Inútil mistério

Algumas perguntas precisam ser feitas: O livre arbítrio existe? Se existe, ele nos foi concedido, ou nós o inventamos como uma forma de justificação moral? Se foi concedido, ainda assim pode ser chamado de livre? Aquele ou Aquilo que nos concedeu não seria o verdadeiro senhor de nossas ações, pois, afinal, é quem nos proporciona recompensas ou impõe castigos, conforme os resultados de nossos atos? No caso do livre arbítrio ser uma concessão, qual o propósito de podermos tomar esta, ao invés daquela decisão, se elas estão previamente determinadas? Satisfazer desejos, atender expectativas, externar vã rebeldia contra quem ou o que nos concedeu tal faculdade? E se a decisão que tomarmos for bem-sucedida, isto quer dizer que o livre arbítrio funcionou, ou tal conclusão será apenas ilusória, pois tudo não terá passado de predeterminação?

Se o livre arbítrio é uma invenção da cognição humana, com que propósito o concebemos? Seria uma forma de nos resguardarmos quanto às responsabilidades éticas e morais de nossos atos? Uma defesa prévia autoindulgente e arrogante frente aos erros que cometemos? Ainda assim, de onde provém a capacidade cognitiva de nossa espécie? Ela própria é fruto do acaso, ou também se trata de um dom concedido? Se é um dom concedido, qual o propósito daquele ou daquilo que o concedeu, dar princípio a (mais) uma experiência cósmica? Se é uma construção fortuita, como a mente humana foi capaz de capturá-la? Tal capacidade (de captura) não nos teria sido igualmente concedida? E, repito, com qual propósito? Livre arbítrio e cognição operam em sintonia? É imperativo que estejamos no pleno domínio de nosso intelecto e emoções para tomarmos decisões arbitrariamente livres? Se isto for verdade, ainda podemos atribuir ao livre arbítrio aquelas decisões adotadas a partir de falsos ou imprecisos conhecimentos? Ou essas decisões potencialmente errôneas não seriam frutos de genuína irresponsabilidade intelectual? Se a cognição é um processo evolutivo, que se aprimora com o aprendizado e a elaboração de novos conhecimentos, é certo pensar que a nossa capacidade de exercitar o livre arbítrio, ancorada em conhecimentos verdadeiros e precisos, também é um processo em busca da excelência?

Esses são alguns dos questionamentos que que bem poderiam ocupar a mente do homem de hoje. Se eles são passíveis de serem formulados, graças aos recursos cognitivos que temos sido capazes de desenvolver ao longo da evolução de nossa espécie (tenham eles sido concedidos, ou não), também é possível que estejamos capacitados a respondê-los. Por mais incômodas ou surpreendentes que venham a ser as respostas.

Incômodas e surpreendentes porque poderemos vir a concluir que nossa existência é, de fato, uma concessão semeada ao acaso, sem qualquer expectativa do Todo que a concebeu e concede, mas (em tendo germinado, como nosso Concedente sabia que ocorreria, porque há sérias dúvidas se o acaso realmente exista) a ser realizada mediante estrita obediência às leis do Cosmo, conforme nos ensinou a sabedoria egípcia (3100 a 30 a.C., predecessora da filosofia grega, 2000 a 168 a.C.), que firmou estes sete princípios herméticos regentes de todas as coisas manifestadas:

Lei do Mentalismo (O Todo é Mente, o Universo é mental); da Correspondência (O que está em cima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora); da Vibração (Nada está parado, tudo se move, tudo vibra); da Polaridade (Tudo é duplo, tudo tem dois polos, tudo tem o seu oposto. O igual e o desigual são a mesma coisa. Os extremos se tocam. Todas as verdades são meias verdades. Todos os paradoxos podem ser reconciliáveis); do Ritmo (Tudo tem fluxo e refluxo, tudo tem suas marés, tudo sobe e desce, o ritmo é a compensação); do Gênero (O gênero está em tudo, tudo tem seus princípios masculino e feminino, o gênero se manifesta em todos os planos da criação); e de Causa e Efeito (Toda causa tem seu efeito, todo efeito tem sua causa; existem muitos planos de causalidade, mas nada escapa à Lei).

Ora, mas quem liga para princípios? Quem se submete a leis cósmicas? Assim, o livre arbítrio, concedido ou por nós inventado no bojo dos códigos de conduta de religiões oportunistas , ou fruto de nossa cognição, ela própria igualmente concedida ou inventada com o propósito de dissimular nossa incapacidade de apreender todas relações causais da realidade , ainda assim o livre arbítrio permanece um mistério incapaz de testemunhar em nosso favor. O que resta, no final, somos nós e nossas construções terrenas, precárias, arrogantes, imaturas, claudicantes, erráticas.

Nossa insólita corrida existencial

Na postagem anterior deixei no ar uma importante questão, a meu ver crucial para entendermos o mundo de sempre, mas, especialmente, o conturbado mundo de hoje: "Por que as pessoas são diferentes?". Para enfrentar essa pergunta, e suas implicações, recorro ao excelente apoio de textos do meu falecido amigo e mestre Cid Marcus.

Em duas publicações dedicadas ao "Prof. Bangalore Venkata Raman (1912-1998) mestre de Jyotish, autor de vários livros e editor do The Astrological Magazine", Cid expõe de forma detalhada a visão e a prática da Astrologia Hindu (Jyotish) — leia aqui:  "texto I" e "texto II" —, sob a ótica da relação "karma, dharma e reencarnação"

"As diferenças que encontramos entre as pessoas decorrem das suas respectivas ações passadas. Ações corretas, isto é, bom karma (*), leva a encarnações em níveis cada vez mais elevados. Más ações, ao contrário. Da sabedoria, ações sábias, resulta, pois, bem-estar, vida justa. Servidão e infelicidade resultarão de más ações. Assim, enquanto os karmas bons ou maus não forem esgotados não chegaremos a moksha, à emancipação, à libertação."

Segundo o hinduísmo, "nunca chegamos ao mundo em total estado de ignorância, em completa escuridão. (...) Cada ser, ao contrário do que comumente julgamos, nasce com certos desejos que estão associados ao que experimentou em vidas passadas. A alma migra com o chamado corpo astral (Sukshuma Sarira), a contraparte sutil do corpo físico, que carrega consigo impressões (samskaras) e tendências (vasanas) da alma individual".

Ou seja, a firmeza, insistência, teimosia, empatia, desprendimento, tolerância, tanto quanto a renúncia, desistência, complacência, obediência, indiferença, medo, que marcam a caminhada de cada um, estão de alguma forma preestabelecidos, roteirizados junto ao nosso DNA. Da mesma maneira que as nossas características físicas e condições mentais.

Noutra passagem esclarecedora, Cid relata que em vários textos hinduístas encontramos esta frase: "Nós não temos a liberdade de determinar o resultado das nossas ações; o que temos, sim, é a liberdade de determinar o curso delas" (Narma Svantatrya). Krishna, na Canção do Senhor, diz: "O problema está sempre na ação, não nos frutos". Compare (isso) — destaca ele "com a muito citada afirmação de Sartre (Jean-Paul, 1905-1980, filósofo do Existencialismo), de que só podemos nos escolher com relação à nossa maneira de ser e não com relação ao nosso ser".

Mais da Astrologia Hindu: "Tudo o que recai sobre nós de bom ou de mau é consequência de ações que praticamos. As consequências (de nossas ações) numa existência podem nela não ser experimentadas. Podemos até ter que esperar muito tempo, dizem certos mestres hindus, para experimentá-las. O certo, porém, é que sempre as experimentaremos, mais cedo ou mais tarde. A lógica da lei do karma é inflexível. Sempre seremos punidos ou recompensados, mesmo que não nos lembremos das ações praticadas. Por isso, os realmente hindus não se espantam quando veem alguém sofrer sem uma causa aparente ou presenciam o crime não punido".

Assim, o que temos no conjunto da humanidade são criaturas extremamente individualizadas, cada uma cumprindo os seus intransferíveis karma ("tudo aquilo que decorre do que fazemos, da nossa ação") e dharma ("a obrigação que temos de assumir os efeitos das ações praticadas por nós e/ou pelos membros do grupo a que pertencemos"), em medidas, ritmos e condições diferentes (inclusive como animais e minerais), o que aponta para uma virtual impossibilidade de que se realize  ao menos até aonde a vista alcança  a tão desejada e necessária harmonia da espécie. Somos mais que muitos, porque somos cada um em si, não temos iguais na matéria e muito menos no espírito. Somos, neste exato instante, 8 bilhões de seres dedicados a cumprir suas insólitas individualidades cósmicas.  

Voltemos a Cid Marcus: "Com base no hinduísmo, Jyotish (Luz Divina) considera Prarabdha ("o que está maduro para ser colhido, o que temos que colher, que assumir, e não pode ser alterado, mudado") como: 1) Fixo (dridha); 2) Fixo-Não Fixo (dridha-adridha); 3) Não Fixo (adridha). O karma classificado como fixo é muito difícil de ser mudado, praticamente impossível. As ações que a ele deram causa foram muito significativas, graves, proporcionais ao que agora é experimentado com a mesma importância e intensidade. Terá este karma que ser vivido. A sensação que temos é a de que ele simplesmente “acontece”, apesar de todos os nossos esforços contrários. Dizem os astrólogos hindus que o karma fixo aparece no mapa numa confluência, isto é, quando muitos fatores astrológicos convergem para uma indicação que permita considerá-lo como tal, como uma espécie de nó cego".

"O segundo tipo, fixo-não fixo aparece também através de vários pontos, convergindo todos (...) para uma determinada área. Este tipo de karma poderá, contudo, ser mudado através de consideráveis esforços, por ações conduzidas através uma vontade firme, austeridade, de médio para longo prazo. Já o terceiro tipo, não fixo, gera efeitos que podem ser alterados ou superados com relativa facilidade. Nestes casos, os resultados obtidos são proporcionais aos esforços empreendidos."

E ainda: "Além dessas divisões, (...) o hinduísmo nos lembra (...) que todas as ações humanas podem ser subdivididas em três classes: 1) Kayaka, as que dizem respeito ao corpo físico, que tanto se referem às nossas ações quanto aos nossos sentidos; 2) Vachaka, as que dizem respeito às palavras; 3) Manasika, as que decorrem de influências mentais, pensamentos".

Diante desse quadro de relativo determinismo que a Astrologia Hinduísta aponta, resta-nos questionar o alcance das habilidades cognitivas que vêm sendo desenvolvidas por nossa espécie há milênios, e que nos possibilitaram erguer os fundamentos deste modelo de civilização, bem como a força do livre arbítrio, ou seja, a capacidade de cada indivíduo fazer suas próprias escolhas e moldar seu futuro. Afinal, é com esses atributos (cognição e livre arbítrio) que contamos para construir uma harmonia duradoura e em desenvolvimento, não apenas no sentido planetário, terreno, mas no plano cósmico, da eterna caminhada de volta ao Brahman, o Todo.

Sobre isso, Cid esclarece: "A proposta hinduísta de que a libertação do ciclo de renascimentos leva a uma dissolução do atman (alma) no Brahman (Todo) nunca foi muito tentadora para os ocidentais, convenhamos, pois ela sempre se constituiu numa exceção sob o ponto de vista soteriológico (estudo da salvação do homem por um redentor). O hinduísmo pede aos seus crentes, além da dissolução do ego, um esforço ascético duríssimo, uma ética rígida, a conquista de um desapego cada vez maior com relação à vida material e nenhuma recompensa oferecia quando pensamos numa vida pós-morte". 

"A maior parte das tradições religiosas sempre ofereceu aos seus crentes, nas suas soteriologias, além da eternidade, muita felicidade, bem-aventurança, harmonia, paz, simplicidade e pureza, tudo a ser 'vivido' num lugar no qual todas as necessidades e carências se veriam satisfeitas e resolvidas sem esforço algum. A concepção de paraíso da religião judaico-cristã, por exemplo, foi estabelecida por povos semíticos, que sempre viveram em lugares desérticos, secos, pedregosos, de quase nenhuma vegetação. Por isso, sua concepção não podia ser outra: o paraíso 'tinha' que ser um jardim sempre verde, com água abundante, lagos, rios, um lugar de primavera eterna, um lugar muito diferente daquele onde viviam. Algo divino, sem dúvida, satisfação permanente sem carência nenhuma."

Quem sabe possamos concluir, de forma grosseira, que não estamos exatamente no pleno e total comando de nossa existência. Melhor seria dizer que desempenhamos um papel existencial, que frequentemente pode ser bom, mas, com a mesma frequência também pode ser mau, e que a maneira como o desempenhamos será crucial não apenas para a nossa existência presente, mas em especial para o destino cósmico de cada indivíduo.

Talvez por isso  a incômoda verdade de que a Astrologia tem o poder de revelar as causas primeiras do comportamento da miríade de seres humanos que assomaram e assomam a este planeta é que a cultura iluminista (o uso da razão como única ferramenta confiável para entender o mundo), prevalecente desde o século XVIII, tenha passado a defini-la como pseudociência, intuição, adivinhação, pressentimento, ou seja, tratando-a como manifestação frívola, fruto de um certo diletantismo convenientemente, relegado a conversas de salões e, mais adiante no tempo, a colunas de jornais.

Afirmam seus críticos que "no paradigma da física moderna não existe nenhuma forma de interação que possa ser responsável pela transmissão da suposta influência entre uma pessoa e a posição de planetas e estrelas no céu, no momento de seu nascimento". Ora, mas o fato é que até outro dia a 'física moderna' desconhecia, por exemplo, a existência da mecânica quântica e seus fenômenos "fantasmagóricos", como um dia definiu Albert Einstein (1879-1955), o célebre formulador da Teoria da Relatividade. Assim sendo, o que autoriza a 'ciência' a descartar, e até mesmo ridicularizar, as formulações da Astrologia?

Seria mais prudente, e neste caso à luz de fenômenos reconhecidamente científicos, nos dedicarmos ao aprofundamento do estudo da sincronicidade (acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado), conceito desenvolvido pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), e que bem poderia ser a porta de entrada para se investigar, ‘racionalmente’, a efetividade da Astrologia sobre nós, indivíduos humanos tão individualmente diferentes.

(*) A título de esclarecimento: o karma no hinduísmo difere do carma no Espiritismo kardecista (do francês Allan Kardec, 1804-1869). O kardecismo "reconhece o princípio comum que move a ideia do carma, qual seja a lei da causalidade moral em face do grau de consciência e da sua intenção do indivíduo, também estendendo os efeitos possíveis dessa relação através das reencarnações, conquanto não admita a incorporação em um organismo inferior ao humano", ou seja, em corpo animal ou mesmo em mineral, como ocorre no karma hindu. — da Enciclopédia Espírita on line: https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Carma

Que "o inesperado faça uma surpresa"

Por que as pessoas são diferentes? A Astrologia tem uma explicação  detalhadamente exposta pelo professor Cid Marcus, aqui: https://cidmarcus.blogspot.com/ —, que não é, nem poderia ser, inteiramente determinística, ou seja, de submissão das pessoas às características de seu signo, ascendente, etc.

Ou seja, a Astrologia contempla apenas o potencial do vir a ser de cada indivíduo que assoma a este planeta, a partir do encontro de um espermatozoide (dentre os 40 a 300 milhões produzidos numa única ejaculação de um homem são) e um óvulo (dentre os 400 possíveis de serem liberados durante a vida reprodutiva de uma mulher sadia).

De posse de seu patrimônio genético e, portanto, cósmico, cada homem será moldado (pela família e sociedade) e moldará (através de seus recursos cognitivos e livre arbítrio) o indivíduo que atravessará uma existência de realizações, não necessariamente positivas ou negativas, muito ao contrário.

E porque as pessoas são assim, tão individualmente diferentes, competitivas, é que exponho meu ceticismo quanto à possibilidade de um dia virmos a construir, alcançar e manter a harmonia social tão necessária para a preservação da vida neste planeta.

Vivo, confesso, a condição de um esquizofrênico consciente, que tem certeza de sua permanente incoerência (desejar sem acreditar na possibilidade), mas que se recusa a ceder em favor do lado mais sombrio da força, qual seja o da impossibilidade de acontecer. Sempre deixo aberta a janela para o autoengano, na esperança de que "o inesperado faça uma surpresa", como cantou o magnífico Johnny Alf.

E é por desacreditar/acreditar em nossa humanidade que continuo aqui, de plantão. Desesperado com tantos e tão incontornáveis conflitos, vendo as peças do mundo cada vez mais se embaralhando; testemunhando a vitória persistente da infâmia e o sorriso debochado dos vilões.

Será hoje, será amanhã que ela virá? Quem, qual delas será? Enquanto isso, da mesma janela da promissão enxergo as devastações coletivas, as iniquidades individuais, as tolas vitórias dos iludidos. Mas, espere, do que estávamos falando, mesmo? Ah, sim, de quanto as pessoas são diferentes...