Chega de ilusões, caralho!

O pior tipo de semeador de ilusões é aquele indivíduo que teve a oportunidade de adquirir conhecimentos formais; a essa formação adicionou vivências variadas, proporcionadoras de aprendizados enriquecedores; pôde refletir sobre a vida e a natureza das coisas e, apesar de tudo isso, rendendo-se às conveniências da vaidade — em evidente falha de caráter , reduz suas pregações a falsas verdades.

E a mais falsa 'verdade' que se propaga nestes dias é exatamente essa vã esperança de que os movimentos geoeconômicos e geopolíticos realizados por China e Rússia — em contraposição ao decadente statu quo liderado pelos Estados Unidos da América — conduzirão nosso planeta a um verdadeiro avanço civilizacional.

Isto não é verdade. Não do modo como está colocado.

O erro (ou má-fé) do projeto posto em prática pela aliança sino-russa está em apostar na derrocada econômica e consequente esvaziamento do poder de seu nomeado adversário, com o propósito de um dia vir a ocupar seu lugar na liderança do planeta.

A má-fé por trás desse propósito está em que ele finge ignorar o fato de que o estado de equilíbrio das relações internacionais se encontra, desde os dias 6 e 9 de agosto de 1945, sob a égide do uso da energia atômica para fins bélicos. Junto com as duas centenas de milhares de pessoas imediatamente mortas em Hiroshima e Nagasaki, naqueles dias a Terra iniciou a derradeira etapa de sua oportunidade civilizatória.

A corrida pelo desenvolvimento de novas, disseminadas e mais potentes armas nucleares, que se deu a partir de 1945, apenas obedeceu a um roteiro esperado e inevitável. Hoje, como sabemos, os países detentores desses arsenais — EUA e Rússia à frente — possuem a capacidade de destruir por várias vezes a vida no planeta.

Este é o verdadeiro statu quo do mundo. Diante deste estado de permanente tensão, qualquer iniciativa orientada apenas por conveniências políticas e/ou econômicas unilaterais está fadada ao fracasso. Ou seja, condenada a se transformar em uma ilusão alimentada por irresponsáveis semeadores.

Sim, porque nenhum império nuclear cederá poder passivamente, assim como nenhum império nuclear conquistará poder amigavelmente. Nesse sentido é que o projeto sino-russo, infelizmente, segue seu curso para o fracasso inevitável, além de fomentar o risco de autodestruição de nossa espécie.

Digo infelizmente, porque já não resta muito tempo ao planeta. Além da permanente ameaça nuclear, temos o desafio de superar a pobreza, os riscos biológicos e a crise climática, questões existenciais que nossa incapacidade de entendimento também impede de serem enfrentadas.

Penso que se China e Rússia querem mesmo promover um novo patamar civilizatório, não o conseguirão pela via impositiva que estão tomando. O único caminho que lhes (nos) resta é o da conciliação de interesses, priorizando-se os problemas imediatos e capazes alcançar consenso, como parecem ser as questões da pobreza, a climática e a biológica.

Sabemos que o enfrentamento de qualquer um desses desafios demandará muitos recursos financeiros, o que poderá (ou deverá) desestimular as guerras em curso, contrariando os poderosos interesses da indústria bélica. Não seria (será) fácil alcançar um armistício planetário, mas ele é o único caminho  com potencial de sucesso.

Louvar o projeto sino-russo, ignorando suas falhas de formulação, e até mesmo os riscos envolvidos como vêm fazendo influentes formadores de opinião , é semear fantasias em troca de aplausos fúteis, que só servem para perpetuar o belicismo e alimentar vaidades. Este momento da História de nossa espécie exige maturidade intelectual. Chega de vender ilusões.

Reflexões sobre o caos

Sempre que minhas conversas políticas, ainda que entre amigos, revelam uma impossibilidade de solução negociada, um impasse resolutivo, se assim se pode dizer, costumo recorrer à "máxima"  como define um dileto companheiro de que 'é impossível cavalgar o caos'.

Caos, dizem os dicionários, 'é um estado de coisas em que o acaso é supremo'. Isto é, onde o imponderável parece tomar as rédeas e de onde inesperados paradigmas têm grande chance de se estabelecer.

O fato é que este momento vivido por nossa espécie parece apontar, com precisão, para um quadro clássico de caos. Não nos iludamos, portanto: das condições caóticas que estão postas neste exato instante de nossa presença na Terra, tudo indica que nenhuma convergência racional resultará, apesar de todos os códigos, acordos, contratos estabelecidos ao longo da construção deste nosso modelo de civilização.

Chegamos, até onde nossa compreensão alcança, ao derradeiro impasse civilizacional: a (aparentemente) incontornável extinção de nossa espécie, seja pela via nuclear, biológica ou climática, ou ainda pelas três juntas, sem desconsiderarmos as potenciais ameaças oriundas do espaço.

O desespero coletivo só não se instalou, ainda, porque a maioria dos 8 bilhões de indivíduos que habitam a casca deste planeta permanece aprisionada às pequenas lutas cotidianas  ou mesmo às lutas médias (sociais), ou às grandes lutas (transnacionais) , não se dando conta do tamanho da desagregação que está em curso. Desagregação que não começou agora, mas que se intensificou e complexificou nas últimas três décadas, a partir do advento da comunicação globalizada.

Neste curtíssimo período de menos de trinta anos, todas as fobias, taras, violências, crueldades e medos reais ou imaginários passaram a ser expostos, e amplamente compartilhados e impulsionados através da chamada rede.

Esse massacre psicossocial produziu um verdadeiro estado de estresse planetário, potencializado durante o confinamento social imposto pela pandemia, e que agora, nestes dias pós Covid-19, se estende às sequelas físicas e mentais deixadas pelo coronavírus, nesse segundo caso vitimando em especial crianças e adolescentes.

Vivemos, em verdade, os últimos suspiros de uma ilusão de futuro, agarrados às velhas e carcomidas tábuas de salvação representadas pela religiosidade, o negacionismo e o cientificismo.

A saída dessa condição limite não se dará pelo caminho da racionalidade política. Os lados que se opõem, com todas as suas inúmeras facetas, não admitem ceder, recuar, abrir brechas para qualquer ínfimo entendimento. Pior: cada um, a seu modo, engana-se, pensando que pode 'cavalgar o caos', ou seja, beneficiar-se da confusão reinante.

É impossível cavalgar o caos, e explico: uma vez instaurado, como o vemos agora em sua expressão extrema, superlativa, o caos assume a condição de único protagonista da História, atraindo para sua dinâmica errática todas as possíveis manifestações distópicas, desorganizadoras, dissonantes, incoerentes, desarmônicas.

Soberba, como aprendeu a ser, nossa espécie julga estar no controle. Mas a realidade é que lá na frente, se o acaso, se o imponderável nos conceder tal sorte, o que haverá serão outros paradigmas.

Serão, por exemplo, outras formas de interação social, possivelmente (espera-se!) imunes de algumas das imaturidades psíquicas que construíram o atual modelo civilizatório, e que nos conduziram ao presente impasse. O caos não é bom, nem é mau. Ele é apenas o indomável construtor da grande História cósmica.

Adeus às revoluções. Viva a revolução!

Há não muito tempo, confesso  e já me encontro com 75 anos , tomei consciência da impossibilidade de se mudar o mundo, ou até mesmo um único país, pela via revolucionária socialmente estruturada.

Estaria desistindo dos velhos sonhos, sendo vítima de senilidade? Não creio, pois considero deter ainda suficiente capacidade cognitiva para apontar essa realista conclusão: as revoluções estruturadas são fenômenos irrepetíveis.

Foi o avanço dos conhecimentos científicos, ocorrido a partir do século XV, na Europa, que germinou o processo sociopolítico responsável pela ocorrência da Revolução Francesa, trezentos anos depois. O mesmo ímpeto efervescente, agora sob o impacto da tecnologia, deitou as raízes dos embates ideológicos, proporcionando o advento da Revolução Russa em 1917, e da Chinesa em 1949.

Até então tínhamos um mundo em que as ambições nacionais eram teoricamente possíveis (embora nunca tenham realmente sido). Pensávamos; pensavam os homens daqueles tempos que seria possível mudar o mundo a partir de mudanças promovidas em nossas próprias aldeias (nações). Falharam; falhamos miseravelmente.

A tragédia só não foi maior porque, como já havia nos alertado Antoine Lavoisier, em 1785, "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Em consequência dessa constatação, tem sido possível observar que, embora falhas em seu propósito mais ambicioso, as revoluções socialmente estruturadas produziram inflexões importantes; se não capazes de uma total mudança de curso, ao menos de momentaneamente interromper o passo rumo à derrocada civilizacional.

Ou seja, esse tem sido e é o caminhar inevitável da História. Ocorre que agora, neste exato tempo em que vivemos esse modelo de revolução é um anacronismo, um saudosismo romântico a ser racionalmente evitado. Dele só podemos aproveitar o ambicioso e eterno propósito nunca realizado, mas que nos serve de estrela guia e inspiração: a conquista da maturidade da espécie humana.

A revolução que cabe aos dias de hoje não é nacional, muito menos global. Ela é pessoal, individual, mental. E já vem se realizando, silenciosamente, ao redor do planeta.

Primeiro, em cada pessoa consciente de sua própria responsabilidade cósmica. Logo (torço!), alcançando a Humanidade inteira, a partir da disseminação dos frutos produzidos, pelo exemplo desse contingente de pessoas esclarecidas, a parcelas cada vez mais largas da sociedade planetária.

Portanto, caro amigo, não cobre revoluções de nenhum dos chefes de governo que agora comandam nações. Eles não as farão, e se tentarem serão massacrados pelas forças do reacionarismo alimentado pelo medo, ou fracassarão frente ao poder dos que fazem fortuna em cima da idiotia social. Ao contrário, faça você mesmo a revolução. Revolucione-se.

O Brasil é necessário

É preciso lembrar o que muitos sábios já apontaram: o Brasil ocupa um lugar relevante no mundo. Não adianta tentarem nos afastar dessa condição cósmica. A Humanidade, o conjunto dos seres pensantes que se reproduzem e habitam este planeta, precisa do espírito que se estabeleceu na alma e que constitui este lugar chamado Brasil.

Amálgama de, talvez, todas as raças, culturas, crenças e sonhos que existiram e possam vir a existir sobre a casca do "pálido ponto azul" vagante no tempo e espaço, pulso vigoroso deste lugar a que se denominou Terra, o Brasil tem sim uma tarefa histórica a cumprir. E a cumprirá.

É possível que não venha a realizá-la em sua inteireza, pois não só o desafio é imenso, mas também há o imponderável. E, no entanto, a missão está posta e a execução segue seu curso: despertar nas pessoas, em cada uma delas, de todo e qualquer canto, a certeza de que é possível viver em harmonia com e sobre este paradisíaco torrão.

Para isso, é imprescindível que todos compreendamos e aceitemos o fato de que ninguém é inimigo de ninguém. Excluir, discriminar, segregar são apenas expressões dos medos que se estabeleceram em nossa psique, desde os tempos imemoriais, ainda quando não éramos nada além de um possível vir a ser.

Quando um dia fomos compelidos a sair das cavernas e, muito depois, quando passamos a domesticar animais e cultivar plantas responsáveis pelo nosso sustento e progresso material; quando esses dois ciclos se consolidaram e introduziram os passos iniciais das (progressivamente complexas) relações humanas, já trazíamos em nosso psiquismo aquilo que a História viria a espelhar no futuro à frente: o exercício permanente, irresponsável e cumulativo da imaturidade sediada nos medos genéticos e atávicos da espécie.

Hoje, quando tantos já possuem a oportunidade intelectual de enxergar o passado de maneira mais clara e sábia, sem soberba nem receios, é chegada a hora de olharmos para as experiências que, apesar de tudo e de todos, vêm dando certo. Como esta que se deu e se dá neste país miscigenado, efervescente, atrevido, localizado ao Sul do Equador.

O Brasil ainda está longe de fazer brotar a compreensão universal de que a harmonia é possível, necessária e imprescindível. Mas, se existe um caminho para alcançarmos esse fim, apesar das tentativas regressivas que as forças da imaturidade periodicamente nos impõem, esse caminho passa pelo espírito predominante neste pedaço da Terra, tantas vezes já reconhecido por sábios indivíduos.

Os zumbis não são humanos

Estamos tendo neste exato instante uma recaída emocional no chamado 'campo democrático' brasileiro, revivendo a insegurança dos piores momentos do período histórico comandado pelo verme golpista. Isso é compreensível. Equivale à crise de choro, aos tremores, ao desconforto que se segue a uma descarga continuada de adrenalina em nosso organismo, a partir de vivências que mobilizam a totalidade dos nossos nervos e músculos.

Em decorrência do inédito clima de pré prisão do crápula (e seus comparsas), e da realização desse ato (como sempre) terrorista no domingo, 25 de fevereiro (mais para expressar seu desespero do que qualquer outra coisa), o medo de que os avanços conquistados e a conquistar possam estar sob risco nos colocou de novo num estado de quase pânico, num incômodo real que precisa ser racionalizado.

E racionalizar é jogar um vento vigoroso, robusto, contra essa bruma que tenta turvar nossa visão e nos fazer esquecer o fato de que mais de um ano se passou desde o resgate da democracia no país, e que o Brasil é outro, inteiramente outro. Recuperamos o poder de lutar pela realização de nossas potencialidades. Hoje há luz. 

Uma Avenida Paulista cheia de zumbis vestidos de amarelo (alguns estranhamente montados em cavalos), ainda que estivesse realmente tomada por esse povo, não significa nada além de uma reunião de zumbis amarelados, atraídos por um fanatismo hipnótico, alienante e criminoso, porque desvincula essas pessoas de suas necessidades básicas, submetendo-as aos interesses inconfessáveis de uns poucos espertalhões. Como sempre.

Poetas já proclamaram: "É preciso estar atento e forte". Não devemos reviver inseguranças já superadas. Os inimigos foram batidos, mas, como na Democracia os inimigos não podem ser abatidos, eles continuarão por aí, tentando nos assombrar.  

"Não temos tempo de temer a morte". Cabe a nós exorcizá-los, colocá-los no devido lugar, impedi-los de entrar no vagão do futuro enquanto não tiverem recuperado a sensatez da civilidade, exatamente como agiu a torcida do Corinthians. Os zumbis não fazem parte do gênero humano.

Lula, a quem interessar possa

Nesta resposta a quem interessa possa, eu insisto: não se trata de que o Lula seduz aqueles que dele se aproximam, o que ocorre é que o indivíduo Lula da Silva é um legítimo portador daquilo que mais poder tem de seduzir o ser humano  a ousadia da liberdade. É impossível resistir à alegria [e à força] sem dissimulações de um homem que pratica a liberdade.

Lula da Silva, ontem, 2 de Fevereiro de 2024, não fez um (na festa dos 132 anos do Porto de Santos, quando anunciou a construção de um túnel ligando as duas margens do estuário do maior terminal marítimo da América Latina, uma obra que a região esperava há quase 100 anos), mas três discursos balizadores para o que será este ano de eleições.

O segundo foi na sede da Volkswagen (que anunciava investimentos de 14 bilhões de reais em suas unidades produtivas no Brasil), onde ele reencontrou seu berço político-sindical e se emocionou com este fato, citando nomes de antigos companheiros e até de desafetos do início de sua épica jornada, do sertão de Pernambuco aos mais elevados palcos do planeta). O terceiro foi diante da militância petista, na festa de refiliação de Marta Suplicy ao partido, para disputar a Prefeitura de São Paulo como vice de Guilherme Boulos, do PSOL.

Neste último, falando desde o fundo de sua alma e arranhando sua garganta, emergiram pensamentos lapidares e definitivos. Primeiro, apontou o óbvio: qualquer pesquisa que se faça mostra que o Partido dos Trabalhadores é reconhecido por no mínimo 20% da população brasileira, com o segundo lugar mal alcançando 1 ou 2%. Deste fato, Lula da Silva extrai um questionamento iluminador: por que, então, em eleições municipais o PT não consegue fazer ao menos 20% de prefeitos e vereadores?

Em segundo lugar, e não menos importante, bateu firme no identitarismo, a hipocrisia da moda que grassa entre os chamados progressistas.Observe-se, Lula da Silva não é contra mulheres, negros, brancos, jovens, católicos, velhos, evangélicos ou quem quer que seja ou queira ser. Lula da Silva  como indivíduo livre, que é  só não aceita a tese de que as pessoas devam ser festejadas (e, no caso, se tornem candidatas) pelo seu lugar de fala.

O raciocínio é simples e claro: a escolha de candidatos a vereadores e prefeitos, por exemplo, deve recair sobre aqueles indivíduos que possuam luz própria, liderança reconhecida e afinidade inquestionável com o Programa do PT. Essas são as condições essenciais a qualquer candidato. Pouco importa se a pessoa tem essa ou aquela cor, credo, idade, condição física ou sexual. Se houver convergência com os inúmeros lugares de fala, ótimo, mas que o lugar de fala não seja uma pré condição.

A sedução que emana do indivíduo Lula da Silva, insisto, é aquela de se estar diante de um ser humano que nos ensina a praticar a liberdade. Quando ele conta a história do dia em que incorporou a pobreza de sua infância e adolescência, transformando-a em patrimônio inigualável frente às lideranças maiores do planeta, e para elas discursou de cabeça erguida, falando em seu então precário Português sobre as responsabilidades históricas que recaiam nos ombros daqueles poderosos senhores, quando ele conta essa história (e o fez ontem de novo, falando às jovens e aos jovens trabalhadores da Volkswagen à sua frente) não é para se jactar. É para mostrar como se pode e deve praticar a liberdade.


Os vídeos:

No Porto de Santos

Na Volkswagen 

Na refiliação de Marta Suplicy 

 

Vida em hip hop

Tem sido motivo de regozijo haver nascido e ainda viver este tempo. Tal repentina euforia me veio ao sabor desse substantivo mágico, regozijo, que escrevo mais uma vez e repito, regozijo, antes que me esqueça de novo de quais letras se compõe, de tão inusual que ele é.

Vivi e vi sofrimentos, misérias, choros inadmissíveis de tantos inocentes, inaceitáveis humilhações de adultos, impingidas, amargamente aceitas em troca da esperança de um amanhã melhor. Tive nas mãos, aos 8 anos, um revólver reluzente, enquanto meu pai, bêbado, desacordava-se na cama ao lado devolvi-o à gaveta e esperei.

Testemunhei destruição, dores incontáveis, desesperos assombrosos, olhares vazios e cheios de perguntas definitivas, mas irrespondíveis. Caminhei através de catástrofes, quase tocando corpos carbonizados, reduzidos à sua essência mineral e desalmada. Presenciei o desenterrar da lama de crianças mortas, largadas como se nada fossem nos braços de homens determinados e impotentes.

Olhei no olho de mentirosos, de corruptos, de estelionatários e assassinos. Em todos vi mais o medo do que sabiam ser, do que a satisfação por aquilo que eram. Vi e vejo seres perdidos em seus próprios labirintos; erráticos, tontos de tanta ignorância, clamando por uma ajuda sem coragem de dizê-lo.

Vi e vivi isso que é o mundo. Não teria razões para declarar regozijo, mas o faço porque, afinal, sobrevivi a todos esses horrores, e posso [devo] agora dar meu testemunho. Não é o de um vencedor, mas o de uma pessoa perplexa com a teimosa exuberância desta existência cósmica daí o regozijo de poder dizer: Presente!

Digo perplexa porque constato, sim, o quanto a existência é tolerante, pois não se farta de ser agredida, vilipendiada, corrompida, submetida, e ainda assim nos oferece seus melhores, doces, renovados frutos.

Claro que a existência, representada pelas coisas que nos constituem e suportam, vem nos ensinando a eterna lição da perenidade cósmica. Não há horrores, misérias, dores, sofrimentos, dissimulações e fraquezas que ela desconheça.

Todas as iniquidades, as cometidas e as ainda a cometer, integram o [nosso] cardápio de possibilidades. Nada surpreende a existência  nada! Ela está sempre pronta a se pôr de pé, a se contrapor ao nosso podre não existir.

Viver, possuir e constituir a existência, e ainda mais nestes tempos tão intensos, de tantos fracassos e renovadas incertezas, de tantas gritantes e loucas esperanças, é, sim, motivo de regozijo.

Acabou a brincadeira

Após o último texto aqui publicado  A hora é clara e incontornável , um dileto amigo me respondeu: "Seu artigo rende horas de reflexão".

Quero dizer a esse amigo que sim, meu objetivo tem sido este mesmo: suscitar reflexão, mas não apenas isto. O momento planetário que atravessamos exige de cada um de nós os que têm humildade para tal, e por isso são a vanguarda dos esperados novos tempos, como entendo que esse amigo possa ser um sentido definitivo de urgência.

O momento da reflexão está ficando, ou ficou para trás. Não há mais o que pensar, ponderar, questionar, refletir. Estão dados, plenamente visíveis, todos os sinais de que a continuidade da espécie humana sobre as casca deste planeta encontra-se irremediavelmente comprometida.

Basta abrir nossas janelas  as objetivas, que deixam entrar a luz e o ar em nossas casas, e as metafóricas, aquelas que nos põem em contato com o mundo. Basta abrir essas janelas e constatar o quão extensa e profunda é a catástrofe terminal que estamos atravessando.

Catástrofe que se manifesta na insistência do poder da força entre as nações (seja aquele mais antigo, o hard power, seja este mais moderno, o soft power); nos conflitos egoísticos entre grupos sociais; e na intolerância cotidiana entre as pessoas, tudo isto convergindo para a negligência com aquilo que é o essencial e inadiável: o cuidado com nós mesmos e com o ambiente do qual fazemos parte.

Todos os horrores que estamos experimentando decorrem do catastrófico modelo civilizatório que viemos construindo há pelo menos 12.000 anos, desde o início da prática da agricultura, e que estão visíveis e vêm produzindo sofrimento mundo afora. A civilização erguida a partir do advento do Homo sapiens está esgotada.

Não, meu dileto amigo, não temos mais "horas de reflexão" ao nosso dispor. Tudo está se esfarelando à nossa frente, entre os nossos dedos. O tal sentido de urgência está posto, e isto não é uma conclamação retórica: Cada um, segundo sua capacidade e necessidade, que se ponha a campo a serviço do reinício da civilização. O momento é o mais sério de todos. Acabou a brincadeira.

A hora é clara e incontornável

"Da convergência entre a renovação da tradição socialista, anticapitalista e anti-imperialista, do internacionalismo proletário  fundado por Marx no Manifesto Comunista  e das aspirações universalistas, humanistas, libertárias, ecológicas, feministas e democráticas dos novos movimentos sociais é que poderá surgir o internacionalismo do século XXI." (*)

Leia o parágrafo acima mais uma ou duas vezes e, por favor, faça a você mesmo algumas perguntas. Por exemplo: A proposta contida nessa frase é factível? É possível somar ao diagnóstico e aos propósitos do Manifesto Comunista (de Karl Marx e Friedrich Engels) tudo mais que aflorou no mundo, desde 1848, extraindo desse coquetel de manifestações econômicas, políticas e sociais a concretização de um verdadeiro internacionalismo?

Comecemos por definir o que é (a) e qual o objetivo (b) do internacionalismo, em especial esse a que denominam "do século XXI". Até prova em contrário, internacionalismo é a apropriação, por todos os indivíduos que habitam este planeta (a), dos meios que lhes permitam viver com dignidade, alegria e senso de valor existencial (b); o complemento "do século XXI" é apenas uma tentativa (mais uma) dos velhos camaradas de 'salvar a pele' do marxismo, buscando oxigená-lo com os ares do nosso tempo, digamos assim. Isto posto, dediquemo-nos agora a questionar aquilo que é essencial: como o verdadeiro e único internacionalismo poderia ser alcançado.

Passados 176 anos desde que o Socialismo Científico foi formulado (no Manifesto), o que se constata é a comprovação de sua insuficiência para alcançar a tarefa a que se propôs. Apesar da beleza e da generosidade de seus princípios e objetivos; não obstante a força moral de sua presença ao longo destes quase dois séculos ter proporcionado, e ainda estar proporcionando, impulsos civilizatórios fundamentais, o fato é que o capitalismo, reinado do individualismo, tem renovado e aprofundado suas distopias, desafiando-nos (os humanistas socialistas) não a continuar jogando o mesmo velho jogo de gato vs. rato, mas a literalmente adotar um novo modo de proceder.

Ah, sim, criar um novo jogo... Mas, como? Do jeito que os jogos são criados: definindo-se um objetivo, estabelecendo-se as regras, desenhando-se os meios de jogar. O objetivo, como tenho proposto em todos os cantos onde venho escrevendo (e, repito, não estou sozinho nem sou pioneiro nessa empreitada), é conquistar a maturidade de nossa espécie. Perceba que não se trata de praticar o Humanismo, o que pode soar como mero diletantismo, mas de exercê-lo individual e coletivamente, de incorporá-lo à existência humana. Para isso, faz-se necessário colocar, enfim, os bois adiante do carro.

As regras são as balizas, as referências que delimitam nosso campo de atuação. Por exemplo: não se exerce o Humanismo sem que, desde cedo, na vida, tenhamos consciência de nossa humanidade; sem que compreendamos nossa diminuta mas exuberante existência cósmica; sem que enxerguemos o ínfimo e o infinito valor de cada qual e de todas as coisas e fenômenos que nos cercam, preenchem, compõem e potencializam a nossa presença aqui e agora.

Os meios são os instrumentos que nos possibilitarão operacionalizar o jogo, colocá-lo em movimento. Neste ponto, talvez eu não conte com tantos companheiros de jornada, porque a minha visão se opõe a todas as ideias postas até agora sobre a mesa. A mais antiga delas sendo essa que apela para a introjeção da religiosidade dogmática, e pela submissão a ensinamentos supostamente legados por entes sagrados e seus privilegiados seguidores. 

Discordo desse meio pelo simples e claro motivo de que ele é essencialmente contraditório: prega a redenção do homem, mas nos nega o direito de assumir a transcendência de nossa individualidade. Ou seja, as religiões nos ensinam que somos parte do todo, mas não admitem que o todo está em nós, intrinsecamente, sem intermediários ou tradutores, pois isto seria conceder a cada ser humano, independente das particularidades de sua existência, a condição de ser iluminado e cósmico. As religiões não querem isso. O que elas querem e praticam é exatamente o monopólio da intermediação entre o transcendente e o mundano, entre o mistério e a materialidade. E para isso precisam nos submeter.

Outro meio que igualmente promete nos guiar rumo à felicidade é a ciência e sua filha dileta, a tecnologia. Esta difere da religiosidade dogmática, porque oferece ao homem esperanças palpáveis, mensuráveis, mundanas, contrapondo-se à submissão em troca de uma futura redenção proposta pelas religiões. Embora tenha o mérito de colocar o gênero humano frente à sua realidade terrena, carregada de dores e desafios cotidianos a serem concretamente superados, a ciência alcança seu limite quando ignora o caráter transcendente da espécie humana, que, afinal, é a destinatária das facilidades e benefícios que produz.

Desta forma, tanto quanto a religiosidade dogmática, a ciência nos frustra ao expor, ao fim e ao cabo, sua insuficiência como meio de se praticar um novo modo de agir com vistas à obtenção da dignidade de viver, e que seja pleno de senso de valor existencial e de alegria. Ainda assim, neste liminar de um novo Ciclo Cósmico de 25.920 anos (representado por uma volta completa do Sistema Solar ao redor do centro de nossa galáxia), é preciso que todos saibam, ou venham a saber, que os meios não estão esgotados.

Há, por exemplo, este a que sempre me refiro, cujo objetivo é a conquista da maturidade de nossa espécie, e que, de certa forma, é a simbiose de uma religiosidade antidogmática com uma ciência sem arrogância. Sim, porque dessa religiosidade tolerante aproveita o sentimento puro que ela nos pode proporcionar, ou seja, o de que somos ínfima partícula carregada de transcendência (no sentido espiritual e energético do termo). E isto sem que devamos nada a alguém ou a alguma coisa. Ou seja, ter/conquistar essa consciência não demandará adoração, submissão e expiação por alegados pecados.

Já da ciência aproveita os recursos que ela tem nos proporcionado, e mais ainda proporcionará. Tanto aqueles que minoram os sofrimentos e produzem facilidades para a vida prática, quanto os que aceleram a interação entre as pessoas, permitindo que a comunicação seja disseminada de forma instantânea e global. O momento planetário que vivemos assemelha-se ao que resultou do modo de impressão de tipos móveis, inventado por Johannes Gutenberg (1400-1468). Aquele está na raiz da Renascença, da Reforma Protestante, da Revolução Industrial e do modelo de civilização que erguemos até hoje; este, a que me refiro, possui o poder de remodelar a presença do gênero humano na Terra, através da criação e da prática dos meios e modos de obtermos, afinal, a nossa imprescindível maturidade.   

É por isso que, ainda e sempre, me impressiono o quão homens reconhecidamente inteligentes se recusam a enxergar a incapacidade, até mesmo teórica, do que denominam de "internacionalismo proletário" para resolver o problema central da espécie humana: a nossa insegurança existencial, que se traduz em desunião, intolerância, preconceito. A esses respeitáveis indivíduos, sugiro ler e levar a sério o que tantos sábios já disseram sobre a relatividade absoluta das coisas que nossos sentidos alcançam. Por exemplo, Hermann Hess, em sua obra "Sidarta":

"Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la. Esse fato, já o vislumbrei às vezes na minha juventude. Foi ele que me afastou dos meus mestres. Uma percepção me veio, ó Govinda, que talvez se te afigure novamente como uma brincadeira ou uma bobagem. Reza ela: 'O oposto de cada verdade é igualmente verdade'. Isso significa: uma verdade só poderá ser comunicada e formulada por meio de palavras, quando for unilateral. Ora, unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. Tudo aquilo é apenas um lado das coisas, não passa de parte, carece de totalidade, está incompleto, não tem unidade. Sempre que o augusto Gotara nas suas aulas nos falava do mundo, era preciso que o subdividisse em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e redenção. Não se pode proceder de outra forma. Não há outro caminho para quem quiser ensinar. Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe no nosso íntimo, não é nunca unilateral. Nenhuma criatura humana, nenhuma ação é inteiramente Sansara nem inteiramente Nirvana. Homem algum é totalmente santo ou totalmente pecador. Uma vez que facilmente nos equivocamos, temos a impressão de que o tempo seja algo real. Não, Govinda, o tempo não é real, como verifiquei em muitas ocasiões. E se o tempo não é real, não passa tampouco de ilusão aquele lapso que nos parece estender-se entre o mundo e a eternidade, entre o tormento e a bem-aventurança, entre o Bem e o Mal."

Queremos salvar o mundo (e nos salvarmos, como espécie)? Então, temos de parar de sonhar acordados e acordar deste pesadelo individualista possessivo e/ou internacionalista proletário. O internacionalismo vai além de adjetivos, de qualificações redutoras e excludentes. A hora do amadurecimento sempre esteve posta, em todos os instantes da presença humana na Terra, mas esta de agora é clara e incontornável.

(*) Do livro "Globalização e internacionalismo: atualidade do Manifesto comunista", citado por Michael Löwy, sociólogo e filósofo franco-brasileiro, pesquisador do pensamento marxista, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, publicado em forma de artigo no site A Terra é redonda --- https://aterraeredonda.com.br/marx-esse-desconhecido/ 


O século deste homem

Tomando-se o entendimento de que os séculos são apenas uma convenção, um recorte temporal arbitrário da grande História (a cósmica, de onde se origina a materialidade e o espírito humano) e da pequena História (esta em que os humanos existem e agem), ouso afirmar que o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva é exatamente isso: o homem de um século que, a meu critério, se iniciou na primeira metade dos anos 1900.

Os mais céticos, e principalmente aqueles que sofrem de complexo de inferioridade, hão de perguntar: Mas, por que ele seria merecedor de tal distinção? Simples: porque Lula da Silva é um sábio intuitivo e prático dedicado ao difícil campo da Política, que é a arte de exercer o poder e a mais importante ferramenta em prol da conciliação da espécie. E porque realiza esse seu trabalho com sabedoria, num período singular, de inflexão civilizacional, em que esse tipo de qualidade mais necessária se faz.

Lula da Silva não está lá nas alturas tibetanas, confinado a um templo, jejuando e orando pela salvação da Humanidade. Ele está entre nós; é um ser mundano, frequenta a planície da vida pública nacional e planetária, expõe-se a todo tipo de crivo e mantém uma irretocável coerência, mesmo quando (aos olhos de seus críticos mais ferrenhos) erra.

Ah, mas desta forma você está pintando um deus, alguns poderão dizer. Bom, esse é o x da questão: Lula da Silva não é um deus no sentido religioso, ou mesmo mitológico, apartado das vicissitudes humanas. No entanto, ele e seres como ele (existentes em graus diversos de eficiência, espalhados pela superfície deste planeta) encarnam a essência do ser humano ideal, aquele que compreende e assume um compromisso com o futuro, sabendo que pode e deve agir no presente. Com o máximo de flexibilidade e o mínimo de erro.

O método de Lula da Silva é bem conhecido: ele acumula conhecimentos práticos (os teóricos, resultantes de suas leituras e conversas, ele mastiga, processa e os utiliza para enriquecer sua capacidade intuitiva) e se movimenta em sintonia com a realidade que está à sua volta. Ele não briga com os fatos da vida, pois sabe que estes são sempre dinâmicos e multifacetados.

Seu objetivo intuitivamente construído e consolidado, que se apoia nos sempre citados conselhos de sua mãe, Dona Lindú (sua referência de força/perseverança e, não por acaso, uma pessoa de carne e osso, e não uma construção mental), é a busca do primado da condição humana. Para quem ainda não sabe, isto significa dizer que Lula da Silva combate o melhor combate que todo ser humano poderia combater: a luta pela continuidade de nossa espécie, preservando condições dignas a todos, sem exceção.

Os indivíduos engajados nessa guerra cósmica, juntamente com Lula da Silva, não pensam (apenas) em si e nos seus. Pensam na espécie e, ao mesmo tempo em que momentaneamente se desesperam frente às incompreensões, e que às vezes se abatem diante das fraquezas de seus semelhantes, sabem relativizar tais falhas e falsetas e delas são capazes de extrair o ânimo, o combustível para perseverar em seu caminho; talvez apressando ainda mais o passo.

Graças às conjunções cósmicas, neste século de Lula da Silva é possível falar dessas coisas sem causar muita estranheza, tão desesperadas estão as pessoas em todos os recantos da Terra. Desesperadas e ansiosas por encontrar um sentido para suas vidas e uma razão para as dores e os desafios que a existência e o cotidiano lhes/nos impõe. E a Grande Nova, como diriam os cristãos, é que nada de novo resta a ser dito; o que nos cabe agora, enfim, é exercitar o livre arbítrio da forma que nos for possível, da forma como Lula da Silva faz.

Felizmente, e infelizmente, o homem deste século teve e tem tido a oportunidade de ocupar posições de poder, o que lhe permite pôr em prática a sabedoria intuitiva que ele vem construindo e aprimorando. O 'infelizmente', aqui, se refere ao fato de que no exercício dessas 'posições de poder' ele precisa lidar como a realidade cambiante e multifacetada, estando sujeito a desgastes e incompreensões.

Mas esse 'infelizmente', além de incontornável, também é relativo, porque, ao avançar apesar dos 'desgastes e incompreensões', Lula da Silva é didático e, ao mesmo tempo  como me referi acima , ganha forças para os passos seguintes rumo àquele seu objetivo de construir o primado da condição humana. Esse indivíduo não é um deus; isso não existe. Ele é um exemplo, e ao alcance dos nossos sentidos e de nossa compreensão.

Isso é o que eu penso sobre Lula da Silva. E digo mais: graças ao Cosmo esse indivíduo existe neste instante planetário. E ainda bem que ele é brasileiro, embora, de um ponto de vista pietro-ubaldiano*, talvez ele só pudesse mesmo ter surgido no Brasil, esta terra de tanta miscigenação, riquezas e possibilidades (e que recentemente passou por uma desafiadora prova de fogo, que foi a tentativa de destruição dessa sua condição transcendental).

(*) Pietro de Alleori Ubaldi (nascido em Foligno, Itália, em 1886, e morto em São Vicente, litoral de São Paulo, Brasil, em 29 de fevereiro de 1972) é definido como um "filósofo e pensador espiritualista". Mas, como já disse em outra oportunidade, esse é apenas um rótulo que lhe impuseram, pois sobrepõe seu discurso, em certos momentos espiritualista, embora não-dogmático, àquilo que de verdade é o cerne de suas ideias: a busca da emancipação do homem.