Acabou a brincadeira

Após o último texto aqui publicado  A hora é clara e incontornável , um dileto amigo me respondeu: "Seu artigo rende horas de reflexão".

Quero dizer a esse amigo que sim, meu objetivo tem sido este mesmo: suscitar reflexão, mas não apenas isto. O momento planetário que atravessamos exige de cada um de nós os que têm humildade para tal, e por isso são a vanguarda dos esperados novos tempos, como entendo que esse amigo possa ser um sentido definitivo de urgência.

O momento da reflexão está ficando, ou ficou para trás. Não há mais o que pensar, ponderar, questionar, refletir. Estão dados, plenamente visíveis, todos os sinais de que a continuidade da espécie humana sobre as casca deste planeta encontra-se irremediavelmente comprometida.

Basta abrir nossas janelas  as objetivas, que deixam entrar a luz e o ar em nossas casas, e as metafóricas, aquelas que nos põem em contato com o mundo. Basta abrir essas janelas e constatar o quão extensa e profunda é a catástrofe terminal que estamos atravessando.

Catástrofe que se manifesta na insistência do poder da força entre as nações (seja aquele mais antigo, o hard power, seja este mais moderno, o soft power); nos conflitos egoísticos entre grupos sociais; e na intolerância cotidiana entre as pessoas, tudo isto convergindo para a negligência com aquilo que é o essencial e inadiável: o cuidado com nós mesmos e com o ambiente do qual fazemos parte.

Todos os horrores que estamos experimentando decorrem do catastrófico modelo civilizatório que viemos construindo há pelo menos 12.000 anos, desde o início da prática da agricultura, e que estão visíveis e vêm produzindo sofrimento mundo afora. A civilização erguida a partir do advento do Homo sapiens está esgotada.

Não, meu dileto amigo, não temos mais "horas de reflexão" ao nosso dispor. Tudo está se esfarelando à nossa frente, entre os nossos dedos. O tal sentido de urgência está posto, e isto não é uma conclamação retórica: Cada um, segundo sua capacidade e necessidade, que se ponha a campo a serviço do reinício da civilização. O momento é o mais sério de todos. Acabou a brincadeira.

A hora é clara e incontornável

"Da convergência entre a renovação da tradição socialista, anticapitalista e anti-imperialista, do internacionalismo proletário  fundado por Marx no Manifesto Comunista  e das aspirações universalistas, humanistas, libertárias, ecológicas, feministas e democráticas dos novos movimentos sociais é que poderá surgir o internacionalismo do século XXI." (*)

Leia o parágrafo acima mais uma ou duas vezes e, por favor, faça a você mesmo algumas perguntas. Por exemplo: A proposta contida nessa frase é factível? É possível somar ao diagnóstico e aos propósitos do Manifesto Comunista (de Karl Marx e Friedrich Engels) tudo mais que aflorou no mundo, desde 1848, extraindo desse coquetel de manifestações econômicas, políticas e sociais a concretização de um verdadeiro internacionalismo?

Comecemos por definir o que é (a) e qual o objetivo (b) do internacionalismo, em especial esse a que denominam "do século XXI". Até prova em contrário, internacionalismo é a apropriação, por todos os indivíduos que habitam este planeta (a), dos meios que lhes permitam viver com dignidade, alegria e senso de valor existencial (b); o complemento "do século XXI" é apenas uma tentativa (mais uma) dos velhos camaradas de 'salvar a pele' do marxismo, buscando oxigená-lo com os ares do nosso tempo, digamos assim. Isto posto, dediquemo-nos agora a questionar aquilo que é essencial: como o verdadeiro e único internacionalismo poderia ser alcançado.

Passados 176 anos desde que o Socialismo Científico foi formulado (no Manifesto), o que se constata é a comprovação de sua insuficiência para alcançar a tarefa a que se propôs. Apesar da beleza e da generosidade de seus princípios e objetivos; não obstante a força moral de sua presença ao longo destes quase dois séculos ter proporcionado, e ainda estar proporcionando, impulsos civilizatórios fundamentais, o fato é que o capitalismo, reinado do individualismo, tem renovado e aprofundado suas distopias, desafiando-nos (os humanistas socialistas) não a continuar jogando o mesmo velho jogo de gato vs. rato, mas a literalmente adotar um novo modo de proceder.

Ah, sim, criar um novo jogo... Mas, como? Do jeito que os jogos são criados: definindo-se um objetivo, estabelecendo-se as regras, desenhando-se os meios de jogar. O objetivo, como tenho proposto em todos os cantos onde venho escrevendo (e, repito, não estou sozinho nem sou pioneiro nessa empreitada), é conquistar a maturidade de nossa espécie. Perceba que não se trata de praticar o Humanismo, o que pode soar como mero diletantismo, mas de exercê-lo individual e coletivamente, de incorporá-lo à existência humana. Para isso, faz-se necessário colocar, enfim, os bois adiante do carro.

As regras são as balizas, as referências que delimitam nosso campo de atuação. Por exemplo: não se exerce o Humanismo sem que, desde cedo, na vida, tenhamos consciência de nossa humanidade; sem que compreendamos nossa diminuta mas exuberante existência cósmica; sem que enxerguemos o ínfimo e o infinito valor de cada qual e de todas as coisas e fenômenos que nos cercam, preenchem, compõem e potencializam a nossa presença aqui e agora.

Os meios são os instrumentos que nos possibilitarão operacionalizar o jogo, colocá-lo em movimento. Neste ponto, talvez eu não conte com tantos companheiros de jornada, porque a minha visão se opõe a todas as ideias postas até agora sobre a mesa. A mais antiga delas sendo essa que apela para a introjeção da religiosidade dogmática, e pela submissão a ensinamentos supostamente legados por entes sagrados e seus privilegiados seguidores. 

Discordo desse meio pelo simples e claro motivo de que ele é essencialmente contraditório: prega a redenção do homem, mas nos nega o direito de assumir a transcendência de nossa individualidade. Ou seja, as religiões nos ensinam que somos parte do todo, mas não admitem que o todo está em nós, intrinsecamente, sem intermediários ou tradutores, pois isto seria conceder a cada ser humano, independente das particularidades de sua existência, a condição de ser iluminado e cósmico. As religiões não querem isso. O que elas querem e praticam é exatamente o monopólio da intermediação entre o transcendente e o mundano, entre o mistério e a materialidade. E para isso precisam nos submeter.

Outro meio que igualmente promete nos guiar rumo à felicidade é a ciência e sua filha dileta, a tecnologia. Esta difere da religiosidade dogmática, porque oferece ao homem esperanças palpáveis, mensuráveis, mundanas, contrapondo-se à submissão em troca de uma futura redenção proposta pelas religiões. Embora tenha o mérito de colocar o gênero humano frente à sua realidade terrena, carregada de dores e desafios cotidianos a serem concretamente superados, a ciência alcança seu limite quando ignora o caráter transcendente da espécie humana, que, afinal, é a destinatária das facilidades e benefícios que produz.

Desta forma, tanto quanto a religiosidade dogmática, a ciência nos frustra ao expor, ao fim e ao cabo, sua insuficiência como meio de se praticar um novo modo de agir com vistas à obtenção da dignidade de viver, e que seja pleno de senso de valor existencial e de alegria. Ainda assim, neste liminar de um novo Ciclo Cósmico de 25.920 anos (representado por uma volta completa do Sistema Solar ao redor do centro de nossa galáxia), é preciso que todos saibam, ou venham a saber, que os meios não estão esgotados.

Há, por exemplo, este a que sempre me refiro, cujo objetivo é a conquista da maturidade de nossa espécie, e que, de certa forma, é a simbiose de uma religiosidade antidogmática com uma ciência sem arrogância. Sim, porque dessa religiosidade tolerante aproveita o sentimento puro que ela nos pode proporcionar, ou seja, o de que somos ínfima partícula carregada de transcendência (no sentido espiritual e energético do termo). E isto sem que devamos nada a alguém ou a alguma coisa. Ou seja, ter/conquistar essa consciência não demandará adoração, submissão e expiação por alegados pecados.

Já da ciência aproveita os recursos que ela tem nos proporcionado, e mais ainda proporcionará. Tanto aqueles que minoram os sofrimentos e produzem facilidades para a vida prática, quanto os que aceleram a interação entre as pessoas, permitindo que a comunicação seja disseminada de forma instantânea e global. O momento planetário que vivemos assemelha-se ao que resultou do modo de impressão de tipos móveis, inventado por Johannes Gutenberg (1400-1468). Aquele está na raiz da Renascença, da Reforma Protestante, da Revolução Industrial e do modelo de civilização que erguemos até hoje; este, a que me refiro, possui o poder de remodelar a presença do gênero humano na Terra, através da criação e da prática dos meios e modos de obtermos, afinal, a nossa imprescindível maturidade.   

É por isso que, ainda e sempre, me impressiono o quão homens reconhecidamente inteligentes se recusam a enxergar a incapacidade, até mesmo teórica, do que denominam de "internacionalismo proletário" para resolver o problema central da espécie humana: a nossa insegurança existencial, que se traduz em desunião, intolerância, preconceito. A esses respeitáveis indivíduos, sugiro ler e levar a sério o que tantos sábios já disseram sobre a relatividade absoluta das coisas que nossos sentidos alcançam. Por exemplo, Hermann Hess, em sua obra "Sidarta":

"Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la. Esse fato, já o vislumbrei às vezes na minha juventude. Foi ele que me afastou dos meus mestres. Uma percepção me veio, ó Govinda, que talvez se te afigure novamente como uma brincadeira ou uma bobagem. Reza ela: 'O oposto de cada verdade é igualmente verdade'. Isso significa: uma verdade só poderá ser comunicada e formulada por meio de palavras, quando for unilateral. Ora, unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. Tudo aquilo é apenas um lado das coisas, não passa de parte, carece de totalidade, está incompleto, não tem unidade. Sempre que o augusto Gotara nas suas aulas nos falava do mundo, era preciso que o subdividisse em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e redenção. Não se pode proceder de outra forma. Não há outro caminho para quem quiser ensinar. Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe no nosso íntimo, não é nunca unilateral. Nenhuma criatura humana, nenhuma ação é inteiramente Sansara nem inteiramente Nirvana. Homem algum é totalmente santo ou totalmente pecador. Uma vez que facilmente nos equivocamos, temos a impressão de que o tempo seja algo real. Não, Govinda, o tempo não é real, como verifiquei em muitas ocasiões. E se o tempo não é real, não passa tampouco de ilusão aquele lapso que nos parece estender-se entre o mundo e a eternidade, entre o tormento e a bem-aventurança, entre o Bem e o Mal."

Queremos salvar o mundo (e nos salvarmos, como espécie)? Então, temos de parar de sonhar acordados e acordar deste pesadelo individualista possessivo e/ou internacionalista proletário. O internacionalismo vai além de adjetivos, de qualificações redutoras e excludentes. A hora do amadurecimento sempre esteve posta, em todos os instantes da presença humana na Terra, mas esta de agora é clara e incontornável.

(*) Do livro "Globalização e internacionalismo: atualidade do Manifesto comunista", citado por Michael Löwy, sociólogo e filósofo franco-brasileiro, pesquisador do pensamento marxista, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, publicado em forma de artigo no site A Terra é redonda --- https://aterraeredonda.com.br/marx-esse-desconhecido/ 


O século deste homem

Tomando-se o entendimento de que os séculos são apenas uma convenção, um recorte temporal arbitrário da grande História (a cósmica, de onde se origina a materialidade e o espírito humano) e da pequena História (esta em que os humanos existem e agem), ouso afirmar que o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva é exatamente isso: o homem de um século que, a meu critério, se iniciou na primeira metade dos anos 1900.

Os mais céticos, e principalmente aqueles que sofrem de complexo de inferioridade, hão de perguntar: Mas, por que ele seria merecedor de tal distinção? Simples: porque Lula da Silva é um sábio intuitivo e prático dedicado ao difícil campo da Política, que é a arte de exercer o poder e a mais importante ferramenta em prol da conciliação da espécie. E porque realiza esse seu trabalho com sabedoria, num período singular, de inflexão civilizacional, em que esse tipo de qualidade mais necessária se faz.

Lula da Silva não está lá nas alturas tibetanas, confinado a um templo, jejuando e orando pela salvação da Humanidade. Ele está entre nós; é um ser mundano, frequenta a planície da vida pública nacional e planetária, expõe-se a todo tipo de crivo e mantém uma irretocável coerência, mesmo quando (aos olhos de seus críticos mais ferrenhos) erra.

Ah, mas desta forma você está pintando um deus, alguns poderão dizer. Bom, esse é o x da questão: Lula da Silva não é um deus no sentido religioso, ou mesmo mitológico, apartado das vicissitudes humanas. No entanto, ele e seres como ele (existentes em graus diversos de eficiência, espalhados pela superfície deste planeta) encarnam a essência do ser humano ideal, aquele que compreende e assume um compromisso com o futuro, sabendo que pode e deve agir no presente. Com o máximo de flexibilidade e o mínimo de erro.

O método de Lula da Silva é bem conhecido: ele acumula conhecimentos práticos (os teóricos, resultantes de suas leituras e conversas, ele mastiga, processa e os utiliza para enriquecer sua capacidade intuitiva) e se movimenta em sintonia com a realidade que está à sua volta. Ele não briga com os fatos da vida, pois sabe que estes são sempre dinâmicos e multifacetados.

Seu objetivo intuitivamente construído e consolidado, que se apoia nos sempre citados conselhos de sua mãe, Dona Lindú (sua referência de força/perseverança e, não por acaso, uma pessoa de carne e osso, e não uma construção mental), é a busca do primado da condição humana. Para quem ainda não sabe, isto significa dizer que Lula da Silva combate o melhor combate que todo ser humano poderia combater: a luta pela continuidade de nossa espécie, preservando condições dignas a todos, sem exceção.

Os indivíduos engajados nessa guerra cósmica, juntamente com Lula da Silva, não pensam (apenas) em si e nos seus. Pensam na espécie e, ao mesmo tempo em que momentaneamente se desesperam frente às incompreensões, e que às vezes se abatem diante das fraquezas de seus semelhantes, sabem relativizar tais falhas e falsetas e delas são capazes de extrair o ânimo, o combustível para perseverar em seu caminho; talvez apressando ainda mais o passo.

Graças às conjunções cósmicas, neste século de Lula da Silva é possível falar dessas coisas sem causar muita estranheza, tão desesperadas estão as pessoas em todos os recantos da Terra. Desesperadas e ansiosas por encontrar um sentido para suas vidas e uma razão para as dores e os desafios que a existência e o cotidiano lhes/nos impõe. E a Grande Nova, como diriam os cristãos, é que nada de novo resta a ser dito; o que nos cabe agora, enfim, é exercitar o livre arbítrio da forma que nos for possível, da forma como Lula da Silva faz.

Felizmente, e infelizmente, o homem deste século teve e tem tido a oportunidade de ocupar posições de poder, o que lhe permite pôr em prática a sabedoria intuitiva que ele vem construindo e aprimorando. O 'infelizmente', aqui, se refere ao fato de que no exercício dessas 'posições de poder' ele precisa lidar como a realidade cambiante e multifacetada, estando sujeito a desgastes e incompreensões.

Mas esse 'infelizmente', além de incontornável, também é relativo, porque, ao avançar apesar dos 'desgastes e incompreensões', Lula da Silva é didático e, ao mesmo tempo  como me referi acima , ganha forças para os passos seguintes rumo àquele seu objetivo de construir o primado da condição humana. Esse indivíduo não é um deus; isso não existe. Ele é um exemplo, e ao alcance dos nossos sentidos e de nossa compreensão.

Isso é o que eu penso sobre Lula da Silva. E digo mais: graças ao Cosmo esse indivíduo existe neste instante planetário. E ainda bem que ele é brasileiro, embora, de um ponto de vista pietro-ubaldiano*, talvez ele só pudesse mesmo ter surgido no Brasil, esta terra de tanta miscigenação, riquezas e possibilidades (e que recentemente passou por uma desafiadora prova de fogo, que foi a tentativa de destruição dessa sua condição transcendental).

(*) Pietro de Alleori Ubaldi (nascido em Foligno, Itália, em 1886, e morto em São Vicente, litoral de São Paulo, Brasil, em 29 de fevereiro de 1972) é definido como um "filósofo e pensador espiritualista". Mas, como já disse em outra oportunidade, esse é apenas um rótulo que lhe impuseram, pois sobrepõe seu discurso, em certos momentos espiritualista, embora não-dogmático, àquilo que de verdade é o cerne de suas ideias: a busca da emancipação do homem.