A conciliação da espécie é incontornável

Embora a rotina cotidiana, as paixões, os desejos, as necessidades de cada um nos impeçam de atentar devidamente para o que ocorre no mundo, o fato é que este planeta está atravessando, neste exato instante, um período crucial para o prosseguimento do Homo sapiens.

A civilização que viemos construindo desde muito antes destes 2.023 anos denominados depois de Cristo cujas raízes históricas nos remetem na verdade às (ainda que) incipientes relações estabelecidas entre aqueles indivíduos dos tempos primordiais , essa civilização está claramente esgotada.

Esgotou-se exatamente agora há pouco — adotando-se o ponto de referência cristão amplamente aceito —, na passagem do chamado segundo para o terceiro milênio. Ao longo desses dois e dos demais milênios que os antecederam, a espécie humana organizou-se dos mais diferentes modos, buscando, teoricamente, a forma mais eficaz de compartilhar a experiência de viver.

Falhamos. porém. Desperdiçamos todas as chances. Erramos inclusive nas tentativas de remediar nossos seguidos fracassos, como é o caso daquele brilhante (mas insuficiente) sistema a que se denominou socialismo científico, formulado em meados do século XIX.

E por que falhamos? Falhamos porque fomos condescendentes com nossa imaturidade emocional simples e trágico assim. O fator psique humana nunca foi levado na devida conta nos arranjos sociais que formulamos.

Há muito sabemos que nossas ações são determinadas pela forma como lidamos com o medo — não o medo disto ou daquilo, mas ele próprio, o medo, esse elemento constitutivo de todos os seres vivos, que se potencializa ainda mais no psiquismo de nossa espécie, pois somos dotados do poder de fazer.

O fato do nosso fazer ser guiado pelo medo é o elemento definidor do nosso sucesso, mas também e principalmente do nosso fracasso. Do sucesso, porque é ele, o medo, que nos desafia a superar obstáculos; do fracasso, porque ele também é responsável por nossas inseguranças e pelos sentimentos e ações que as acompanham: ódio, preconceito, indiferença, violência.  

A tragédia deste momento — e não esqueçamos que a história do Homo sapiens constitui ínfima parte da História grande, a cósmica é que o debate civilizacional reduziu-se, finalmente, à disputa entre dois fabulosos (porque possuidores da força nuclear bélica) contendores: o Ocidente, tendo à frente os Estados Unidos da América; e o Oriente liderado pela China.

EUA x China, China x EUA. Tudo mais são satélites gravitando em torno desses dois eixos, alguns tangenciado a ambos, ainda sem a certeza de que serão bem-sucedidos nessa busca de equidistância. É o caso notório do Brasil, especialmente agora, sob o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Lula afirma com veemência que a sua guerra, a nossa guerra é contra a pobreza e a fome, produzidas pela secular má distribuição de renda. Seu diagnóstico e determinação estão corretíssimos. Resta saber se ele contará com as condições objetivas para liderar essa guerra social interna (o que por si só já seria e será difícil), em meio a um cenário externo aceleradamente mais conflituoso.

Cenário em que os EUA, a potência (nuclear, repito) que declina, recusa-se a ceder terreno à potência (nuclear) que emerge, a China. Por enquanto, hipocritamente — como é frequente, quase uma regra, entre nós, humanos — a tensão entre as duas maiores potências circunscreve-se ao âmbito comercial, como se se tratasse de uma disputa entre cavalheiros.

A carnificina se dá entre satélites de lado a lado, como ocorre na guerra Rússia x Ucrânia. O que se trava ali é a disputa Ocidente x Oriente. É a derradeira tentativa (fadada ao fracasso) de recolocar o Homo sapiens na via do prosseguimento, seja por uma improvável vitória da Rússia, seja por uma impossível vitória da Ucrânia. Improvável e impossível exatamente porque ambos os lados acenam, em última instância, com o uso da solução final, a nuclear.

Lula da Silva, quase solitariamente, tem atuado em defesa do bom-senso, propondo o diálogo entre Rússia e Ucrânia para a superação do conflito. Mas que diálogo seria possível, entre esses dois contendores, se eles próprios não se representam? O que é hoje a Ucrânia, se não um aríete a serviço do ainda presente Império americano? O que hoje é a Rússia, se não a linha de frente da guerra travada pelo postulante Império chinês?

Disse acima fadada ao fracasso porque, mais uma vez e sempre, ignora-se o elemento primordial do teorema tão bem demonstrado na "hierarquia de necessidades", do norte-americano Abraham Maslow (1908-1970): fisiologia/segurança/amor-relacionamento/estima/realização pessoal.

Nem o Ocidente, nem, agora, o Oriente, contemplaram, contemplam ou contemplarão o atendimento de todas as necessidades de espécie humana. Esforçam-se, no máximo, para suprir os patamares mais baixos daquela hierarquia (fisiologia e segurança). Ainda assim de forma insuficiente (como o fez o socialismo científico), pois passam ao largo desse elemento primordial, e também básico, que é a compreensão do medo.  

Este, enfim, é o drama definitivo enfrentado pelo promissor animal surgido há 2,5 milhões de anos, e que há 350 milênios, no Norte da atual África, evoluiria para o Homo sapiens. Não há mais o quê, nem porquê tergiversar. A conciliação da espécie é incontornável.