O 'gambito' de Marx-Engels

Não é fácil organizar o circo produzido pelas ideias dadas por Marx-Engels, a partir de sua contestação a Hegel quanto ao papel da religião na organização social.

Ao invés da religião (deus) ser "a alienação da essência humana" — como dizia Hegel —, ou seja, uma criação ou projeção das qualidades idealizadas pelo homem, ao invés dessa visão dita idealista hegeliana, para Marx-Engels "a miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira miséria e o protesto contra esta verdadeira miséria; o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e o espírito de um mundo sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo".

Ou seja, a gênese das diversas formas da consciência de um povo, dentre as quais a religião (deus) "é explicada a partir das relações sociais".

OK, isto (relacionar as ideias com o processo histórico e, portanto, com as condições econômicas, sociais e, mais especificamente, com as classes sociais, conforme as concepções de Marx-Engels em 1844) serve para colocar de pé a tese fundamental da luta de classes, resultando no que se veio depois a conhecer como Marxismo (ou Materialismo Histório, ou Materialismo Dialético, ou Filosofia da Práxis), teoria explicitada no texto "A Ideologia Alemã", de 1846 (texto que só veio a ser conhecido nos anos 30 do século XX).

E de que forma Marx-Engels fazem isto?

O fazem realizando um — digamos assim —, 'gambito'. Ou seja, subtraem do jogo dialético uma peça chave, exatamente aquela que é paciente do que eles próprios denominam de "produção espiritual", subordinando essa "produção espiritual" à sociedade, ao conflito de classes e às condições econômicas de um povo.

Onde está o gambito, a artimanha, aqui?

Está exatamente na peça denominada "povo", o paciente da "produção espiritual", aquele ser onde ela primordialmente se dá.

É honestamente incontornável que a "produção espiritual" não tem origem coletiva, num "povo", portanto.

Ela se originou primeiro em indivíduos, isoladamente, antes de se consubstanciar em ideias, representações, conceitos, teorias, formas de consciências de um "povo".

E por que isto é importante nos dias absurdos em que estamos vivendo, com Trump lá e a Quadrilha de Temer aqui, coadjuvada por um parlamento corrupto, uma imprensa entreguista e um sistema de justiça acovardado e/ou vendido?

É importante porque precisamos entender e aceitar o fato de que a base da falência do nosso modelo de civilização não está nas relações sociais. O problema está no homem, nas raízes psíquicas de sua formação (ou da formação de sua "produção espiritual", se preferirem). O resto veio depois.

É preciso, portanto, trabalhar para romper os paradigmas que nos governam desde antes, muito antes, de a luta de classes ter sido formulada e apontada como a razão primeira dos nossos males.

A luta de classes, que é real, na realidade é consequência de um problema bem anterior e muito maior. O problema fundador da espécie é o nosso medo primitivo.

Texto produzido em 7/11/2017