas isso não é de todo verdade. Houve, sim, quem refletisse sobre o homem e sua relação com demais entes da realidade; a história da Filosofia está aí para provar. O que não houve, por parte dos detentores do poder de determinar, foi a aceitação daquela essencialidade.

Por milênios erigimos uma civilização construída sobre as premissas de que o prosseguimento da vida era a missão que se impunha, atribuindo à existência o papel de coisa dada, fosse pelo acaso, fosse pelo desconhecido. E, no entanto, sempre estivemos nós aqui, depositados sobre a casca de um planeta, girando ciclicamente num grande espaço e deliberadamente impedidos de racionalizar nossa condição fundamental de existir.

Hoje, a comunicação humana retoma o clássico modelo das relações interpessoais, agora de modo integral e aberto. Integral porque abarca, ou tem o potencial de abarcar, todos os seres humanos que compartilham esta época; aberto porque se dá por intermédio de multiplataformas, incorporando todas as linguagens e mídias anteriormente estabelecidas, e ressignificando-as num novo patamar de interatividade.

É com esta inovadora realidade comunicacional, e por causa dela, de seu advento, que se renova a possibilidade de colocarmos em prática o nosso direito plus dever de atuarmos em favor do compartilhamento igualitário das benesses da existência.

O começo não está sendo fácil, pois o que prosperou foi a disseminação do ódio, como reação ao medo do novo/velho desconhecido. Mas, embora doloroso para os indivíduos e para a sociedade, o ódio tem alcance limitado, porque não constrói caminhos e não responde sequer à necessidade primordial de preservar a via da continuidade.

Outros lances estão sendo gestados. Há, sim, mais do que nunca, modos e meios de conciliar nossa espécie no rumo da tolerância, da integração dos diferentes e do fechamento, enfim, de mais um ciclo na espiral da História.         

O desafio da espécie está posto

Já aprendemos, ou deveríamos ter aprendido, que a grande História é um corpo de acontecimentos imbricados, manifestado nos ciclos de uma espiral. É difícil, exasperador até, nos conformarmos com as vicissitudes pessoais e/ou as violências sociais que esse paulatino e inexorável processo nos impõe.

A guisa de consolo, olhamos para acontecimentos passados, para aqueles fragmentos pretéritos que pensamos observar e interpretar, e deles extraímos lições, ensinamentos morais e, mais grave: conclusões desejosas de que, sim, teríamos a partir dali avançado mais um passo no caminho da civilização.

Normas, Códigos, Tratados foram elaborados e oralmente pregados, escritos e largamente difundidos, no esforço meritório de espalhar as boas novidades. Acreditava-se, acreditou-se, acredita-se que fé e obediência seriam os instrumentos (espiritual e mundano) suficientes e capazes de regular nossas ações ao longo desta jornada. 

Estamos, assim, sempre dispostos a julgar ser possível, estar ao nosso alcance a possibilidade de implementar outras práticas que, temos acreditado, sejam socialmente melhores, civilizatórias, sem atentarmos para a componente fundamental, a variável incontornável do processo construtivo dos ciclos históricos do passado, do presente e do futuro: a espécie humana.

A presença do fator humano na equação histórica não é uma constatação trivial, um ingrediente cuja dosagem se possa relativizar, conduzir pela fé ou obediência. Não, ela é básica e indomável. É a molécula constitutiva da sociedade, aquela que é intangível e na qual, como se um DNA (Ácido Desoxirribonucleico) fosse, encontram-se em permanente ebulição todas as nossas contradições emocionais.

É provável, quase certo, que esteja eu aqui apenas repetindo essa que me parece ser uma das verdades incontestáveis da construção da História. Muitos já disseram e provaram isto; outros tantos continuam dizendo e demonstrando. O polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), mesmo, cansou-se de expor este fato, apontando a contradição segurança x liberdade como as balizas delimitadoras (desculpem o pleonasmo) da nossa existência.

Quem empunha o timão da segurança e/ou da liberdade, senão o homem, nós mesmos? Não é preciso pensar muito para nos convencermos da responsabilidade que todos e cada um carrega, a partir dos atos que estamos a protagonizar nos instantes que compõem as nossas vidas, e que em seu conjunto constituem os ciclos daquela espiral.

Neste presente histórico, à contradição segurança x liberdade adicionou-se  e volto a recorrer a Bauman  a constatação da "modernidade líquida", onde nada se mantém por muito tempo e, pior, onde coisa alguma, inclusive e principalmente as relações humanas, almeja a durabilidade. Ser "líquido" é a opção desta nossa época. Ou seja, desta volta da velha espiral.

Apesar da oposição segurança x liberdade, que se projeta nos embates ideológicos e políticos, e nos conduz a renovados impasses; não obstante a liquidez da vida moderna, consubstanciada nos avanços científicos e traduzida nas facilicitações (tecnológicas) ilusórias do cotidiano; conquanto esses obstáculos da equação humana, o que ainda e sempre nos anima é a permanência nos elementos constitutivos da nossa espécie de uma segunda contradição: medo x ousadia.

É desse permanente tensionamento que derivaram, derivam e haverão de derivar outras, e sempre renovadas, tentativas de enfrentar o embate entre segurança x liberdade. O lance mais recente e duradouro nos foi dado por Marx-Engels, quando dissecaram e expuseram os termos das relações econômicas do homem social.

Por duvidarem de sua origem, ou por cautela, preferiram não incorporar o peso das contradições emocionais à sua (ainda assim) vitoriosa tese. Graças a essas mentes brilhantes, entendemos muito, hoje, de como as relações de exploração regulam a vida em sociedade e porque devemos combatê-las. Falta-nos dissecar e expor a gênese do medo. Para isso contamos com a ousadia.    

Enfim, o Filho do Povo venceu

Em 17 de abril de 2017 há mais de quatro anos atrás, portanto  publiquei aqui, neste blog-arquivo, o texto que segue, então sob o título "Por que temem Lula?":


Dizem que o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva ocupa um lugar destacado no imaginário social.

Que foi o melhor governante que este País já teve, muito além de Vargas, o "pai dos pobres", porque, junto com Dilma, proporcionou não apenas a ascensão social dos pobres (mais de 36 milhões saíram da miséria) e dos remediados (mais de 19 milhões de empregos gerados), além de ter aberto um leque de oportunidades e ganhos para os mais ricos (a começar pela ampliação do mercado interno de consumo, passando pela reativação das indústrias naval, da construção civil, etc. etc. etc. etc.).

Por que, então, todo esse ódio, essa fúria assassina contra Lula? Ao ponto de destruírem um país em apenas dois anos, apenas para que Lula e seu partido não continuassem a revolucionar por dentro o sistema podre que as oligarquias implantaram neste País, desde o Descobrimento? Ao ponto, como se verifica hoje, de colocarem em alto risco a sobrevivência da própria plutocracia?

Sim, Lula tem aquele lugar (precariamente descrito acima) no imaginário social.

Mas ele tem mais: além da admiração e reconhecimento aos seus feitos e aos de Dilma, sua sucessora, Lula desperta nas pessoas de todas as classes o medo atávico de se assumirem como seres humanos plenos, construtores de sua própria maioridade, no sentido apontado por Kant. É disso, em essência, que se trata: o ser humano Lula nos desafia porque descobriu/inventou o caminho da construção de sua emancipação.

Essa ousadia, radiofonizada, impressa, televisionada e virtualmente disseminada nos apavora, porque desafia cada um de nós a também descobrir/inventar nosso próprio e único caminho. E isto significa nos arrancar do conforto de uma vida quase contemplativa, dependente dos outros, seja esse outro um patrão, o Estado ou o sistema capitalista planetário, que, diga-se, está muito além daquilo que Marx-Engels um dia vislumbraram, pois também incorporou as experiências ditas socialistas inspiradas em suas pregações.

É complexo e simples, assim.

Ninguém quer ser igual ao Lula. Mas todos sabemos, intimamente, que o ser humano Lula, à moda de César, atravessou o Rubicão. Adentrou o âmago do grande segredo e, como tantos outros, expôs a simplicidade da árdua tarefa que está posta a cada um de nós desde o nascimento: avançar sempre.

Alguém deve saber definir um indivíduo deste tipo. Certamente não será a palavra herói, pois este habita outras esferas, enquanto Lula está aqui mesmo, entre nós, a nos provar todos os dias que suas deficiências e fraquezas não lhe servem de desculpas para se acomodar. Arrisco dizer que tal palavra é centrado.

Seres como o Lula têm um centro, uma convicção inarredável de que estão aqui a serviço do interesse geral. Não buscam aplausos, embora os recebam; não se vangloriam, embora pudessem; não se deixam paralisar diante do espelho, embora se vejam; não se intimidam, embora tantos obstáculos lhes sejam impostos.

É por isso que temem Lula.

Temem, mas dele precisam. Como estão desesperadamente precisando agora, depois que destruíram o Brasil.