A quem interessar possa

É comovente a crença que alimentamos — mesmo alguns de nós, que estamos dentre os céticos e/ou cínicos  sobre os valores desta civilização.

Talvez se trate mais de uma esperança, de um desejo ditado pelo nosso irremovível humanismo. Talvez.

E no entanto a realidade se apresenta de forma clara, sempre clara, não obstante os filtros desejosos que possamos usar para interpretá-la.

As ilusões que construímos nos envolvem como se camadas de uma cebola fossem. Mas são bolhas. Bolhas translúcidas, intercomunicantes.

Desde a mais interior — aquela que escapa da nossa anterioridade reptiliana governadora dos nossos medos —, desde a mais íntima dessas bolhas, repito, até a mais externa, o do gênero humano.

Ser, família, religião, epiderme, etnia, sexualidade, classe social, profissão... No interior de cada uma dessas bolhas adotamos os comportamentos correspondentes; assumimos as expectativas que nos cabem.

A intercomunicação entre elas nos proporciona a sensação de um ideal possível, concretizável, a qualquer momento alcançável. E com ele acalentamos nosso espírito.

Mas, qual o quê! Tudo, ao fim e ao cabo, revela-se um espelho de mentiras, meias verdades, truques psíquicos e sociais, aparências que fazemos questão de querer ver, acreditar e disseminar, retroalimentando crenças e esperanças.

Não está dando certo; há mais de 300 mil anos não está dando certo. E não dará certo, por mais séculos e milênios que dispusermos para perseverar neste modelo de civilização.

Como já disse em meu livro "Do que se fazem as salsichas" [cuja íntegra está postada neste blog], o gênero humano precisa ser educado para o Cosmo, e não para o mundo.

Constatar isto é libertador, mas também é um desespero. Parece que padeço de mansa loucura, e sobre ela falo sozinho, prego para o deserto.

E no entanto, como outros já disseram, é assim que são as coisas. Do universo e da nossa existência.

"Do que se fazem as salsichas", em capítulos

O livro "Do que se fazem as salsichas", cuja primeira versão em papel publiquei pela Amazon em setembro de 2020, está agora à disposição neste blog, postado em sequência.

Quem desejar ler o livro de uma só vez, sua íntegra pode ser adquirida (pelo valor mínimo determinado pela Amazon) na versão eBook ou impressa. Os links estão abaixo.

Aos leitores, daqui e das versões eBook ou impressa, tenho o dever de informar, no entanto, que esse livro se trata de um trabalho 'em construção', como se diz.

Enquanto puder, me dedicarei a aprimorar e clarear o que já escrevi, atento à evolução do conhecimento na antropologia, genética, biologia, neurociência, psicologia evolutiva e cibernética, principalmente.


ÍNDICE


I - Aquilo que sinto está fora

II - Constituo um infinito

III - A linguagem codificada

IV - A História é uma construção

V - — Bom dia! Já tomou café?

VI - E se o presente for um estado de convergências

VII - A síntese proposta por Marx-Engels

VIII - Abro parênteses

IX – De quê substâncias

X - A luz é a nossa referência primitiva

XI - Nas sociedades tribais, a educação

XII - Acabo de ler a notícia

XIII - Não tenho a veleidade ou a ingenuidade

XIV - No final dos anos sessenta do século passado

XV - Diz-se que o nosso físico é resultado

XVI - Heróis e modelos a seguir são

XVII – É impossível cavalgar o Caos

XVIII - Quando a gente tem cinco anos, os muros



Posfácio

"Do que se fazem as salsichas" - Brasil 

"Do que se fazem as salsichas" - No exterior

"Do que se fazem as salsichas" - Dedicatória e Introdução

À minha companheira Sílvia, que sempre esteve um passo à frente.

Aos filhos Mariana, Julia e João Paulo.

Aos meus netos Gabriela, Sara, Lucas, Noah e Otto.

Aos meus irmãos Ana, Carlos e Inês.

À minha mãe, América.

Ao meu pai, Oswaldo.


Introdução

Tudo o que somos foi, primeiramente, marcado nos tecidos dos nossos cinco sentidos, a partir do instante primordial da existência da coisa que viria a se tornar o ser humano. Carregamos, desde sempre, as cicatrizes colecionadas pela espécie, acrescidas das marcas adquiridas e por tantos motivos, às vezes inconfessáveis, legadas daqueles que nos antecederam e transmitidas àqueles que nos sucedem. Somos esta máquina que aprende e ousa produzir facilidades, em desafio à finitude a que estamos confinados. O que nos lança adiante é a superação do medo. Ele é o nutriente dos nossos nervos, o que impulsiona nossa história. Por causa dele somos bravos e esperançosos. Saber que podemos errar tem sido o maior trunfo do homem, quase um flerte com o cinismo. Quantos lances ainda nos restam? Todos os que tivermos a capacidade de jogar, enquanto jogo houver. Temos sofisticado ferramentas e aprimorado habilidades, mas ainda não sabemos discernir um caminho frutífero. Falta-nos a maturidade. Esta, nós teremos de conquistar.

"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo I

Aquilo que sinto está fora; isto, que apenas percebo, está dentro. No meio, o ente que apreende o de fora e vislumbra o de dentro; intersecção de dialéticas enredadas: sentir com significar; pensar com produzir; interpretar com reagir. Entre outras tantas possibilidades cruzadas simultaneamente agora.


Volto-me para o dentro, refém deste imã cuja força atrativa está na elaboração e questionamento acerca do que é sentido. E dentro estando, mergulho neste turbilhão onde, sob agonia, busco pontos, linhas, porções de débeis saberes e frágeis certezas.

Pressinto que tal intra movimento é também expressão volitiva e continuo aqui, em transe, animado pelo breve vestígio do eterno; tocado pelo impulso de criar um caminho, uma rota, um mapa que me conforte, ao menos, nesta queda inevitável rumo àquilo que apenas percebo, instigado por aquilo que sinto. De imediato, a primeira lei se impõe ao ente: preservar para ter. E também o primeiro mistério: perenizar o perecível.

A lei indica as rotinas a praticar em favor da via do prosseguimento: resguardar todas as dimensões do ente — as de fora e as de dentro. O mistério instiga o paradoxo de acreditar desconhecendo a quê: aceitar a possibilidade do vir a ser — conviver com a contradição.

Não me cabe, nem a mim comporta resistir ao fado imposto pelo impulso de criar aquele caminho entre o dentro e o fora e o fora e o dentro. Tal destino se faz presente desde sempre; traz regras; produz ferramentas; elabora instrumentos, dentre estes, quem sabe? seja eu, aqui de dentro, o mais presunçoso, pois me concedo o direito de reivindicar — meramente reivindicar — certo poder de controle sobre o modo de caminhar.

Esta concessão é a minha fraqueza, meu íntimo segredo, embora relativo a alguma conveniência cósmica, sei lá… Afinal, as coisas que se movem — e criar um caminho no espaço e no tempo é, sobretudo, mover-se — necessitam do que se lhes atribua movimento; se esse elemento de estímulo configura-se um auto-engano plenamente admitido, o que se há de fazer?

O poder que reivindico — tão-somente reivindico —, eu, ente-turbilhão, o exerço como se de fato o possuísse, mesmo que seja um poder irreal, mero motor do espírito, repito.

E, no entanto, possuo uma consciência concreta, material, viva. Sinto-a porque tenho um corpo manifesto, instrumento multissensorizado que me possibilita utilizá-la, a consciência. Experimentá-la, capturar os efeitos de seu uso e aprender a partir das sensações e resultados que isto em mim produz.

Movimentos, cores, sons, gostos, odores, formas, texturas são fatos exteriores a mim, tanto quanto referências a me distinguirem do que mais exista. Muitas dessas presenças, que me acompanham e me validam como ente autônomo, restam imóveis; outras estão soltas na superfície sólida onde também me encontro, ou se acham nela encravadas.

Essas coisas-imóveis, ou que não se movem por si mesmas, compõem o maior dos conjuntos e massas que me cercam. É aquele que predomina, que é contínuo e unido, como se constituísse um corpo único, orgânico, em meio ao qual me desloco e de onde recolho coisas que saciam meus desejos, atendem à lei do prosseguimento, ou que transformo em instrumentos para tal.

Outro conjunto é o das coisas-móveis, as que agem com seus próprios meios, emitem ruídos, diferenciam-se por formas e comportamentos imprevisíveis. Muitas se mexem em volta de mim lentamente ou correndo, mergulhando, flutuando ao meu redor.

No universo deste ente-turbilhão, que sou, e de minhas relações com
as coisas-imóveis e as coisas-móveis, constato a existência de elementos fluídos, líquidos, ardentes e sólidos, entidades que se põem ao largo de meus desígnios, pois estão libertas de vontades ou determinações, sendo apenas força, ímpeto de existir, energia e essencial provisão.

O primeiro deles, o fluído, introduz-se por todos os recantos e paira num imenso vazio, translúcido se dominado pela luz intensa do grande círculo cegante ao alto, mas que na ausência deste — que não me deixa fitá-lo e me escurece e visão, quando tento — se enche de pontos luminosos, infindáveis, piscantes no escuro, acompanhados, às vezes, por outra bola de luz, esta, no entanto, amigável, fria, repousante de se ver, admirar e sonhar.

O corpo líquido, segundo dos elementos, adiciona-se ao meio e às coisas-imóveis e móveis, impondo-se pela dinâmica de seu movimento; ocupando os espaços externos e internos a mim, por complemento ou por excesso.

Atado e dependente do combustível que o mantém, o elemento ardente concentra-se em focos, que se espalham ou restringem, consumindo o que ali e aqui antes havia e era presente no sólido, o terreno das coisas-imóveis.

Sei que existo porque estou imerso em realidades assim, que me tocam, preenchem, aquecem e molham, queimam e envolvem; porque estou por todos os lados exposto — embaixo, entre, e acima incluídos. Mas sou além das impressões que capturo, e das outras apenas intuídas.

Olho em volta e percebo a presença de abundantes e variados conjuntos de coisas postas de pé, como me encontro agora, embora externamente distintas de mim e distribuídas ao acaso, ou de maneira uniforme, obedientes à direção desse fluido translúcido, cuja existência se manifesta nas coisas e que vem de não sei onde, seguindo a cantos que desconheço.

Além daquele desejo primevo de existir e para isso preservar, e de acreditar sem conhecer, não sei a quê sirvo. Ou, talvez, presuma: sou um experimento entregue ao seu azo, ao sabor da circunstância, fruto da ocasião. As obras que produzo são, assim, meros ritos de passagem, permanente iniciação. Não sei de onde vim. Desconheço o quê e a quem sou dado existir. Ignoro tal existência.

Temo, reluto, mas afinal e sempre me convenço de que ente-turbilhão é isto, substância em espiral. Meus movimentos alternam saltos, corridas, andadas curtas — tudo executado com alguma dificuldade e repetido cansaço, embora perceba que estou cada vez mais forte e resistente. Ando, agora, me apoiando apenas sobre os dois membros posteriores e assim posso enxergar mais alto e mais longe.

E não sou único. Vejo outros seres, distintos de mim em formas e propósitos, movimentando-se erráticos, ainda que tenham por rumo algo que também estou a buscar: conservação e proteção nesta existência. Digo, com ênfase: saciar os desejos primários é um de meus objetivos permanentes. Esta é a lei. Outros iguais a mim se aproximam e me olham curiosos, suplicantes de respostas, mas, como eu, condenados a esta solidão. O que somos? O abismo.

[A evolução humana ainda não está suficientemente explicada. Segundo os mais recentes estudos, ela tem origem nos primatas (65 milhões de anos) e começa a se manifestar nos hominídeos (6 milhões de anos), dentre entes o Homo sapiens. Inúmeras disciplinas dedicam-se a esse estudo, da antropologia, à arqueologia, à genética, à linguística. E o que hoje se sabe é que essa evolução deveu-se, aparentemente, a uma sequência de mudanças anatômicas ocorridas naqueles seres originários. O bipedalismo liberou as mãos para colher e transportar alimentos; proporcionou melhor distribuição e irrigamento sanguíneo a todo o corpo; permitiu o deslocamento mais rápido e, assim, facilitou a caça e a ampliação do campo de visão, além de ter promovido inúmeras adaptações ósseas e de articulações. A encefalização (o cérebro dos chimpanzés tinha 600m³, o dos neandertais até 1.900m³ e o do homem moderno cerca de 1.330m³), proporcionada pela consumo de carne e amido, bem como o cozimento dos alimentos, foi fator determinante para o desenvolvimento da aprendizagem e, em conjunto com a mudança da estrutura cerebral, aumentou a inteligência social, em consequência do crescimento das habilidades empáticas e da necessidade de interação entre os membros do grupo com vistas à caça, por exemplo; ampliou a cognição e possibilitou o desenvolvimento da fala. A Oposição ulnar (contato do polegar com o dedo mindinho da mesma mão), habilidade única no gênero homo, que permitiu manipular objetos e os agarrar com força e precisão, foi fundamental para a produção e uso de ferramentas (Homo habilis, 2,4 a 1,8 milhões anos atrás; Homo erectus, 1,8 a 1,25 milhão de anos; Homo sapiens, 300 mil anos).]


"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo III

A linguagem codificada é um confortável obstáculo ao avanço da nossa espécie. Com a invenção e o desenvolvimento dos idiomas falados e, mais ainda, com suas representações escritas e depois amplamente reproduzíveis, fomos capazes de exprimir conceitos, transmitir experiências, disseminar ensinamentos, definir contratos, construir uma civilização.

Porém, embevecidos com os sons que passamos a produzir, as ideias e os conceitos expressados, deixamos de perceber que ela, a linguagem, é incapaz de transmitir a complexidade da compreensão que os nossos sentidos e intuição, associados, alcançam. Como tantas (todas?) as invenções humanas, a linguagem é limitada, enganosa, intangível, imensurável em seu significado.

Alguém já questionou a precariedade da linguagem para cumprir plenamente seu papel como código a serviço do entendimento entre as pessoas, mesmo aquelas detentoras de repertórios equivalentes e pertencentes aos mesmos estratos culturais e sociais, ainda que contemporâneas das mesmas experiências.

Surpreende-me, em particular, a dificuldade que enfrentam pessoas de extremo e reconhecido saber em se fazerem entender, isto é, explicitar com clareza as ideias que buscam transmitir. Ao se dirigirem a um amplo auditório, comunicam-se, pela escrita ou fala, como se se exibissem diante de néscios, a quem devessem impressionar ou a quem desejam distanciar-se por meio do jargão exclusivo de suas especialidades.

É tão evidente essa dificuldade que me inclino a acreditar não se tratar exatamente disso, mas de uma escolha racional plenamente exercida, mesmo que ainda inconscientemente adotada, fruto de um tipo de deplorável corporativismo. Sustento essa minha crença na premissa de que todo teorema plenamente demonstrado é passível de ser explicitado a qualquer público, ainda que tal tarefa demande um sem número de esclarecimentos e esmiuçamentos, sempre com o uso dos vocábulos menos controversos (para cada época e meio social) e a estrutura gramatical adequada (ou seja, o código mais lógico).

É possível questionar a eficácia de um aparelho eletrônico, até sua utilidade; é possível duvidar do valor nutricional de um alimento; pode-se (e deve-se) questionar, por exemplo, os atos dos agentes a serviço do Estado, como a legalidade do impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ou a qualidade da sentença judicial proferida contra o cidadão brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, no caso do apartamento do Guarujá (litoral de São Paulo, Brasil), entre outras.

Todos os atos e produtos humanos são passíveis de avaliação e quase sempre revelam-se falhos, ou fraudulentos. Já a linguagem, ela própria uma das primeiras e fundamentais invenções humanas, condição indispensável para a evolução da nossa espécie (embora ainda se possa ter dúvidas se de fato isto que temos é evolução), esta resta majestosa, depositada num Olimpo inquestionável. E, no entanto, porém, não obstante, a despeito da crença cega em seus poderes, trata-se de uma ferramenta insuficiente e, por isso, se não fracassada, ao menos passível de muitos aprimoramentos.

Quando nos dedicamos a quaisquer tentativas de produzir esclarecimento, o que brota dali (e daqui, reconheço!) são borrões, rascunhos de percepções, interpretações equivocadas. Por isso, construir uma comunicação por meio exclusivo das formas de linguagem de que dispomos pode até ser nobre tentativa, mas, convenhamos, é uma tarefa frustrante. Vejam estes tempos que nos cercam. Quanto entendimento pode ser obtido, neste exato instante, por meio do uso da linguagem falada e escrita, em qualquer mídia (media) que se queira utilizar? Não sei quanto.

O sempre lembrado professor João Itagiba, que me apresentou à Filosofia no final da década de sessenta do século passado, no Colégio Canadá, em Santos (litoral de São Paulo, Brasil), dizia, por exemplo, que o Inglês é um idioma precário, pobre de nuances, mais adequado ao ambiente dos negócios, desprezível para quem, como ele, devia seus conhecimentos a fontes gregas, latinas, germânicas, francesas. Penso agora que o professor errou (ou deixou de acertar), pois nenhuma dessas formas de comunicação (idiomas) foi capaz de lançar luz sobre a questão que realmente nos interessa. Para começar, pra que serve a porra da nossa vida?

Não culpemos nossos antepassados mais remotos, aqueles que do grito, da associação de ideias primárias e da mimetização dos ruídos produzidos por seus próprios corpos e pelo ambiente que os cercava desenvolveram magníficos códigos, significantes de tantos sentimentos e instigadores de tantas ações. Foram heroicos aqueles seres. Graças ao modo e ao método com que responderam ao desespero de suas existências, alguma oportunidade civilizatória se abriu para nossa espécie.

Mas, o fato é que, veja, estamos encarcerados pela linguagem, presos ao que os textos e as falas podem, precariamente, nos dizer. Nem mesmo o que nos chega por intermédio de imagens e de sons organizados, como a pintura e a música (também elas linguagens); nem mesmo o que nossos músculos espontaneamente expressam (o que se apresenta como uma outra forma de comunicação) somos capazes de valorizar, pois a linguagem lida/ouvida tornou-se a nossa prisão, a chancela do nosso (des)entendimento.

Com a linguagem constituímos um modo de ser e sobreviver, e a isso denominamos civilização. Mas não fomos capazes, ainda, de aceitar a fragilidade de sua simbologia para enfrentar a grande tarefa de nos situarmos no espaço-tempo. Daqui de dentro deste código, no mesmo instante em que o utilizo e enquanto agradeço a tantos que o criaram, desenvolveram e aperfeiçoaram, não posso deixar de nele reconhecer os contornos de um cárcere suave. E, no entanto, um cárcere.

A tecnologia, mãe do utilitarismo, salta à frente e cria apps capazes de traduzir frases entre diferentes línguas, capacitando-nos à comunicação básica, e mais uma vez nos oferece uma ilusão: a de que assim ampliamos o entendimento entre os diferentes grupos humanos. Triste engano. Repete-se mais uma vez e de novo a quimera oferecida pelo desenvolvimento da internet e, depois, pela criação das redes sociais.

Não se trata de condenar a tecnologia, muito menos a telecomunicação digital globalizada. Mas é fundamental que estejamos cientes da relatividade desses recursos como meios efetivos de comunicação, para além da própria linguagem que desenvolvemos ao longo de milênios, bem como alertados para os danos às relações entre as pessoas produzidos por essas plataformas virtuais, como hoje ocorre aos bilhões mundo afora.

A propósito da oposição já presente em nossas vidas, entre a experiência interpessoal e a novíssima, intermediada por máquinas e aplicativos, lembro-me dos Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro, em 2016, onde o que melhor impressão causou foi a empatia e a receptividade do brasileiro com as pessoas que nos visitavam, vindas de todo o mundo.

Vendo o que o Japão (próxima sede dos Jogos Olímpicos) nos apresentou ao final da cerimônia de encerramento dos Jogos do Brasil, em 21 de agosto de 2016; lendo as primeiras notícias do que nos espera em Tóquio (quando a pandemia de Covid-19 permitir), vejo que vivemos uma radical transição civilizatória marcada pelo fim das relações humanas diretas, aleatórias, intuitivas, emocionais, criativas.

Em seu lugar, vai se estabelecer o que já está aí, bem desenhado, pela cultura pokemon-go: a previsibilidade codificada, livre do imponderável, sem as surpresas das relações inesperadas, sem os sustos das esquinas, sem sorrisos, sem gargalhadas e, certamente, sem vaias deseducadas. No lugar de tanta humanidade, a robótica nos conduzirá a práticos hotéis, espetaculares estádios, precisos assentos, diversificados restaurantes, passeios encantadores e, se quisermos, mesmo, a “proibidas” diversões.

Tudo isso sem que a nossa comunicação básica, prática e utilitária sofra os percalços da diversidade linguística. Sim, porque até lá teremos adicionado a alguma parte do nosso corpo um gadget que traduzirá para o idioma do portador o que afinal se precisa saber para ir daqui ali, o que comer, o que dizer quando alguém gostar de você. “Brave new world” em acelerada gestação tecida por algoritmos proprietários, inacessíveis. Basta de amadorismo! Welcome corporations of the new era.

Não estou melancólico, nem antecipadamente saudosista. Este é, sim, o caminho do homem. Nossa espécie haveria de passar, inevitavelmente, pelo deslumbramento tecnológico. Estava, está “escrito nas estrelas” que essa é mais uma síntese da eterna dialética vislumbrada por Hegel(?). Não será o fim; sequer o início do fim, como alguém definiu um começo que não se destina a ser conclusivo.

Por isso e pelo que virá — inclusive as chuvas de meteoros artificiais, em lugar dos superados fogos de artifício; a celebração galáctica, imposta-subjugadora, ao invés desta terrena, explosiva-libertadora — penso que o grito que restou dos dias olímpicos brasileiros foi de certo e incompreendido desespero.

[A origem da linguagem ainda está em disputa. Alguns estudiosos sustentam que ela evoluiu ‘a partir de um sistema pré-linguístico existente entre os ancestrais pré-humanos’ (continuidade); outros, que é um ‘traço humano único, incomparável a qualquer outro encontrado entre os não humanos, e que deve ter surgido repentinamente na transição entre os pré-hominídeos e o homem primitivo’ (descontinuidade). Dessas duas, a tese da continuidade predomina, com variações de entendimento: faculdade inata precedida pela cognição animal; ferramenta socialmente aprendida, desenvolvida a partir da comunicação animal, gestual ou vocal. O fato é que ‘não existem registros históricos diretos do desenvolvimento da linguagem, nem processos similares a serem observados hoje’ capazes de sustentar qualquer das propostas em discussão. As análises apontam, no entanto, que a linguagem vocal teria surgido há pelo menos cem mil anos. Já a linguagem escrita data de aproximadamente 7000 a.C.]


"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo II

Constituo um infinito, construo uma ilusão, tendo a dizer, de novo pensando nos passos que me trouxeram até aqui, pois não estou longe do instante da partida, o do transe entre o dentro e o fora o fora e o dentro.

Talvez ainda possa remontá-los, os passos — quem sabe? ou quem sabe seja esta a minha sina, a do eterno retorno? —, para que não se percam de vez as delicadas tramas que sustentam a insensatez deste frágil equilíbrio. E, no entanto, não sou mais um agente da contemplação, um submetido ao abismo. Tenho o ímpeto de ir. Sinto a dor de ser. Devo me esforçar a isso, se desejo mesmo o que espero.

Quero o que ali está, abatido, cercado por seus iguais. Se eles comem sofregamente pedaços arrancados da coisa-móvel agora inerte, e parecem satisfeitos — porque me olham de soslaio e se movimentam com reprovação e ameaça quando me aproximo —, eu, ente-turbilhão, também posso fazê-lo. Quero. Tenho as ferramentas adequadas. Sou ágil, sou forte e quero. Mais: sinto que preciso

Afastem-se! Deixem-me ter um pedaço disso… Afastem-se! Já viram do que sou capaz, afastem-se! Querem meu grito? Pois aí o tens! Grito! Bato! Bato! Rasgo! Bato! Grito mais alto! Este grito lhes diz: afastem-se! Isso, obedeçam! Afastem-se! Não os quero por perto! Esta coisa-móvel-agora-inerte é só minha! Minha! Vão para longe!

Quero este pedaço… Como, engulo esta coisa quente, encharcada deste líquido espesso, atraente, aromado, que molha e se adere a mim; irresistível… Sim, é bom comer pedaços da coisa-móvel-agora-inerte. Conforta meu corpo, aquieta meu ânimo. É bom! Sim! Sim! Sim! Sim! Sinto-me saciado.

Venham, meus-iguais; cheguem-se para cá, aproximem-se! Vejam isto, arranquem e comam pedaços! Fartem-se! Isso, assim! Mais, comam mais! Não se importem com aqueles lá; eu os afastei, espantei. Eles estão longe e só virão quando sairmos daqui. É bom! Gostam? Estão satisfeitos? Agora sabemos o quanto isto é bom. Precisamos disto…

O grande-círculo-cegante ao alto vai se ausentando. Eu e meus-iguais estamos quietos, encostados por aqui, por ali e mais adiante; sonolentos. Isto nunca nos aconteceu assim — ficarmos fartos, pesados, bastados.

Eu, ente-turbilhão, permaneço excitado. Ainda penso nos acontecimentos de antes, quando comemos grandes pedaços, muitos pedaços encharcados e quentes, arrancados da coisa-móvel-lá-inerte. Sinto que foi bom e que precisamos disto. Precisamos porque ficamos mais fortes, mais capazes após comê-los.

A coisa-móvel-quando-inerte é bem diferente das sobras de coisas-abandonadas-imóveis largadas por aqueles-outros; coisas que cheiram diferente, que nos põem no chão e nos fazem urrar de dor depois que, por indolência, as comemos.

Alerta! Gritos vêm dali! Vamos! Venham todos ver o que está acontecendo… Vejo um-meu-igual lá longe, inerte, abatido, cercado por aqueles que antes combati. Afastem-se! Não queremos vocês aqui! São muitos, agora, aqueles-que-antes-combati. Eles não me atendem; parece que nem me ouvem. Pedaços do meu-igual-agora-inerte são comidos pelos-que-antes-combati. Nada posso fazer. Nada podemos fazer, nada. Nada.

Meus-iguais se afastam, mas alguns relutam. Estão famintos; querem pedaços do nosso-igual-inerte. Eu, ente-turbilhão, também quero, pois o cheiro que vem de lá me atrai, é o mesmo de antes. Sinto fome. Tenho o desejo, mas não posso me aproximar. Os-que-antes-combati agora são muitos e eu estou quase só; apenas uns poucos dos meus-iguais me acompanham, mas aqueles-lá são
muitos…

A grande-bola-de-luz-amigável agora domina o alto, salpicando o imenso vazio de pontos luminosos piscantes. Os ruídos se acalmam. Tudo o que era movimento cessa…

Calor. Zumbido. Ruídos inúmeros. A luz-cegante voltou e o que se encontra de fora, à minha volta, está desperto. Vejo ao longe os restos do meu-igual-ali-inerte, agora atacado por todo gênero de coisas-móveis, de todos os tipos e tamanhos: coisas que correm, coisas que flutuam no vazio, coisas que gritam, coisas que zoam.

Um caos impera e nos afasta daqui, tangidos pelo cheiro, agora rejeitado, vindo dos restos do meu-igual-lá-inerte. Caminhamos rumo ao grande-líquido, pois sentimos sede no fora que podemos ali saciar. Mas também percebemos sede no dentro, e esta não podemos satisfazer, porque não sabemos de onde vem, de que falta é feita, de que presença carece.

Ao meu lado, um pouco mais atrás, vai essa coisa-igual-a-mim-diferente, com cavidade ciosa embaixo, à qual nos unimos com gozo e de onde saiu meu-igual-lá-inerte. Seu corpo está inclinado para a frente. Sua cabeça, solta, oscila compassada para os lados. Sou simpático a tal movimento. Sua força sutil toca em mim o quê? O que me cabe expressar?

Sim, essa coisa-igual-diferente está mais quieta do que todos os nossos-iguais, mesmo das demais-diferentes. Ficamos assim, percebo, quando mais sentimos a sede e a fome de dentro; este é o tormento do ente-turbilhão… Quantos outros percebem?

O grande-círculo-cegante ao-alto se ausenta e a bola-de-luz-amigável ressurge. Isto acontece vezes seguidas, seguidas vezes, num sem fim que intriga. Sinto nisto um ciclo, uma repetição, igual aos desejos do fora e aos do dentro, que se apossam da minha vontade, regularmente.

Da mesma forma que sou compelido a saciar as fomes e as sedes que vêm do fora e se instalam no dentro; do mesmo modo que sou instigado a preencher as lacunas do dentro, que apenas percebo, igualmente me submeto a esse ciclo de luzes cegante e amigável, que revela e esconde as coisas móveis e imóveis do fora, carreando para o dentro toda sorte de busca por esclarecimento.

Sobre os ciclos do dentro, eu, ente-turbilhão, não tenho domínio; sou dominado, como que jogado contra pedras obtusas e seixos cortantes, atado até que outros estímulos se imponham. Sobre as coisas-externas-a-mim possuo poderes; me apodero, ou penso fazê-lo. As coisas iguais-a-mim e as coisas iguais-a-mim-diferentes agora são muitas, de diversos tamanhos e modos de agir. Todas têm sedes, todas têm fomes, todas se entreolham inquiridoras, desesperadamente inquiridoras — entes-turbilhão.

Meu-igual-saído-de-mim estava ao meu lado, antes, mas desapareceu entre as coisas-imóveis, e depois ouvi gritos, muitos gritos e um uivo… Quando me aproximei, chamado por meu-igual-condutor, vi que o-saído-de-mim estava largado, tal qual uma coisa-imóvel, e que todos comiam pedaços de si, dele, arrancados ou mordidos com força. Faminta, também quis comer, e seria bom porque tenho de preencher minha fome de fora.

Mas mantive-me distante, afastada por aqueles-lá, esperando que o-saído-de-mim retornasse para o meu lado com seus pedaços de novo inteiros. Esperei, esperei, e tudo afinal ficou quieto.

Permaneci assim, olhando a luz-amigável no alto, sempre esperando, até a chegada da dramática luz-cegante. E o-saído-de-mim não voltou; ficou lá, inerte, sem todos os seus pedaços, agora coberto por muitas coisas-móveis-pequenas; muitas.

Não compreendo. Sinto que me falta um grande pedaço no dentro. Não compreendo, mas me falta um pedaço no dentro… Um pedaço do tamanho do-saído-de-mim-inerte-lá-fora. Sinto dentro imensa fome-sede.

[As bases da evolução biológica das espécies foram legitimadas com a publicação de “A Origem das Espécies”, por Charles Darwin (1809-1882), em 1859, mas a maioria dos conhecimentos que se tem hoje sobre essa evolução surgiu apenas ao longo do séc. XX e o assunto está longe de ter se esgotado. Um oceano de questões ainda restam a serem elucidadas, dentre elas o desenvolvimento da empatia, que se sabe decorre da mudança da morfologia do cérebro, com o aumento do que os cientistas chamam de capacidade de se colocar no lugar do outro, entender sua situação, perceber seus sentimentos; a plasticidade comportamental (capacidade de responder de formas diferentes em situações distintas, ou de diferentes formas dentro de uma mesma situação); e a diferenciação física e emocional do macho e fêmea de nossa espécie, denominada Dismorfismo Sexual, que analisa, por exemplo, as razões que sustentaram o crescente vínculo entre casais, atribuído aparentemente à exigência de maior investimento parental devido à prolongada infância dos filhos”, segundo Lovejoy, C. Owen, em “Reexamining Human Origins in Light of Ardipithecus ramidus”.]

"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo IV

A História é uma construção paulatina, determinada pela satisfação das necessidades humanas básicas (fisiológicas, emocionais, sentimentais, morais), mas também pela corrupção dessas mesmas necessidades.

Foi justamente sobre esses desvios ou depravações, como queiram, mas sem o peso moralista da palavra (“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, por exemplo, é uma divertida amostra do que se passa na mente humana), que se assentou e se mantém o processo de esgarçamento das possibilidades de avanço civilizatório.

Para remediar seu curso permanente de degradamento, as sociedades primitivas desenvolveram práticas, códigos, dogmas, ritos. Em socorro às urgências da mundanidade, constituíram sucessivos e sempre mais complexos contratos sociais, dos quais resultaram diferentes modalidades de governos, com suas leis e sistemas de Justiça travestidos de defensores de todos, mas, em verdade, guardiões dos interesses privados.

São esses pilares que, adaptando-se às circunstâncias de cada momento da História, têm postergado a derrocada final da espécie, sem, no entanto, impedir que ela se degrade e desespere.

Olhemos em volta: Religião, Estado e Capital nunca foram realmente capazes de cumprir com efetividade os seus deveres para com o espírito e a mundanidade. O Estado não cuida da proteção dos interesses de todos, mas tão somente daqueles que protegem o seu status e constituem a sua burocracia; a Religião dedica o melhor dos seus esforços à preservação da ascendência mística sobre as pessoas, devolvendo resíduos de esperança àqueles que a professam; e o Capital, por definição, destina-se a produzir lucros e vantagens a uma escassa minoria.

Se o proveito dos donos do Capital não pode ser escondido, embora se dilua na impessoalidade de seus maiores detentores, o Estado e a Religião não descuidam da pompa e da circunstância, imprimindo no imaginário de seus súditos, cidadãos, seguidores e fiéis a expectativa e a crença, sempre traídas, de justiça e redenção. E assim, como já disse e não canso de repetir, mantêm aceso o fogo fátuo da irrealização do futuro que prometem.

Abaixo, alguns exemplos de necessidades e corrupções (degradações) cotidianas da nossa espécie, sem que se pretenda lhes atribuir qualquer julgamento moralista. São apenas fatos da vida:
Alimento - preservação da vitalidade
[perversão: Gula]
Repouso - recuperação da sanidade
[perversão: Preguiça]
Sexo – satisfação do prazer
[perversão: Luxúria]
Convivência - construção da segurança
[perversão: Dependência]
Honradez - defesa da integridade
[perversão: Ira]
Reconhecimento - alimento da autoestima
[perversão: Vaidade]
Generosidade - composição da harmonia
[perversão: Omissão]
Temperança - busca da justiça
[perversão: Inveja]
Economia - prática da moderação
[perversão: Avareza]
Humildade – reconhecimento da finitude
[perversão: Submissão]
E tantos outros…

[Uma Hierarquia das Necessidades Humanas (ou Pirâmide de Maslow) foi desenvolvida pelo psicólogo Abraham Maslow (1908-1970, EUA), vinculado à Psicologia Humanista, cuja tese publicada em “A Theory of Human Motivation”, de 1954, partiu da observação de macacos e do fato de que estes se comportavam com base em suas necessidades pessoais: mais agressivos, quando não tinham comida; mais sociais e dóceis após satisfazerem suas necessidades fisiológicas. Concluiu Maslow que o mesmo ocorria com os seres humanos. Na base de sua pirâmide estão as necessidades Fisiológicas: regulação dos níveis sanguíneos de sal, açúcar, proteínas, gorduras, oxigênio, cálcio, equilíbrio ácido-base, temperatura etc., elementos que definem as sensações de fome, sede, desejo sexual, sono etc. Sem a satisfação dessas necessidades nós nos tornamos agressivos e selvagens. No patamar imediatamente superior, as de Segurança: a necessidade de proteção contra a violência, catástrofes naturais, busca da estabilidade econômica. O patamar seguinte, as Psicológicas e Sociais: a necessidade de se relacionar com outros, a começar pela família, companheira/companheiro, filhos, colegas, grupos de afinidades e afiliação, relações estas que estão associadas à necessidade de dar e receber afeto. Segue-se a Estima: necessidade de reconhecimento, ter orgulho, poder, prestígio. Por fim, no topo da pirâmide, as de Realização Pessoal: a necessidade de aproveitamento do potencial de cada um, realização daquilo que se pode ser, fazer o que se gosta e é capaz, ter autonomia, independência, autocontrole, criatividade, espontaneidade etc. Embora muitos estudiosos tenham revisto aspectos da hierarquia de Maslow, nenhuma de fato a substituiu de maneira convincente e nova.]

"Do que se fazem as salsichas" - VIII

Abro parênteses para falar sobre uma questão essencialmente mundana mas vital para entendermos os termos que definem esta nossa civilização, calcada prioritariamente no utilitarismo.

Trata-se do valor, diria quase transcendental, que atribuímos aos hidrocarbonetos, alçados à condição de motores e mantenedores destes nossos tempos. Particularmente o petróleo e o gás natural.

O mês de agosto de 1859, nos EUA — quando Edwin L. Drake, o “louco”, pela primeira obteve sucesso em sua busca por petróleo —, pode ser inscrito na História como o ponto zero da inflexão da pós-modernidade. Naqueles anos, na Europa, enquanto o mundo civilizado se batia em torno de disputas teóricas e práticas sobre capital x trabalho, mal sabiam aqueles heroicos gladiadores do pensamento e da práxis que a verdadeira guerra apenas começava — a guerra da dependência dos hidrocarbonetos, uma espécie de reedição bem materialista da <<alienação da essência da vida>>, pecha atribuída por pensadores alemães à religião.

O desdobramento emblemático dessa segunda guinada burguesa — a primeira fora o próprio advento da nova classe social a partir do fim do feudalismo, no séc. XIV; das reformas protestante e anglicana; do aumento da população das cidades e da ampliação do comércio marítimo nos séculos XV e XVI, fatores que impulsionaram a Revolução Industrial —, esse desdobramento, repito, ocorreria poucas décadas adiante, no final do próprio séc. XIX, com a invenção das máquinas movidas a diesel e gasolina, o que possibilitou o advento da sociedade de massas gestada nos primeiros tempos do séc. XX e plenamente consolidada após a II Guerra Mundial.

Hoje, parece claro que a exploração dessa herança mineral armazenada há 400 milhões de anos, aleatoriamente distribuída pela crosta terrestre, sem qualquer preferência ideológica ou religiosa, afinal determinou o desenho geopolítico do planeta no século passado e ainda neste XXI. A dependência dos derivados de petróleo é origem e consequência do modo de vida contemporâneo, estando presente em todos os instantes de nossas vidas por meio de uma infinidade de produtos e serviços imprescindíveis e culturalmente definidores.

Tanto é assim, que essa matéria-prima extrapolou a sua condição de commodity para se constituir em fator de desestabilização social e política, com impactos inaceitáveis, quando de sua falta, em todos os campos das atividades humanas. O fato é que ainda não se consegue conceber um mundo sem os hidrocarbonetos e seus derivados.

Nenhuma das nações ou blocos hegemônicos destes dias — China, EUA, Rússia, União Europeia — pode negligenciar de suas fontes de abastecimento de óleo e gás, sob pena de ceder poder. Nenhuma das guerras que se seguiram ao último grande conflito mundial — quando o embate ideológico ainda fazia eco, embora a disputa por mercados e pela garantia de fontes de suprimento de energia já se impusesse — deixou de ter algum tipo de vinculação com o petróleo. Nenhum dos aspectos que compõem o modo de vida das sociedades pós-modernas deixa de pagar tributo aos benefícios proporcionados por ele, o petróleo. E, finalmente, nenhuma decisão econômica estratégica ou passo político relevante foi e é dado sem que essa variável seja primariamente contemplada. Assim sendo, cabe a pergunta enfática: O que determina os rumos da humanidade, neste momento, se não a questão do suprimento de hidrocarbonetos?

Debates sobre os controles macroeconômicos e a administração da microeconomia, discussões sobre quanto e como o Estado deve investir em saúde e educação, preocupações com o meio ambiente, gestão do uso da água, soluções para o crescimento da violência e a mobilidade urbana, sem falar nos embates ideológicos tardios… O que representam esses temas frente ao fim sempre anunciado das nossas fontes de óleo e gás? Como já se disse, “foram necessários 125 anos para que o mundo consumisse o primeiro trilhão de barris de petróleo, mas apenas 30 anos para que se consuma o segundo”.

Nesse ritmo — a Agência Internacional de Energia (AIE) prevê que a demanda mundial, de 87,4 milhões de barris diários em 2011, deverá atingir 99,7 milhões de barris/dia em 2035, uma expansão de 14% no período. E à luz do que hoje se conhece das reservas comprovadas, estimadas em 1,6 trilhão de barris pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), em 2013 —, a expectativa é de que teremos apenas meio século de abastecimento pela frente. Talvez um pouco mais.

Para esse curto período adiante podemos esperar a intensificação das convulsões sociais, dos atentados terroristas e das guerras, particularmente fomentados pela revolta do mundo islâmico contra o sistema de exploração do mundo judaico-cristão, estas mesmas originadas, alimentadas e intensificadas a partir das disputas pelo controle das grandes jazidas de hidrocarbonetos e da distribuição dessa matéria-prima para o mundo. A ponta do iceberg surgiu em 1951, quando o Irã nacionalizou a British Petroleum e os serviços secretos dos EUA e Grã-Bretanha depuseram seu presidente, Mossadegh, reconduzindo ao trono o Xá Reza Pahlevi, pró-americano.

Seguiram-se as crises de 1956, quando o Egito nacionalizou o Canal de Suez — única ligação entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, principal escoadouro de petróleo dos países árabes para a Europa — em reação ao colonialismo representado pelo domínio anglo-francês sobre o Canal; e a Guerra dos Seis Dias e a do Yon-Kippur, quando os árabes, agora organizados no cartel da OPEP (fundado em 1960), aumentaram o preço do barril de U$ 2,9 para U$ 11,65 (301% de aumento).

Naquele episódio, o perfil dos conflitos mudou do enfrentamento entre estados-nacionais contra empresas multinacionais, para a disputa entre produtores e consumidores, com o acirramento das idiossincrasias e o fomento do ódio inter-racial. Em 1979, a Revolução Xiita depôs o Xá do Irã e o preço do barril subiu de U$ 13 para U$ 34, aumento de 1.072% em relação a 1973.

Desde então, nenhum fator de desestabilização planetária tem sido mais presente do que o petróleo. Tudo o mais são evasivas ou autoenganos, formas de contornarmos a realidade dedicando tempo e espaço a problemas antigos e que nunca serão superados. Não com as soluções colocadas à mesa. Não com o império do individualismo sobre a individualidade.

[Do site da empresa Petróleo Brasileiro S.A. - Petrobras: “É praticamente impossível pensar o dia a dia sem a participação de algum produto obtido a partir da indústria petroquímica. Essa indústria, que utiliza derivados do petróleo ou do gás natural como matéria-prima, nos traz conforto e praticidade, sem que imaginemos quanta tecnologia e conhecimento estão envolvidos nas coisas mais simples. Existem produtos oriundos dessa indústria em roupas, colchões, embalagens para alimentos e medicamentos, brinquedos, móveis e eletrodomésticos, carros, aviões e até nos xampus e cosméticos. Isso se deve em parte à petroquímica, que transforma o petróleo refinado em produtos que são a base para grande parte da indústria química. As matérias-primas para os petroquímicos são a nafta, produzida nas refinarias, e o gás natural. Os produtos petroquímicos são classificados como básicos, intermediários e finais. Os petroquímicos básicos são eteno, propeno, butadieno, aromáticos, amônia e o metanol, a partir dos quais é produzida uma grande diversidade de intermediários. Estes, por sua vez, serão transformados em produtos petroquímicos finais como os plásticos, borrachas sintéticas, detergentes, solventes, fios e fibras sintéticos, fertilizantes, etc. Conheça as principais aplicações de alguns dos produtos petroquímicos básicos:

Eteno – o seu principal derivado é o polietileno que é usado na fabricação de sacos plásticos para embalagem de produtos
alimentícios e de higiene e limpeza, utensílios domésticos, caixas d’água, brinquedos e playgrounds infantis. Dentre suas outras aplicações podemos destacar o PVC, usado na construção civil, em calçados e em bolsas de sangue.

Propeno – é a matéria prima para o polipropileno, usado, por exemplo, em embalagens alimentícias e de produtos de higiene e limpeza, peças para automóveis, tapetes, tecidos e móveis. Apresenta, além dessa, diversas outras aplicações como, por exemplo, produção de derivados acrílicos para tintas, adesivos, fibras e polímero superabsorvente para fraldas descartáveis.

Butadieno – usado principalmente na produção de borracha sintética, em pneus e solados para calçados, por exemplo.

Aromáticos – são matérias-primas para produtos como o PET utilizado em garrafas e fibras sintéticas, e o poliestireno, material empregado em eletroeletrônicos, eletrodomésticos, embalagens de iogurtes, copos, pratos e talheres e material escolar.

Metanol – é insumo para produção de biocombustíveis e de diversos intermediários químicos usados, por exemplo, pela indústria de móveis e de defensivos agrícolas.

Amônia – é uma das matérias-primas para a indústria de fertilizantes, sendo usada na produção de uréia e de fertilizantes nitrogenados utilizados nas culturas de milho, cana de açúcar, café, algodão e laranja, entre outras.”]


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil 

"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo V

— Bom dia! Já tomou café?

— Ainda não, acabei de levantar; estou aqui olhando o noticiário na internet… Faz aí, pra mim. Mas não muito, porque vou querer mais depois e prefiro fazer outro. Não gosto de café velho.

— Tu és chato, mesmo! Não precisa explicar nada. Não vou fazer nem mais nem menos apenas porque você está fazendo esse discurso. Vou fazer o café, e pronto! Mais tarde, se você quiser, joga fora o resto e faz outro!
[O cotidiano depende de tuas opções e decisões? Não, nem de longe. Ele resulta de teus desejos e expectativas, no embate com os personagens passados, presentes e futuros que habitam a história corrente da tua vida; futuros, sim, porque passado e presente geram efeitos que só mais adiante se darão a conhecer.]

— Você viu toda essa cobertura da mídia sobre a morte do Niemeyer?
[Oscar Niemeyer, 1907-2012, arquiteto brasileiro, construtor de Brasília.]

— Claro! Ele demorou tanto tempo entrando e saindo de hospital que deu para preparar direitinho o obituário.

— O cara merece. Foi um grande arquiteto, bem-sucedido. Teve a chance de exercer sua integridade e fez isso muito bem.

— Pena que tudo seja apenas assunto de mídia, mercadoria. Seus bons exemplos, se houve, serão esquecidos em poucos dias.

— Obrigado! O café está ótimo! Ainda bem que você não perguntou se ficou bom de açúcar. Todo mundo pergunta isso, e depois de ter adoçado; é engraçado. Se tem dúvida, por que não serve amargo e oferece o açúcar à parte?
[Vives em função de compromissos profissionais e familiares, à espera dos finais de semana para fazer mais das coisas que gostas, expectativa essa quase sempre frustrada porque talvez não saibas exatamente quais são os teus prazeres. Talvez sobressaia o fato de que tens consciência das limitações que a vida nos impõe e que é preciso aceitar isso; a menos que se desista de tudo, o que é sempre uma possibilidade.]

— Vamos andar na praia?

— Claro! Já estou me trocando. Vamos cedo, pois ainda quero comprar frutas na feira. Precisamos comer frutas, tomar sucos faz bem.

— O quê é isso, alguma insinuação de que eu não como frutas? Ah, já entendi, foi a barra inteira de chocolate que comi ontem à noite…

— Pois é, vais entupir tuas veias, assim…

— Bom dia!

— Bom dia! Bom dia! O sol vai esquentar hoje. O melhor é andar nessa hora, mesmo. Bom passeio!

— Obrigado.

— Você respondeu ao cumprimento do zelador?

— Claro, acenei com a cabeça. Você não viu?

— Tava lendo agora, antes de sair, um artigo sobre essa movimentação que vem sendo orquestrada pela Direita, em todo o mundo. Não gosto de me deixar dominar pela ideia de complô, mas também não acredito em coincidências.

— Para de ler essas coisas, senão você vai ficar doente.

— Impossível não ler! Tá pipocando em todo lugar. E, de fato, você percebe que a Direita, ou que nome se dê a esses caras, armou um modelo de reação que envolve a mídia e o judiciário, atuando conforme as decantadas regras democráticas. Eles vêm dando verdadeiros golpes de estado, insuflados por notícias construídas pela mídia e contando com sentenças moralistas das instâncias mais altas da justiça. O que menos importa é a verdade. E a classe média, que é quem faz a opinião pública, vai dormir em paz, acreditando que tudo é verdade e se sentindo atendida em seus reclamos… Um golpe de mestre.
[Quando tu chegas em casa, no início da noite, após um dia de trabalho, queres pouco mais do que tomar banho, vestir uma roupa confortável e assistir na televisão os filmes que deixastes gravando na madrugada anterior, atividade às vezes interrompida por uma rápida refeição antes de ir dormir — isto é o quê? Vamos alinhar as ideias: o homem do tempo presente é, em essência, um acumulador, um sujeito que vive para os excessos, desde que socialmente permitidos.]

— Olha, vou te dizer uma coisa: o mundo não tem conserto, a ser humano é uma merda. Quando a gente vê toda essa tecnologia, todos esses conhecimentos disponibilizados, inclusive de graça, na internet, e mesmo assim as pessoas continuarem incapazes de pensar, a gente perde as esperanças no futuro. Fico aqui pensando nos meus netos…

— Eu não quero pensar no futuro. Sei que isso é impossível, mas quero me ligar no presente, no presente mais presente, neste exato instante aqui.

— Até porque estamos atravessando a rua e tem carro vindo em alta velocidade… Se liga!

— Pois é. Cuidado aí com a merda de cachorro na calçada…

— Falar nisso, você viu aquela mulher chamando o animal de “meu filho”?

— Fiz que não ouvi.
[Tua rotina é pobre, eu sei, mas é isso o que acontece com a maioria das pessoas, sejamos sinceros. Ninguém vive em permanente frenesi: nem os personagens do mundo do entretenimento; sequer os direitistas ou os esquerdistas mais radicais — os extremos da cena social e política dos nossos dias. Se pensas que a vida dessa gente difere em tudo da tua, consulta o teu especialista em marketing, ou a biografia não autorizada do político de tua preferência. Não te esqueças: somos todos humanos e medíocres.]

 Você trouxe dinheiro? Precisamos passar na padaria, na volta da praia.

— OK… O filme de ontem à noite foi muito bom. Bem estruturado, bem realizado, com boas interpretações, uma boa diversão.

— Só teve aquele problema do roteiro.

— Bem, não chegou a ser um problema. A questão era que os caras precisavam chocar a plateia; faz parte da coisa. Por isso é que o herói, na dimensão do passado, é o próprio filho de sua amante na dimensão do presente.

— É, deve ter sido de propósito, mesmo. Mas muita gente nem percebeu a coisa. Ou foi pensar em casa.
[O que eu quero mesmo dizer é que o cotidiano das pessoas não depende exclusivamente de suas opções e decisões, sejam elas o que forem — esquerdistas ou direitistas radicais, estrelas do entretenimento ou pacatos cidadãos cumpridores de seus deveres. Cada um desses grupos, com suas diferentes colorações e sutis diferenças, pratica sua cota de excessos. Mas, convenhamos, nenhum é um excesso excessivo. Todos são, de fato, excessos moderados pelo perfil de cada personagem.]

— Tem uma nova geração de roteiristas no mercado. Não exatamente de pessoas jovens, mas de ideias novas, que incorporam e cruzam informações de todos os lados. Da química, da psiquiatria, da geografia, da física quântica, da antropologia… Muito interessante.

— Muito interessante, mesmo! Está até dando pra ir ao cinema, de novo.

— É, nada se compara a uma tela grandona, com ar-condicionado.

— Desde que não tenha uns caras deglutindo um balde de pipocas do teu lado… E fazendo comentários idiotas.

— Naquele filme do resgate, com tantos dramas, lances políticos, existenciais, econômicos, ideológicos, as pessoas só se ligavam em coisas triviais; riam de quase-piadas visuais, entre um bocado e outro de pipoca…

— Foi o que eu disse.
[Desconfio, até, que se assim fosse seria péssimo. Todo mundo precisa do inesperado, embora muitas vezes ele nos traga más notícias. É como o sexo: o melhor é aquele que acontece sem planejamento, na confluência do desejo com a oportunidade. Assim é a vida. Tu sabes que desejos e expectativas não são equivalentes. Os primeiros provêm de experiências vividas ou tão imaginadas que, para ti, se tornam reais — presta atenção. Já as expectativas são do território da aventura, matéria do desconhecido, do risco que tu assumes quase com medo de que se realize. Por isso, o melhor que te acontece é irrepetível. E o melhor que pode te acontecer será sempre novo, mesmo que seja a realização de um desejo.]

— Choveu de madrugada. A praia está cheia de lixo.

— Esse lixo todo não tem a ver só com a chuva. Chuva, por mais forte que seja, traz apenas folhas e pequenos galhos soltos das árvores das encostas em torno da baía. Esse lixo é produzido pela ignorância das pessoas, mesmo. Você vê até nas ruas próximas lá de casa… Todo mundo trata o espaço público como lixeira. E se você for reclamar, é capaz de apanhar.

— Eu reclamo. Mas só quando estou sozinha.

— É, mulher ainda tem uma certa liberdade para isso. Mas não abusa.
[Deixar filmes gravando, de madrugada, alimenta a tua expectativa de inesperadas novidades. Um certo frisson te percorre quando apertas o play, pondo pra rodar aquele que a sinopse de merda pouco explica mas promete. Tem lá um ator, uma atriz que costuma escolher bons roteiros… Bom, nem sempre, pois às vezes eles estão apenas precisando de dinheiro para pagar as contas do mês e aceitam fazer qualquer coisa. Afinal, quem não tem dívidas?]

— … É, virou moda…

— Eu não sei o que está acontecendo. A cada dia vejo mais casais de meninas se beijando. Meninos é mais raro, quase não vejo. Mas, meninas, é a coisa mais comum. Dizem que assim se divertem e não correm o risco de ter doenças, ou de ficarem grávidas…

— Não me importo. É mais um falseta desta nossa época.

— Falseta?

— Falseta, fingimento, engano… Sexualmente, você sabe que as pessoas podem ser tudo; é uma questão física, mas também pode ser de escolha. Desses relacionamentos entre adolescentes do mesmo sexo, quantos serão verdadeiros? Também não sei, mas não me incomodam. Acho que incomodam mais a elas e a eles, pois você percebe um certo ar de desafio, quando você os olha. E as pessoas olham porque olham, porque eles e elas estão ali aos beijos e amassos, e não exatamente porque os estejam julgando, condenando…

— Acho tudo isso uma pena, porque não vejo muita sinceridade. É mais uma moda. De qualquer forma, sempre sobra a atitude. Isso é bom, define o caráter.
[Tu sabes que, mesmo no ambiente profissional, onde prevalecem os contatos formais, é possível haver lances de amizade sincera. Tu sabes disso! De vez em quando tu ouves uma palavra limpa, acompanhada de um olhar desconcertantemente claro… O que fazer? São as pessoas e suas súplicas por entendimento, aceitação, compreensão. Ser humano não é fácil.]

— Você, mais do que eu, circula por aí e conhece o funcionamento das famílias de hoje. Sabe que o descompromisso é total; os pais não assumem os seus papéis. Ou se ausentam do processo de criação dos filhos, ou se igualam a eles, querendo ser seus amiguinhos, confundindo-os. Sei que meus filhos têm seus defeitos e que nossa relação com eles contribuiu para alimentar alguns desses problemas, mas não os vejo como pessoas emocionalmente dependentes. Eles têm suas opiniões e pronto.

— Acho isso ótimo!

— Eu também! Ter opinião já é um grande começo. O resto é aprendizado.
[Será que é isso mesmo, que todo mundo precisa do inesperado? Essa tua dúvida é típica, diriam os críticos da burguesia. Mas, veja, não se trata de…]

— Vamos voltar? Essa trilha sonora de ginástica está me incomodando. Detesto ginástica na praia.

— Estamos ficando velhos.

— Eu estou ficando velha, mas não acho que isso tenha a ver com idade. Pular ao som de uma música cretina como essa é a coisa menos interessante para se fazer na praia. Sentar numa cadeira e jogar conversa fora, bebendo cerveja ou caipirinha, é até melhor.
[Esse passeio na praia de Santos aconteceu no final de 2012, antes da guerra híbrida que se declarou contra o Brasil, em 2013, e antes da explosão das redes sociais de comunicação. Relendo em 2020 essas anotações, minha interlocutora de passeio fez questão de registrar: — Muito do que pensava naquela época, já não penso mais. Tenho até vergonha de um dia ter pensado aquilo...]

— Oi, tudo bem?

— Quem é?

— Já te disse um monte de vezes: trabalha comigo.

— Tô sem óculos de grau.

— Esse cara que eu cumprimentei é…
[No livro “The Root is Man”, Dwight Macdonald, importante pensador norte-americano, afirma: “Achamos que é uma questão em aberto se o aumento do domínio do homem sobre a natureza é bom ou ruim, tendo em vista seus resultados concretos sobre a vida humana, e que é necessário ajustar a tecnologia ao homem, mesmo que isso signifique uma regressão tecnológica, em vez de ajustar o homem à tecnologia. Não se trata, é claro, de rejeitar o método científico, mas sim de pensar o âmbito em que ele pode produzir resultados frutíferos. E sentimos que um solo firme a partir do qual se pode lutar em prol da libertação humana, que era o objetivo da
antiga Esquerda, é o terreno não da História, mas daqueles valores não-históricos (verdade, justiça, amor, etc.) que Marx tornou fora de moda entre socialistas”.]


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil 

"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo VI

E se o presente for um estado de convergências a serviço do futuro? Neste caso, só haveria de real o futuro; àquilo que chamamos corriqueiramente de passado histórico caberia o papel de farol tremulante, repositório de precárias interpretações. Nessa compreensão, o enigma a decifrar seriam os rearranjos cósmicos que o futuro está a nos impor, de forma permanente, constante, irrenunciável.

As convergências, ou aquilo que denominamos coisas da vida, se dariam pela incessante tentativa de encaixe lógico das incontáveis partículas/manifestações constituídas pelo que deveria-existir, pelo que não-existe, pelo que existe. O constante resultado das convergências da vida, produzido por tais manifestações, constituiria a sensação fugidia do intangível presente.

A ilusão de vivermos um presente contínuo nos é dada pelo artifício de decompor o tempo de forma útil à materialização da vida. O que na origem seriam ciclos determinados pelo incessante rearranjo cósmico, passaram, convenientemente, a ser tratados como medidas de tempo ― a translação deste planeta em torno de seu sol, sua rotação e a lunação comporiam um sistema de medição arbitrário, matriz da ilusória sensação de presente.

Por esse raciocínio, entender-se-á o porquê de o presente ser/estar sempre incompleto/incapaz de responder/atender nossos anseios/esperanças de perfeição/felicidade. Parecemos incapazes de avançar, quando, na realidade, trata-se de expansão, não de avanço.

Avançar seria um conceito qualitativo e, por consequência, moral. Expandir apontaria para a noção de construir, seja lá o que for, e isto parece mais adequado ao indeterminismo da presença humana no cosmos.

Daí esse sentimento incômodo de que o mundo vai se tornando cada vez mais complexo e indecifrável, tanto mais o desvendamos. É que para nos apossarmos de novas compreensões é imprescindível estarmos enlaçados ao futuro, ao seu dispor. Ou seja, quanto mais conhecemos, menos seguros nos tornamos.

Algumas perguntas podem ser feitas, desde já: A proposta do futuro como único ente real seria uma forma de determinismo? Os embates travados no presente contínuo (inclusive os ideológicos) seriam, desse ponto de vista, ociosos? O futuro é um fim a ser alcançado?

Não se pode falar em determinismo quando o dever-existir, o não-existir e o existir resultam de uma constante aleatoriamente realizada. Aleatoriamente porque muitas das convergências estão a cargo de agentes indômitos, como são os seres da nossa espécie, ainda mais se atraídos por aquilo que desconhecem e/ou impulsionados pelo que se apaixonam.

Inexistiria, assim, um grande plano predeterminado a nós esperar lá no horizonte, tal qual a realização de uma promessa de perfeição. Muito ao contrário, o futuro estaria aberto, tanto mais amplo quanto mais densamente resolvido neste turbilhão de convergências.

Esse futuro seria como que a incessante atualização do passado. Não o passado histórico interpretado, esse instrumental precário da nossa espécie, mas aquele que já na sua origem contém o futuro. Isto é, o passado que se realizaria permanentemente no futuro, porque o tempo cósmico não possuiria cronologia.

Nada do que é/se dá neste átimo, em qualquer quadrante do tempo-espaço, seria, portanto, ocioso para a interação que o futuro nos impõe. Nós e tudo mais que existe, não-existe, deveria-existir estaríamos a serviço do eterno inacabado. Não haveria, em conclusão, um fim determinado a ser perseguido.

Haveria, isto sim, a troca febril dos espaços do ilógico pelo lógico,
não como resposta a um determinismo moral (inclusive do tipo religioso), mas como inarredável imposição de uma eterna construção. Contribuir para acelerar essa troca seria a mais nobre tarefa da nossa espécie, tendo como ferramenta para isto a ética.

As elucubrações acima podem não ter nenhum valor prático ou teórico, mas foram reflexões desse tipo que, em alguma medida, determinaram o que pensamos e somos hoje. Pensar e formular suas ideias é um dos deveres da nossa espécie.

Quem frequentou o Ensino Médio soube da existência dos gregos Sócrates, Platão, Aristóteles, e também do francês Descartes, que um dia anunciou a conclusão que todos conhecem: “Penso, logo existo”. Se teve sorte, ouviu falar ainda de Kant, Hegel, Marx e Nietzsche, dentre outros, em geral por meio de frases a eles atribuídas, quase sempre simplificadoras de suas ideias, fora do contexto em que foram utilizadas.

Acontece que a Filosofia e os filósofos são mais que isso. São, na verdade, os reais formuladores dos pensamentos e das ações humanas praticadas ao longo dos milênios e séculos que se estendem até aqui.

Influenciados pelos conceitos originários da excepcional capacidade de abstração desses poucos homens é que outros têm desenvolvido teorias inovadoras em todas as áreas do conhecimento humano, contribuindo para a construção da rede de inventividade denominada ciência, e para a projeção de seus reflexos sobre a vida cotidiana, a chamada tecnologia.

A Filosofia, portanto, não está parada no ar. Não habita um lugar misterioso, distante, inacessível. Não se destina; não deve se destinar ao círculo dos iniciados. As pessoas que têm a felicidade de frequentar as academias sabem disso.

Sabem que as formulações de Kant, Hegel, Marx, e de tantos outros, constituem a substância daquilo que os comuns mortais praticamos em nosso cotidiano. Por desinformação, desconhecemos que nossas vidas são ditadas por ideologias. Mais ainda: ignoramos que as ideologias decorrem de sistemas formulados por filósofos.

Por isso, é preciso colocar a Filosofia ao alcance de todas as pessoas. Tirá-la do âmbito da academia. Expandir a sua divulgação, de forma apropriada e sem dogmas, para todas as camadas sociais, é um dos maiores, senão o maior desafio da educação deste nosso tempo.

Fariam grande bem os divulgadores dos filósofos se explicassem às pessoas desta planície predada, patética, errática em que nossa civilização se transformou — sem surpresa para ninguém, é bom que se diga — o que, mesmo, disseram aqueles seres que mergulharam nas profundezas da compreensão do homem no universo.

É de Filosofia que precisamos agora. É desse conhecimento fino, incisivo, sutil e, no entanto, concreto, inteiramente presente nas ações humanas cotidianas, que nossa civilização carece. Está faltando esclarecer esses vínculos para públicos mais amplos, o distinto público.

É preciso desmitificar a Filosofia. Já erramos muito esperando que as ideologias nos salvassem. Não salvaram e não salvarão. As ideologias dividem os homens; promovem antagonismos; não contribuem para a conciliação da espécie e alimentam a ignorância de seus seguidores, pois os impedem de pensar e praticar o que pensam com independência intelectual. Uma vez filiado a uma corrente ideológica, é quase impossível dela divergir — perde-se o chão e os possíveis amigos.

Todo homem, toda mulher possui o poder de pensar e o dom de intuir. E tanto mais terá, na medida em que praticar tais virtudes de forma corriqueira, habitual, frequente. Não há nenhum mistério nisso. Nenhum conhecimento transcendental ou cabalístico. É a vida. Equivalente ao desenvolvimento de uma habilidade motora, tão comum nos atletas bem-sucedidos. Se eles conseguem, por quê não cada um de nós, com nossos cinco sentidos, a intuição e o poder de raciocinar?


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil 

"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo VII

A síntese proposta por Karl Marx-Friedrich Engels, de que as religiões são um dos produtos das relações sociais, estando a partir de então inseridas no processo histórico (respondendo à visão dos enciclopedistas, de que são uma conspiração de parasitas exploradores, e à dos idealistas alemães, de que se tratam da alienação da essência da vida), é na realidade uma redução do fenômeno da religiosidade às conveniências da tese da luta de classes (burguesia x proletariado) como motor de tudo.

Ora, a gênese da religião é anterior à luta de classes e, portanto, do advento das relações sociais. Nesse sentido deve ser considerada e admitida, se se quer desenvolver uma análise consequente da História. Estranhamente, Marx e Engels parecem isto minimizar, quando afirmam que a “distinção entre os homens e os animais só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida”, o que é pouco — e insisto: conveniente — para quem mais adiante vai erigir um poderoso sistema de análise e construir uma ideologia.

Sem dúvida que a definição do momento em que se deu aquela distinção haveria de ser arbitrária, sempre. Mas o que se exige, diante de tamanha responsabilidade intelectual, é que ao formular uma teoria as premissas que a sustentam tenham sido provadas. E o que a antropologia conhecia na primeira metade do séc. XIX, quando as bases da construção do Comunismo foram firmadas, está bem longe do que hoje se sabe e pode saber.

Homem da ciência (não por acaso nomeou sua meta de “Socialismo Científico”), zeloso da necessidade de se ater ao factual ou ao razoável, quando esse factual está além da nossa capacidade de conhecê-lo, Marx não poderia, por exemplo, ter partido de uma premissa como esta: “Aquilo que os indivíduos são depende das condições materiais da sua produção. Esta produção só aparece com o aumento da população e pressupõe a existência de relações entre os indivíduos. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção”. [“A ideologia alemã”, introdução, 1846].

É como se antes do <<aumento da população>> o homem não houvesse existido como tal; é como se aquele ser já pensante, inseguro quanto ao desconhecido, temente às forças naturais que o cercavam, etc., aquele ser, por ainda não se tratar de um produtor organizado em grupo de indivíduos, não elaborasse rotinas de sobrevivência ou que tais rotinas não se tratassem do que de fato eram: os fundamentos do processo histórico, sem os quais nada para a frente teria existido.

A arbitrariedade do pensamento de Marx retorna no trecho [do mesmo “A ideologia alemã”] em que afirma: “A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, toda poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efetivamente em sociedade.”

Pois, então, aquela <<consciência da natureza>>, a <<do meio sensível imediato>>, constituída e profundamente sedimentada ao longo de sabe-se lá quantos milênios — fala-se, hoje, entre 130 mil e 465 mil anos —, de repente se vê sobrepujada, digamos assim, pela <<consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos>>?

Ora, se identificou, à luz dos conhecimentos antropológicos de sua época, que <<a consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência>>, por que Marx haveria de ignorar essa premissa ao elaborar a tese da luta
de classes?

Entendo que o fez porque este, de fato, é um terreno instável, o que colocaria a sombra da condicionalidade no centro de sua tese. E, no entanto, a bela tese da luta de classes ergue-se sobre pilares insuficientes, pois entende o homem como um ser social, quando, na verdade, o homem, cada homem, é um indivíduo, uma imensa complexidade sozinha. Aceitar isto seria esvaziar, ou relativizar, as consequências de seu “socialismo científico”.

Assim, o que temos é que Marx, em associação com Engels, elaborou um singular sistema de interpretação da História calcado nas relações econômicas entre as pessoas. E o fato dessa ideia ter sido capaz de mobilizar uma prática, enraizando-se tão profundamente nos corações e mentes de tantas pessoas, ao longo de quase dois intensos séculos, demonstra o valor e o poder de tal sistema.

A força retórica (mistificadora) de sua (quase) lógica é causa primeira do desenho de sociedade que temos hoje, sem que, no entanto, Marx-Engels tenham sido capazes de ver realizado o êxito daquilo que vislumbraram — a implantação internacional do comunismo pela vitória do proletariado em confronto com a burguesia. E por que isto (ainda) não aconteceu?

O que se percebe, repito, é que os alicerces dessa ideia-práxis assentam-se em bases movediças, como fica demonstrado na proposição acima, qual seja, a da <<consciência da necessidade de entabular relações com indivíduos>>. Estamos aqui diante de uma conclusão pouco provável. Na verdade, repito, uma proposição de conveniência, destinada tão somente a constituir a gênese arbitrária da teoria da luta de classes.

E disse ele mais [em A ideologia alemã]: “Esta consciência gregária ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente devido ao aumento da produtividade, das necessidades e da população, que constitui aqui o fator básico. É deste modo que se desenvolve a divisão do trabalho que primitivamente não passava de divisão de funções no ato sexual e, mais tarde, de uma divisão «natural» do
trabalho consoante os dotes físicos (o vigor corporal, por exemplo), as necessidades, o acaso, etc. A divisão do trabalho só surge efetivamente a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e intelectual”.

Quer dizer que a divisão por gêneros e o poder conferido pela força não tiveram assim tanta relevância no mapeamento do homem social que se formava, mesmo que num momento futuro, muito futuro adiante, tais diferenciações tenham vindo a se constituir em fatores determinantes para a <<divisão entre o trabalho material e intelectual>>?

Alto lá! Muito ao contrário, a condição de gênero e o vigor corporal, bem como a habilidade de se expressar “artisticamente”, representando nas paredes das cavernas a vida de seus iguais, por exemplo, foram exatamente as diferenciações individuais que lançaram as bases das relações sociais nascentes.

O que se segue é na verdade o tema central destes escritos, um roteiro para (eu) entender do que se trata a vida e para que servimos nós, seres humanos.

Desta forma, digo, repito e acrescento em várias passagens deste texto: o engendramento de uma força onipresente, onisciente, capaz de pôr fim à existência de tudo que é/está à volta, e por isso temido, adulado, adorado, esse engendramento é um fenômeno originado nos primórdios da existência do homem, encravado na mente dos nossos ancestrais, anterior, portanto, às relações sociais, precursor e constitutivo do nosso processo histórico.

Se foi, se é assim, como enfraquecer a importância desse fenômeno primordial, submetendo-o às conveniências de uma tese? Ao contrário, devemos respeitá-lo, encará-lo e combatê-lo naquilo que ele verdadeiramente é e se constitui, como empecilho-mor no caminho da emancipação do homem.

Em contraposição ao que propuseram Marx-Engels, aceito que a religião é uma manifestação infantil do indivíduo que é finito e sabe nada ser frente ao cosmos. Sua organização em crenças (as igrejas), esta, sim, é produto desenvolvido no correr das relações sociais e está inserida no processo histórico, com reflexos na e a partir da luta de classes.

O espírito do indivíduo de todos os tempos não está submetido exclusivamente às crenças e credos de seu grupo, de sua época e de sua circunstância, mas, a meu ver, principalmente ao seu sentimento atávico de insegurança. Se assim não fosse, por quê então renovadamente nos prostramos frente ao que (apenas ainda) não compreendemos, realimentando sempre e sempre nos submetendo àquela subordinação primitiva?

De fato, a matéria está no princípio. Foi dela que brotou a consciência, tenha a matéria uma origem (deus), ou não tenha vindo de lugar algum determinado (acaso). Sem a matéria, nem deus nem acaso teriam como se manifestar ou sofrer manifestação. É fora de dúvida que o que toca aos nossos cinco sentidos, o que toca às necessidades básicas do nosso corpo (a matéria), isto é o que prevalece ao final de um dia na vida do homo economicus, do homo proletarius, frente às banalidades da sua existência.

Mas o que toca ao vazio espiritual diante de nossa condição humana, isto é o que aflora nos momentos capitais do homo em essência, desde sempre. Retomando, o aspecto fundamental do fenômeno religioso (ou que nome se dê a isso) é a relação do indivíduo com a sua exposta e iminente finitude.

A primeira grande batalha desta imensa guerra em prol da emancipação humana é, portanto, a libertação do homem das teias construídas pela religião (não necessariamente da religiosidade) e, mais fundo ainda, a compreensão, aceitação e libertação dos nossos medos atávicos. Escapar dessas teias significa esclarecer o indivíduo, desde o seu nascimento, de que ele é único, está (a seu modo) só no mundo e que a sua vida lhe pertence. Mais: que para viver integralmente ele terá de assumir seu protagonismo.

Isto é idealismo? Não penso assim. Está mais ao nosso alcance nos convencermos dessa realidade humana irrefutável — a meu ver —, e contribuirmos desde sempre para a formação de novas gerações de
homens emancipados, respeitosos diante do universo (o que já seria um tipo de religiosidade), justos em relação aos seus iguais, destemidos frente ao que há de ser confrontado.

Está mais ao nosso alcance, repito, atuarmos conjuntamente em favor deste projeto revolucionário voltado para o indivíduo — abrigando, protegendo e integrando os menos afortunados pela genética, é bom que logo se esclareça, para não se dizer que defendo o darwinismo social, a eugenia —, do que depositarmos todas as nossas fichas, ou nos iludirmos com a possibilidade de alcançarmos os mesmos objetivos (a emancipação do homem) exclusivamente através de uma luta de classes.

Esta, a luta de classes, de fato está posta desde que os homens tiveram a <<consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos>>, como muito bem demonstraram Marx-Engels. A questão é como travar tal luta, do ponto de vista do assim dito proletariado, tendo em vista um adversário mutante, cativante, insidioso, policêntrico e a cada dia mais estando, ambos (proletariado e burguesia), mergulhados num ecossistema radicalmente tecnológico e errático quanto aos seus objetivos.

Embora no Manifesto Comunista se afirme que “a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe”, e que “a sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”, o que se constata hoje, 170 (e tantos) anos depois, é a complexificação dos antagonismos de ambos os lados da equação.

Ou seja, a insídia do adversário se manifesta concretamente na fragmentação, a ponto de hoje nos defrontarmos com uma sociedade onde prevalece o individualismo, que é a sobreposição dos direitos de um aos direitos de todos os outros; onde se intensifica o <<esfumaçamento de tudo o que é sólido>>, em oposição ao que se almeja, que é a preservação da individualidade. Aquela individualidade que protagoniza o indivíduo e atua em favor do coletivo.

Ao pontuar, dentre os feitos da revolução burguesa, que “as criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal”, Marx-Engels em verdade avistam [no Manifesto Comunista] o caminho do porvir. Só faltou dizer, admitir, que, do modo como está posto em sua tese, tal porvir não passa de uma quimera. Diria, até, uma veleidade intelectual.

Quem sou eu, admito, para levantar essa contestação, propor tal ousadia, confrontar duas mentes magníficas e seus insignes adoradores mundo e décadas afora? Sou provavelmente nada. Apenas um ser humano que um dia, no começo da década de setenta do século passado, ao cruzar uma rua larga da cidade de Santos, São Paulo, Brasil, fui tomado pela ideia de que ‘não poderia ser só esse, o acirramento do processo da luta de classes, o caminho para a realização da utopia’.

E hoje, ainda animado por tamanha inquietação, ouso expor o que penso, de diversas e insistentes maneiras no decorrer deste trabalho, pois sou aquele que guardou por décadas suas dúvidas, adiando trazer à luz o que aqui agora escrevo, sabedor de que deveria antes me dedicar a observar a realidade e a entender o que outros haviam formulado antes sobre os temas que me preocupavam e preocupam.

Não li tudo o que poderia, confesso. Não esgotei o entendimento do pensamento de ninguém em especial, mas, naquilo que via e lia, vejo e leio, sempre mantive/mantenho o foco voltado para o meu questionamento original. Nunca deixei de pensar sobre o que via e lia, enquanto constituí família e participei da criação dos meus queridos filhos.

Se o que expresso soa como ousadia ou presunção, penso que estou apenas exercitando o que prego em favor dos outros: o direito e o dever de sermos únicos e universais. Não tenho compromissos com instituições ou pessoas. Talvez por isso me sinta desobrigado de fazer citações a cada curva dos meus escritos. O conhecimento não é uma propriedade, ele está no mundo. Segue um processo infinito de imbricação em teia, digamos assim, para o bem da evolução humana.

Hoje, cinquenta (e tantos) anos depois daquela travessia de rua que reputo metafísica, estou cada vez mais convencido de que erramos o caminho. A percepção, nos primórdios da nossa espécie, de que a capacidade de expressar competências cognitivas nos distinguia dos nossos semelhantes criou na mente e nas práticas daqueles seres fundadores um poderoso e nefasto sistema de individualização e recompensa. E isto, insisto, muito, muito antes daquele momento em que passamos a viver em grupos e nos constituir em sociedade, o tal início da História proposto por Marx-Engels.

Imaginar que a História tenha simplesmente começado, sem admitir que ela, como qualquer ente conceitual ou concreto, resulta das partes que o compõem (no caso, as experiências e interações de cada um daqueles seres ‘pré-históricos’), é incorrer em grave erro. Um tipo de erro que inviabiliza ou, ao menos, enfraquece todas as formulações que se possam a partir dele elaborar.

Individualizar e recompensar, parece-me claro, são as matrizes da estrutura de poder, os ingredientes da ideia de posses materiais ou imateriais, de direitos exclusivos, de propriedade, ideia da qual deriva o conceito de Estado, com seus códigos e leis que deveriam servir a todos, igualmente, mas que não o fazem porque o Contrato Social é por natureza excludente. Apenas uns poucos, graças a seus atributos genéticos, inserção social, oportunidades e circunstâncias de vida têm real acesso aos meios de adquirir conhecimento. E a partir dele pensar e orientar suas ações com autonomia e critério.

A maioria (quase todos nós) apenas repete comportamentos medianamente aceitos e se faz socialmente útil, para isso frequentando os bancos escolares que lhe são disponibilizados, onde aprende a vencer na vida. Para contornar ou adiar o desespero dessa condição (sub)humana, inventamos aquela força maior e, com ela, o inevitável, a sina, o conformismo. Inventamos toda sorte de subterfúgios, inclusive a perspectiva de uma felicidade que nos seria outorgada se a fizermos por merecer, transferindo para os outros e para o desconhecido o sentido de nossa existência.

E, para completar, inventaram para nós, no decorrer do século XIX, a fantasia que desde então prospera de que o acirramento da luta de classes nos levará ao paraíso. Não levará! Não sem antes nossa espécie resolver os seus problemas com o cosmos.

[O Comunismo é a ideologia política e socioeconômica que pretende promover o estabelecimento de uma sociedade igualitária, sem classes sociais e apátrida, baseada na propriedade comum dos meios de produção. Para Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), seus formuladores como Socialismo Científico, o Comunismo seria a fase final do desenvolvimento da sociedade humana, a ser alcançada através de uma revolução dos trabalhadores. Sua ideia de governo é a Democracia pura e verdadeira, mediante a participação igualitária de cada membro da sociedade organizada. O princípio a ser seguido é o de: “A cada um segundo as suas capacidades, a cada qual segundo as suas necessidades”, conforme o Manifesto Comunista, de 1848. Embora Marx não tenha detalhado como o Comunismo poderia funcionar como sistema econômico, compreende-se que ele seria a etapa derradeira do Socialismo, o qual seria a fase necessária de acumulação de capital. Formulado pós-Revolução Industrial, o “Socialismo Científico” adicionou ao aspecto distributivista das doutrinas comunistas mais antigas a ideia da plena satisfação das necessidades humanas proporcionada pelo desenvolvimento tecnológico, abundância de bens e bem-estar geral.]


 "Do que se fazem as salsichas" - Brasil 

"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo IX

De quê substâncias se fez esta salsicha? Penso que tive dois momentos definidores na minha formação: o da infância até o começo da adolescência, passado em Manaus, Amazonas, período em que as circunstâncias me tornaram uma pessoa introspectiva, mas igualmente curiosa e observadora do comportamento daqueles com quem convivia e do mundo à minha volta; e o da segunda metade da adolescência em diante, quando me mudei para Santos, São Paulo, acompanhando minha mãe, meu irmão e irmãs, agora exposto a uma nova geografia, cultura e hábitos igualmente determinantes para o que eu viria a me tornar. Hoje entendo que as duas fases se completam.

Começo pelo segundo momento, pois considero que é aquele em que, sem a presença da figura paterna, tive a chance e a necessidade de tomar as rédeas da minha vida. Não foi uma jornada tranquila, mas um aprendizado custoso, um processo de experimentação em que ocorreram mais erros do que acertos, e os erros, afinal, são aquilo que nos define, porque nos desafiam.

O fato é que há sempre uma ilusão de bidimensionalidade no encontro entre os ambientes aquático vs. terrestre, em algum ponto da geografia de cidades portuárias.

Em Santos, isto ocorre particularmente no acesso ao cais, que se inicia no extremo da região turística e residencial, tendo à direita o Iate Clube com suas embarcações de recreio e, mais adiante, à esquerda, os barcos especializados que frequentam o Terminal Pesqueiro Público.

Quase encostados aos prédios de apartamentos das ruas próximas ao mar, os grandes navios de carga e turismo deslizam pela superfície calma das águas do canal, impondo-se contra o céu e tendo, em segundo plano, o desfile de recortes do que restou da Fortaleza de Santo Amaro, ruínas da colonização portuguesa dessa parte do Novo Mundo.

Estampadas em paralelo à mureta da Ponta da Praia, que separa a calçada do enrocamento de proteção contra as ressacas, se comparadas aos carros que circulam na avenida litorânea essas imponentes estruturas flutuantes de aço por instantes parecem não se mover e, no entanto, seguem seu curso rumo aos oceanos.

O conjunto de imagens, sons e movimentos que compõe esse choque de massas e proporções distribuídas num espaço de múltiplos universos de animais, racionais ou não, nos revela um embate de expectativas no qual se distingue ao menos esta rica dicotomia: a dos seres entregues às rotinas de seu cotidiano nas ruas, nas casas, prédios, bares e restaurantes, contraposta às dos que seguem a bordo, dedicados às fainas do tripulante, antecipando expectativa de aventuras mar adentro.

Especialíssima nesse cenário urbano é a parada de ônibus localizada na pista interna da curva do final da faixa de areia, de onde se tem uma inquietante, rica e bela visão desse imbricamento mar-cidade. Daquele ponto, onde as pessoas esperam diariamente o seu transporte coletivo, observam-se embarcações de formas e finalidades diversas, pedestres, atletas, estudantes, crianças, vendedores de comidas e bugigangas, aposentados em caminhadas com seus cães e todo o tipo de gente em diferentes trajetos e ritmos, elementos do microcosmo que constitui a privilegiada e ampla paisagem.

Igualmente reveladoras eram as colunas de Navegação dos jornais, em especial ao anunciarem: “Chegou ontem ao porto o navio tal, com avaria grossa em sua carga”.

Era um aviso de seguro; tinha a ver com prejuízos para alguns, mas significa mais: pessoas reduzidas a quase nada, entregues a tempestades em pleno oceano, flutuando dentro de cascas que mal conseguem se sustentar. As ondas batem, o aço range, as correntes e cabos se rompem, os volumes se soltam, a água inunda… Avaria grossa; pavor; fragilidade. E, no entanto, a alma calejada volta ao mar, porque o homem é assim, destemido, desde quando vagava nas planícies, abrigando-se em cavernas.

Estes são os fios que tecem a mística santista, pontuada no apito surdo dos vapores em meio à bruma, pela manhã. Enxergar os tesouros desta cidade é apoderar-se do prazer de integrar a tal dicotomia terra-mar e as suas traduções espalhadas por todos os bairros, refletidas no arranjo urbanístico dos canais de drenagem, obra de engenharia sanitária que há mais de um século venceu as doenças decorrentes do solo insalubre da ilha onde se plantou a vila;

Nos detalhes da arquitetura mais antiga produzida por artífices europeus; nas pessoas provenientes de todas as latitudes, com seus costumes, línguas, ideologias, profissões; e em tantos outros signos que definem o caráter internacional desta cidade — resultados de cinco séculos de ocupação territorial, no embate de duas culturas separadas por alguns milhares de anos de evolução: a europeia, que aqui aportou nos primórdios do séc. XVI, em pleno Renascimento; e a indígena, que ainda não havia deixado a idade da pedra, a Pré-História.

Penso no comércio do café, que fez a fama e a riqueza deste lugar, nas primeiras décadas do século passado. Imagino o corre-corre dos corretores do produto pelas ruas do Comércio, Conde D'Eu, XV de Novembro, largos do São Bento e do Rosário, Praça dos Andradas, cenas que antigas fotos imortalizam. Faço a conta dos milhões de libras esterlinas que circulavam naqueles anos por aqui, fartura que permitiu trazer da Europa os artesãos que construíram as sedes comerciais das casas exportadoras e as residências dos barões da rubiácea — importava-se tudo do velho continente. Vejo ao longe, entre as frestas dos prédios, um cargueiro deixando a barra — é a cena de que mais gosto ao levantar, como se fosse um prêmio, um bom presságio para o dia.

Minha ligação com o ambiente portuário vem da infância. Tinha
pouco mais de dez anos e passava horas no Roadway de Manaus, fascinado com o movimento de carga e descarga dos navios; vendo o entrar e sair de passageiros; sentindo o cheiro da borracha natural amarrada em fardos, as castanhas-do-pará acondicionadas em sacos e tantas outras mercadorias levadas para a terra, ou de lá trazidas para as embarcações pelo sistema de trilhos, instalado na plataforma de acesso ao porto.

Vejo-me pisando com cuidado as tábuas do cais flutuante, com a água escura do Rio Negro aparecendo embaixo, por entre as frestas; e de me perguntar o que fazia ali, cercado de tantos riscos; e mesmo de ser questionado por adultos quanto à minha presença num local exclusivamente de trabalho. O que me atraía para esse ambiente, eu sabia, era o movimento das máquinas; o klang, klang das peças de aço se chocando no interior dos porões; as pessoas em sua faina vistas desde o cais; o cheiro acre marcando tudo; o sentimento do desconhecido, da aventura, das infinitas possibilidades mundo afora sugeridas por esse conjunto de coisas e afazeres.

Era isso, mas não apenas. Certamente porque a minha história assim o determinasse, a vida no cais me prendia tanto quanto as conversas entre adultos que eu acompanhava atento nos finais de tarde, imóvel na cadeira de uma das ensebadas mesas da mercearia próxima à última casa onde morei na infância, na Rua Sete de Setembro.

Quase nada me interessava ali, pois dos assuntos pouco me recordo. Lembro-me, porém, da figura esguia, tez vermelha — e cada vez mais avermelhada, à medida que as horas se passavam e o álcool se acumulava em seu organismo —, de um inglês remanescente da extinta Manaus Tramways and Ligth Co., detentora da exploração do sistema de bondes e geração de energia da cidade. Ouvia suas imprecações, acompanhadas das ameaças de um dia deixar o calor sufocante da cidade e voltar ao seu país, e aprendia sobre a existência e os costumes de lugares diferentes.

Tanto quanto os barcos, máquinas de transportar mercadorias e gentes a mundos por mim apenas pressentidos, aquele homem, com seu sotaque e inflexões inesperadas me transportava para além dali, como se meu espírito se alimentasse dessa ideia de fuga buscada aonde quer que fosse. Fugir das minhas circunstâncias, mais do que uma escolha, era uma ideia de complementaridade.

Estávamos no final dos anos cinquenta e um dos alentos para os meus sonhos foi a visita de um primo distante, jornalista de uma revista de circulação nacional, que residia no Rio de Janeiro e se encontrava em Manaus para escrever mais uma reportagem sobre o ‘“inferno verde”, a selva amazônica. Foi ele, certamente, quem inspirou a escolha da minha profissão, influenciando-me pela expectativa de aventuras que o jornalismo parecia proporcionar. Desse primo guardo a história contada na sala de estar da minha casa, e que me custou noites de sonhos acordados:

Chegara ele ao Rio de Janeiro ainda jovem, no final da primeira metade daquele século, levado pelas oportunidades que a capital da República a todos oferecia. Nos primeiros dias, sozinho, com fome, foi atraído pelas bombas de chocolate expostas na vitrine de uma famosa confeitaria. Deu-se com ele um choque, uma paixão irracional a lhe tomar o espírito desde os sentidos e necessidades primárias. Todos os dias lá ia ele, consumir com os olhos seu objeto de desejo. Quando afinal conseguiu um emprego, gastou boa parte do primeiro salário na compra do tal doce; vários, saboreados até se fartar.

Imediato foi o encantamento que se estabeleceu quando me vi em Santos, cidade de frente para essa superfície ondulante, onde os homens se movem desde os tempos imemoriais, ao encontro de suas circunstâncias. Mais ainda quando passei a frequentar todos os dias a faixa portuária, a trabalho. Aí, sim, por necessidade e prazer estive a bordo de todo o tipo de barco, sempre mais ligado aos mistos — transportadores de cargas e passageiros —, onde as mercadorias
ganham a companhia de gente comum, não-tripulantes, humanizando a ideia de comércio-relação entre as pessoas de diferentes regiões e países.

Um desses, de bandeira indiana, era um antigo e luxuoso navio de turismo. Em seu interior ostentava magnífica escadaria que se abria em leque, dominada por vistosos candelabros e figuras em alto-relevo nas paredes laterais, até o convés de cima, onde se distribuíam amplos camarotes e largos ambientes de uso coletivo. Mantinha, assim, as características de seu passado, mas tudo, absolutamente tudo, todos os detalhes haviam sido tomados pela decadência. Agora era um barco de uso misto, por onde circulavam passageiros vestidos com modéstia, mas, principalmente, tripulantes comuns a qualquer cargueiro, com suas vestes desgastadas, de trabalho.

O fato é que o mar santista me cativou desde o primeiro dia; dia cinzento em que fui levado por um primo a conhecer a praia do José Menino. Pisei a areia seca, fofa, extensa, percorrida com esforço, pois meus pés nela afundavam; depois alcancei a areia molhada, que cedia sob os meus dedos como que me retirando o chão, quase viva e indomável.

Senti as ondas calmas indo e vindo num fluxo-refluxo regular, e caminhei com cuidado de encontro à espuma formada pela batida das ondas, mergulhando enfim naquele líquido tépido, salgado, estranhamente denso. Tão diferente das lembranças que eu trazia das águas doces, calmas, escuras dos afluentes do Rio Negro, onde, além de tudo, habitavam as carnívoras piranhas que um dia, ao meu lado, arrancaram dois dedos do pé esquerdo de um companheiro de aventuras. Com o passar dos dias e a volta do sol, descobri que o mar podia ser verde, ou azul, e que as marés, junto com o vento, produzem energia e movimento.


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil