“Aos vencedores as batatas”

Em 2001, quando o mundo ainda estava sob o impacto do ataque de 11 de Setembro à sede do capitalismo planetário, a cidade de Nova Iorque, o renomado compositor alemão de música contemporânea Karlheinz Stockhausen (1928-2007) afirmou que aquele ato terrorista teria sido “uma obra de arte tão grande quanto qualquer outra”.

O comentário produziu grande incômodo, mas Stockhausen nunca se explicou, nem se desculpou; afastou-se, ou foi afastado de apresentações públicas a partir dali, até sua morte. A frase, no entanto, é importante, pois nos dá a oportunidade de refletir sobre essa questão balizadora de nossa existência: o mal.

Por definição, o mal é a ausência do bem, isto é, a falta da capacidade de compreender e compartilhar os sentimentos dos outros (empatia) e de refletir sobre o certo e o errado (ética). Trata-se de uma construção da mente e, portanto, exclusivamente humana — se um peixe grande come um peixe pequeno, ele não age assim por maldade, mas por instinto, em favor da sobrevivência de sua espécie. 

Nossa espécie, resultante de singularíssima conjunção cósmica — dê-se a Ela o nome que se der —, deparou-se desde o princípio com alguns desafios existenciais, dentre eles, e talvez o mais importante, a obrigação e necessidade de superar os instintos.

Isto é: jamais teríamos constituído os laços sociais fundadores de nossa civilização — por mais fracassado que seja este modelo civilizacional que erigimos —, sem que estivessem presentes em nossa consciência os conceitos de bem e de mal. O problema fundador desta nossa realidade esquizofrênica é que fomos incapazes de realizar aquela obrigação e necessidade: os instintos nunca foram superados, porque nunca de fato alcançamos a maturidade.

Uma explicação talvez se encontre no fato de que os instintos nos são convenientes; afinal, são eles que impulsionam a busca permanente por minorar nossas carências físicas e materiais (o que chamo de via do prosseguimento), sobrepondo-se assim, pela urgência, aos conceitos morais que balizam o bem e o mal. Estes se destinam a prover a convivência utilitária entre semelhantes, a qual pode ser, e usualmente é, relativa às circunstâncias pessoais, sociais, históricas; aqueles, os instintos, atendem às nossas demandas existenciais imediatas — tanto quanto as de qualquer animal —, sendo, portanto, condição imperativa e incontornável de sobrevivência.

Os sucessos individuais e coletivos — “aos vencedores as batatas”, como sentenciou Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” —, validam a prática multimilenar da lógica relativista norteada pelos instintos. Validam, confirmam, mas igualmente consolidam os obstáculos ao avanço da consciência que fundamenta os conceitos de bem e de mal. Eis a esquizofrenia plenamente incorporada às nossas vidas.

Nesse sentido, o 11 de Setembro de 2001 nova-iorquino, se formos capazes de abstrair os sofrimentos e as destruições ocasionadas, pode ser visto, sim, como “uma obra de arte tão grande quanto qualquer outra”. A definição de Stockhausen, por mais chocante que sempre pareça, não contempla a (i)moralidade do ato; principalmente porque, como sabemos, nossa civilização relativiza o mal. Sem qualquer cerimônia.

A “arte” por Stockhausen referida está (esteve) no fato estético em si, realizado conforme os mais avançados conhecimentos disponíveis (técnica), executado com inquestionável eficácia (maestria) e produtor de efeito devastador sobre a consciência do Ocidente (mensagem) — três requisitos presentes, entre outros, em qualquer manifestação artística. 

Já o mal apontado, e de fato presente naquele atentado, em nada difere de outros tantos e sanguinários males perpetrados ao longo da História de nossa fracassada civilização, com destaque para os que me vêm à memória:

Santa Inquisição;

Colonialismo predador extrativista;

Escravidão de 12,5 milhões de africanos;

Genocídio dos povos indígenas de todo o planeta;

Assassinatos em massa pelo nazismo, fascismo, stalinismo; 

Bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki;

Exploração continuada das nações pobres;

Fome, doenças físicas e mentais etc. etc. etc. etc., e ainda todos os males que impingimos uns aos outros, cotidianamente, mundo afora.

Amar e praticar a sabedoria

Às vezes me perguntam como definiria meu trabalho, tanto o dos livros — A primeira lição a aprender —, quanto este que publico aqui regularmente, e que na verdade se trata de analisar as mesmas ideias dos livros, sob diferentes aspectos e realidades. Sinceramente, ou talvez por ignorância, não sei em que categoria encaixar essas reflexões.

Sem assumir ares de presunção intelectual — até porque reivindico a todos os seres humanos, mais do que o direito, o dever de pensar e expor suas opiniões —, arrisco dizer que minhas balizas são a antropologia (o estudo do ser humano em todas as suas vertentes) e a cosmologia (o estudo da totalidade dos fenômenos no universo). Entendo o ser humano como um indivíduo que pertence à Terra, mas integra o Cosmos — e vice-versa.

Não se tratam de filosofia, essas ideais, disso tenho certeza. E nem me interessa que assim sejam entendidas, pois contra as imposições dessa ou daquela corrente filosófica é exatamente onde me coloco. Não que despreze o amor à sabedoria, mas porque quero estar longe da mitificação do saber; distante do exibicionismo teórico; e, principalmente, em oposição à ideia de que o saber se destina a poucos eleitos.

Sabedoria não é, e não pode ser, algo que se deva conquistar, possuir e, eventualmente, compartilhar com selecionados ouvintes e iniciados. Sabedoria é alcançar e desenvolver a capacidade de desvelar caminhos e apontar modos através dos quais todos os indivíduos, absolutamente todos, estejam aptos a amá-la e praticá-la, porque ela está (ou deveria estar) presente em cada instante de nosso cotidiano. Sabedoria é compreender e trazer à luz as potencialidades da mente humana; não é uma condição egoísta, mas um exercício de permanente deslumbramento e generosidade.

O problema, o verdadeiro problema com o qual nos debatemos em nosso cotidiano é a dificuldade de alcançarmos a compreensão dessa capacidade intrínseca à nossa espécie — a de amar e praticar a sabedoria, e de fazê-lo não de forma eventual, irrefletida, episódica, mas de modo consciente, intencional e permanente. É nesse espaço que, julgo, venho refletindo.

Penso que o único meio de nos apoderarmos da referida compreensão (amar e praticar a sabedoria) é entendermos a dupla e coexistente condição de sermos integrantes deste planeta e pertencermos ao Cosmos. Os modos e os meios para a realização dessa tarefa fundamental já estão dados. Abordo isso em vários textos aqui publicados, como em Nosso primeiro passo

O dia em que esse entendimento for apropriado não por meia dúzia de ‘filósofos’, mas pela maioria e depois pela totalidade dos habitantes desta Terra, a partir desse instante nossa espécie terá uma chance de harmonizar a via do prosseguimento (esta que busca minorar todas as nossas carências físicas e materiais, e que perseguimos em nosso dia a dia, desde sempre) com a conquista compartilhada do saber. E, então, verdadeiramente, amar e praticar a sabedoria.

Em resposta às alegações de que ‘isso tudo é apenas ingenuidade’, recorro à maior e melhor prova do que defendo: os indivíduos que, mesmo não possuindo o status de filósofos, são sábios e inspiradores naquilo que fazem, porque exploram o máximo de suas potencialidades. Para o bem, ou para o mal (sim, porque o mal deliberado, decorrente da corrupção da humana empatia, também pode ser exercido com sociopática perfeição).

Sugiro no primeiro caso, por exemplo, que se ouça essa seleção de João Gilberto, um ser que, como tantos outros, soube valorizar sua passagem por esta Terra, e com essa sabedoria produziu o melhor que seus dons lhe permitiram, tornando-se, a seu modo, universal. Os exemplos disruptivos (melhor assim dizer, ao invés de defini-los como “maus”) são muitos, e exatamente aqueles que queremos combater.

O caos, a ordem e as distrações

Para mudar o mundo, é preciso mudar o ser humano.

Para mudar o ser humano, é preciso que a consciência da mudança promova a mobilização da vontade em cada um dos 8,2 bilhões de indivíduos deste planeta, sem exceções.

Para que a consciência e a vontade desses indivíduos tenham a chance de serem alcançadas, neste turbilhão de distrações que a luta pela simples sobrevivência nos impõe cotidianamente, é preciso que alguém ou algo dotado de inquestionável credibilidade e poder de convencimento assuma o protagonismo e a liderança do processo.

Qual a chance, para a espécie humana, de que isso — a ascensão de uma liderança protagonista capaz de conduzir a mudança do mundo — venha a ocorrer? 

Nenhuma, admito.

Quê esperança nos resta, então, dado que mudar o mundo é urgente e imprescindível?

Antes de encarar a questão crucial — Que esperança nos resta? 
, quero voltar ao texto anterior  ‘Eu não quero descer’ —, onde destaco a interpretação dos grandes ciclos históricos proporcionada pela Astrologia (conhecimento hermético originário da antiga Suméria, no quarto milênio a.C., que foi transformado em superstição com a decadência do Império Romano e, mais adiante, ridicularizado e/ou reduzido a mera curiosidade de salão, com o advento do empirismo científico no séc. XII d.C., quando a visão de curto e médio prazos ganhou status de verdade).

A Astrologia não nos traz conforto nem desculpa, digo logo, embora não passe de alguém que apenas respeita suas proposições — não sou um especialista, como foi meu amigo Cid Marcus, sobre quem tenho me referido com frequência em outras postagens. E não nos traz conforto nem desculpa, porque não há consolo nem alívio a serem oferecidos.

Repito o que escrevi no começou deste texto: para mudar o ser humano, é preciso que a consciência da mudança promova a mobilização da vontade de cada um dos 8,2 bilhões de indivíduos deste planeta, sem exceções.

Se nada e ninguém será capaz de deflagrar um consistente e continuado processo endógeno (que tem origem no interior de nossa espécie) no sentido da consciência da mudança e mobilização da vontade, a conclusão óbvia é de que estamos entregues ao nosso próprio fado, ou seja, submetidos a uma dinâmica exógena, além do nosso controle.

Esse é o diagnóstico proposto pela Astrologia, à luz dos ciclos cósmicos que se projetam sobre nosso planeta desde sempre.

Como já disse, a opção da mudança ser empreendida por nós mesmos sempre esteve e está à nossa disposição e alcance, mas se não a fizermos — como não temos feito, e nos recusamos a fazer —, a inevitabilidade cósmica se encarregará de fazê-la.

De que maneira?

Da forma como estamos vendo e vivendo: com sofrimento individual e coletivo crescente.

Alimentamos o caos e, como somos incapazes de domá-lo e cavalgá-lo, só nos resta esperar até que alguma ordem se estabeleça e, depois, até que um novo ciclo caótico se inicie. Porque nos recusamos a cumprir aquilo a que estamos destinados no Cosmos: conquistar a maturidade espiritual.

Escolha, sempre foi uma questão de escolha. 

‘Eu não quero descer’

Ao analisarmos o quadro ora vigente de emergência planetária — que se traduz no crescimento da insegurança social produzida por uma série impressionante e convergente de fatores, envolvendo o agravamento da luta geopolítica, da xenofobia, desigualdade socioeconômica, decadência do ensino, precariedade laboral, ausência ou insuficiência de serviços básicos, violência pública, criminalidade privada, transtornos neurológicos, distúrbios e doenças mentais, tudo se dando no interior de um ecossistema dominado por extrema corrupção e inegável incompetência —, ao analisarmos esse quadro temos a sensação de que chegamos a um momento de inflexão civilizacional.

Concretamente, é isto mesmo o que está em curso.

É fato que o acelerado decaimento da qualidade geral da vida drena nossas forças, contamina nosso núcleo familiar, projeta-se para nossa rede de relacionamentos e ao conjunto da sociedade, de onde retorna, como um bumerangue, para retroalimentar e potencializar negativamente o mesmo sistema já degradado. Não é pouco o que os 8,2 bilhões de habitantes da Terra estamos enfrentando neste exato instante.

Para nosso conforto, se é possível assim definir, não há nenhuma surpresa sobre o que se passa na Terra — trata-se apenas de um processo de transição, de transformação, de evolução, enfim. Isto não diminui os sofrimentos presentes e futuros, pessoais e coletivos, mas pode nos ajudar a assimilar o entendimento, sempre necessário, de que integramos o Cosmos. Sim, o Cosmos! E, ainda que cause estranhamento ou suscite deboche, proveniente das mentes ditas racionais, a explicação para o que ocorre na Terra vem da Astrologia. 

Não, evidentemente, “a pop astrology, como ela aparece em jornais e em muitos livros sobre ela publicados, mas com o que ela nos oferece desde tempos muito remotos como legado praticamente encontrado em todas as culturas, desde a pré-história, abandonado, por pressões dos representantes da ‘racionalidade’, pelas academias no séc. XVII. Nem tem a ver com a afirmação de pessoas que peremptoriamente declaram nela não ‘acreditar’, como se ela fosse uma religião, ainda que dela nada conheçam. A Astrologia, uma carta astral, nesta perspectiva, por exemplo, se parece com um hemograma [análise laboratorial dos elementos do sangue]. Não ‘acreditamos’ num hemograma; apenas sabemos lê-lo ou não. E mesmo sabendo lê-los, os hemogramas, quantos erros não se cometem na interpretação de seus dados?”

O esclarecimento acima é do amigo e sempre mestre Cid Marcus, falecido há três anos — a quem sempre recorro —, um cara que se dedicou ao estudo “sério” da Astrologia. Em um de seus textos — Os salões do séc. XVIII —, ele discorre sobre os sinais da aproximação deste momento de transição (para a Era de Aquário), na qual a humanidade finalmente ingressará em 2.672, daqui a 647 anos.

Preparem seus corações e mentes, caros amigos, pois o que já vem se impondo é de fato uma grande mudança:

“Urano [regente de Aquário] é essencialmente um planeta variável, eletromagnético, espasmódico, intuitivo, impulsivo, excêntrico, pioneiro, independente, súbito, político, comunitário, excitante, maníaco [no sentido grego de ‘estado de loucura’], explosivo, convulsivo, revolucionário, brutal, anárquico, incongruente, individualista, diferente (vedetismo), associativo, futurista, utópico, original, inédito e estéril.

“No século XVIII [quando esse processo já apresentava seus sinais], a verdade das religiões, tida como revelada, começou, por inspiração uraniana, a ser substituída por propostas filosóficas pragmáticas. A atitude, diante do mundo, começou ser inspirada pela empiria. Mesmo com todas as suas tâtonnements [tentativas e erros], como diziam os franceses, o conhecimento deveria derivar agora da experiência humana e não da revelação divina. (…) Na política, as lutas de independência de várias colônias foi um desses sintomas.

“Hoje, na ciência, temos a inteligência artificial”, as redes sociais globalizadas, a computação quântica, a robótica associada à IA etc. etc. “No campo filosófico-religioso, o fim da filosofia, o transumanismo [uso da tecnologia para superar as limitações humanas, tanto físicas quanto intelectuais] e o fim de Deus e das religiões (profecia de Nietzsche), estas oferecendo uma grande resistência, diante dos altíssimos lucros que obtêm.”

Nosso desespero civilizacional é que “o mundo aquariano nos permite obter uma quantidade cada vez maior de informações, mas talvez nunca tenhamos nos deparado com tanta falta de conhecimento e muito menos de sabedoria quanto hoje, estes dois [conhecimento e sabedoria] a serem construídos por nós a partir daquelas [informações]. A velocidade e o alcance da nossa comunicação é espantosa, enorme, mas a solidão e a depressão aumentam cada vez mais. Enquanto isso, orgulhosamente, a ciência aquariana vai nos dando condições de visitar todo o sistema solar, de colonizar alguns planetas e de explorar a nossa galáxia." 

“Pare o mundo, que eu quero descer!”, me disseram outro dia.

Entendo o desespero, mas confesso que eu mesmo “não quero”.   
 

A ironia do limite

Olhemos para o básico. A Terra nos oferece três tipos de riquezas: animais, vegetais e minerais, além de outras renováveis, como a luz solar, o ar e a água, embora esta esteja submetida à degradação continuada, à escassez crescente e ao encarecimento devido aos elevados custos de depuração ou dessalinização. Não se tratam de um legado, essas riquezas, mas de um usufruto, pois a Terra, ela mesma, é constituída desses mesmos elementos, e através deles se nutre.

Tais recursos naturais são o que garante a continuidade da via do prosseguimento, que é como defino os processos desencadeados desde o advento dos primeiros humanos, destinados a prover e aprimorar nossa condição física, mental e, se formos capazes, também espiritual. 

No entanto, a exploração intensiva desse patrimônio, decorrente do crescimento demográfico (somos hoje quase 8,2 bilhões de seres) tem produzido a fragilização do planeta. Tanto porque sua utilização é intrinsecamente destrutiva (vegetais e animais), quanto por se tratarem de elementos finitos e sua extração (minérios) ser causadora de profundos impactos ambientais. Exemplo dramático são os hidrocarbonetos, que sustentam nosso modelo de civilização e estão se esgotando, enquanto seu consumo se expande.

Parte significativa da sociedade planetária, herdeira de antigas e sucessivas linhagens de poderosos indivíduos (‘as velhas famílias’), age no sentido predatório, defendendo o direito à posse privilegiada de todos os recursos naturais, não apenas para o seu próprio usufruto, mas, principalmente, para ampliar seu estoque de renda, bem como acumular patrimônio — são os praticantes da ideologia capitalista, em todos os seus matizes e localizações geográficas.

Outra parte também numerosa, orientada pela ideologia socialista, distributiva — e que, convenhamos, não existe em estado puro, pois, para que isso se realize é necessário que a humanidade, em seu conjunto, alcance o patamar da maturidade espiritual —, busca promover a exploração de tais riquezas segundo a lógica do interesse coletivo. Ou seja, feita racionalmente, de acordo com as necessidades, sem perder de vista a ameaça de fragilização planetária. Este é o segmento que se coloca no centro do espectro social.

No extremo oposto temos aqueles que se inspiram no purismo ideológico conservacionista, defendendo a tese de que as riquezas do planeta devem ser integralmente preservadas, porque Gaia (a visão da Terra como um único organismo) já atingiu seu extremo de depredação e, tanto quanto qualquer ser vivo, precisa ser protegida. Como alternativa, defendem que a humanidade adote modos de sobrevivência idealizados, voltados para a vida simples, natural e equilibrada. Não são tão numerosos, mas são os mais motivados e conceitualmente aceitos por segmentos do estrato intermediário, o distributivista, e simultaneamente instrumentalizados pelo primeiro grupo, o dos capitalistas.

De que forma superar esse complexo dilema existencial, se cada grupo possui sua força e seus argumentos? Como sempre, é preciso recorrer à Filosofia, sempre ela! 

Atribui-se a Aristóteles (384-322 a.C.) a chamada doutrina do meio-termo, em que a virtude e a sabedoria residem no equilíbrio entre dois extremos, evitando tanto o excesso quanto a deficiência. Ela pode ser aplicada à maioria das atitudes e ações humanas, com exceção daquelas relativas à ética e à moral, como a honestidade, respeito ao próximo, responsabilidade, cooperação, lealdade, empatia, liberdade, altruísmo, justiça, onde a verdade ocupa uma postura intransigente.

No caso da utilização dos recursos da Terra em prol da via do prosseguimento, não há como fugir da regra aristotélica. Mesmo que venha a ser reduzido, ao custo de políticas repressivas de governos, o crescimento demográfico não será conveniente a longo prazo, pois é necessário haver equilíbrio entre morte e nascimento de indivíduos. 

O caso chinês é o maior exemplo disso: sua política do filho único, implantada em 1979, passou a ser flexibilizada em 2015 porque causou desequilíbrio de gênero e um rápido envelhecimento da população. Atualmente, a China até incentiva nascimentos, mas enfrenta declínio populacional devido a fatores como o alto custo de vida e mudanças culturais.

Outra iniciativa, esta cruel e perturbadora, tem o patrocínio do primeiro grupo social, de forma cada vez menos dissimulada: reduzir a população do planeta através da imposição da fome, da disseminação de pandemias, da promoção de guerras, genocídios etc.

Essa estratégia, no entanto, está fadada ao insucesso, como temos visto. Seu ponto irreversivelmente fraco é que as desgraças provocadas (miséria, doenças, conflitos, extermínios) não se restringem ao grupo-alvo (a massa empobrecida), mas impactam todas as camadas da população planetária, dado que a sociedade é um corpo intercomunicante e interdependente. A crise migratória está aí para provar este fato.

Voltamos à doutrina do meio-termo. Não há como negar que a Terra está plenamente ocupada por seres humanos, e que cada um desses bilhões de indivíduos faz jus ao seu quinhão na via do prosseguimento — esta é uma daquelas questões éticas e morais com as quais não podemos transigir. Como oferecer os meios para que esse compartilhamento equitativo de benefícios ocorra?

Só há um modo capaz de conciliar os três grupos sociais acima descritos: rompermos o ciclo vicioso da imaturidade (e alcançarmos aquilo que denomino de consciência cósmica, ou seja, pertencemos a este planeta mas estamos integrados ao universo) e, a partir desse novo patamar espiritual, harmonizarmos nossa convivência com a Terra, dela recolhendo o estritamente necessário (alimento, água, ar limpo, energias sempre mais renováveis, insumos estratégicos reutilizáveis e recicláveis, como minerais, por exemplo) para prover e avançar na via do prosseguimento.

Isto não nos garantirá vida eterna, mas nos dará a chance de um novo paradigma de felicidade.

A ironia é que só chegamos a este ponto porque alcançamos o limite.
 

Sem direito, nem tempo de errar

Nossa velocidade reativa precisa aumentar. Não se trata de sair às ruas distribuindo panfletos, ostentando cartazes e faixas, feito aqueles pregadores desvairados que empunham suas bíblias mal lidas e incompreendidas nas calçadas movimentadas. Nem mesmo é o caso de nos pendurarmos nas redes sociais, dissipando nossa energia ao disparar mensagens ineficazes ao léu.

Não. A velocidade começa na mente de cada um, nesse lugar onde tudo sempre tem e teve início. É na mente das pessoas que já compreenderam o estado caótico em que se encontra nosso planeta, e que se põem do lado certo da História, o lado que busca a harmonização da espécie humana, é nessas mentes que a reação primeiro se constrói.

De novo: aumentar a velocidade reativa é não esvaziar nossas potencialidades, não é enfraquecer nossas defesas espirituais. Não me refiro aqui a religiões, mas à genuína espiritualidade, aquela que está mais próxima do conceito de inconsciente coletivo que nos foi legado por Carl Jung (1875-1961), definido como “uma camada da psique que contém arquétipos ou padrões de pensamento e imaginação herdados por toda a humanidade, através de gerações”.

Essa “herança psicológica universal”, ou “memória comum que se manifesta em mitos, sonhos e símbolos semelhantes em diferentes culturas”, constitui a substância imaterial que, confirmada ou desafiada por nossa capacidade cognitiva, e então mobilizada e compartilhada, é o que pode nos levar à geração de novas materialidades e resultados efetivos.

Confirmar ou desafiar esses arquétipos é nosso dever como espécie em evolução. Mobilizá-los e compartilhá-los só depende de nossa convicção e vontade. Convicção para não esmorecer, mesmo reconhecendo o poder da monstruosidade que está em curso; vontade para não nos distrairmos com inevitáveis dificuldades, e não perdermos o foco de nosso objetivo.

Atribui-se a Buda (vivido no período de 563-483 a.C.) a lição de que “toda grande caminhada começa com um primeiro passo”. Na verdade, trata-se de uma metáfora que nos conduz não ao ato físico propriamente dito, mas à determinação de agir quando e sempre que as condições apropriadas estiverem postas. E isto ocorre a todo momento de nossa existência.

Quem é de cantar, que cante com a melhor técnica e emoção; quem é de falar e escrever, que escolha as palavras mais pertinentes e compreensíveis, para que a mensagem não se perca. Quem é de correr, que o faça com determinação e leveza; quem é marceneiro, padeiro, escriturário, jornalista, jardineiro, professor, médico, serralheiro, aluno, encanador, enfermeiro, advogado, balconista, pintor, entregador, todos, de qualquer profissão, de qualquer ofício ou atividade tenhamos em mente que o “primeiro passo” é a disposição de fazer sempre o nosso melhor.

A monstruosidade que está em curso nos empurra, como indivíduos e sociedade, para a displicência, o descrédito, a impotência, o medo, a desistência. É com esses ingredientes que ela nos submete, extraindo do nosso sangue, nervos, músculos a seiva capaz de nutrir as mais efetivas e eficazes ideias de luta que possamos elaborar — a monstruosidade embota nossas ideias, logo as ideias, onde tudo começa!

É urgente que aumentemos nossa velocidade reativa. Mas ela não pode ser aleatória, descoordenada, inconstante, ingênua e débil. Para sermos efetivos e eficazes, ‘é preciso estarmos atentos e fortes’, como já nos avisaram Gilberto Gil e Caetano Veloso em 1969, no canto incisivo de Gal Gosta. 

Não nos iludamos, porém. Muita desgraça ainda veremos e sofreremos pela frente. A monstruosidade está em pleno curso, apostando no aprofundamento de nossa fraqueza espiritual, festejando o individualismo, promovendo o ódio a serviço da ganância, à espera de nossa rendição. Não a deixemos passar! Não temos mais direito, nem tempo de errar.

Engano-me, que eu gosto

O sr. Bill Gates, que dispensa apresentações, acaba de publicar um ‘corajoso artigo’ em sua página pessoal na internet — Gatesnotes — em que relativiza a chamada ameaça climática, afirmando, textualmente, que “embora as mudanças climáticas afetem as pessoas pobres mais do que qualquer outro grupo, para a grande maioria delas, essa não será a única, nem mesmo a maior, ameaça às suas vidas e bem-estar. Os maiores problemas são a pobreza e as doenças, como sempre foram. Compreender isso nos permitirá concentrar nossos recursos limitados em intervenções que terão o maior impacto sobre as pessoas mais vulneráveis”.

Disse ‘corajoso artigo’ porque, lá pelas tantas, o sr. Gates admite que “alguns defensores do clima discordarão de mim, me chamarão de hipócrita por causa da minha própria pegada de carbono (que compenso totalmente com créditos de carbono legítimos), ou verão isso como uma maneira dissimulada de argumentar que não devemos levar as mudanças climáticas a sério”.

Ocorre que não é de hipocrisia e dissimulação que se trata aqui, mas de covardia e irresponsabilidade existencial. O centro do impasse planetário não é o modo como estão sendo aplicados os “nossos recursos limitados”, e o sr. Gates sabe disso — esta é a covardia. A irresponsabilidade existencial reside no fato de que uma figura pública como ele, cujas palavras e opiniões possuem alcance ilimitado, não pode ignorar, por exemplo, informações como as listadas abaixo, obtidas por meio de uma simples consulta à plataforma de Inteligência Artificial do Google: 

“Os gastos militares mundiais em 2024 alcançaram um recorde de US$ 2,7 trilhões, representando um aumento de (9,4%) em relação a 2023, e a maior alta anual desde o fim da Guerra Fria (1947-1991). Esse aumento foi impulsionado por conflitos regionais e tensões geopolíticas, com mais de cem países elevando seus orçamentos de defesa, especialmente na Europa e no Oriente Médio. Os cinco maiores gastadores  — EUA, China, Rússia, Alemanha e Índia — foram responsáveis por 60% do total global.

“A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto para Métricas e Avaliação em Saúde (IHME) indicam uma tendência de queda no investimento em saúde após o pico da pandemia de COVID-19, o que gera grande preocupação. A entidade projetou um declínio global de 21% na assistência ao desenvolvimento para a saúde entre 2024 e 2025, passando de US (49,6 bilhões para US 39,1 bilhões).

“A expectativa é que essa tendência de queda continue nos anos seguintes. As maiores reduções da Assistência ao desenvolvimento para a saúde (DAH) devem afetar a África Subsaariana, com uma queda de 25% entre 2024 e 2025. Esse cenário pode ter consequências graves em regiões com sistemas de saúde já fragilizados.

“A OMS alertou que a queda na priorização do gasto público em saúde pode comprometer a meta de cobertura universal de saúde (UHC), deixando cerca de 4,5 bilhões de pessoas sem acesso a serviços básicos e 2 bilhões enfrentando dificuldades financeiras por causa de despesas com saúde.

“O subfinanciamento dificulta o progresso em direção à Cobertura Universal de Saúde (UHC). A OMS estima que 4,5 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso a serviços básicos de saúde, e 2 bilhões enfrentam dificuldades financeiras por causa de custos de saúde. A fundação da OMS alerta que a saúde global está em crise, com a redução de gastos empurrando mais pessoas para pagar por seus próprios cuidados de saúde, uma forma de financiamento desigual e insustentável. 

“O déficit de financiamento representa um grande risco para a saúde global. A diminuição da assistência externa e a despriorização dos gastos públicos por parte dos governos ameaçam o progresso histórico na saúde pública. A crise financeira que se estende para 2025 e além, conforme indicado por cortes previstos e déficits orçamentários na OMS, demonstra que o desafio de garantir um financiamento adequado para a saúde pública é urgente e de longo prazo.”

O sr. Bill Gates é uma pessoa inteligente; sabe que não está enganando ninguém com esse seu estranho artigo (nem mesmo as Inteligências Artificiais disponíveis). Talvez ele esteja querendo enganar a si próprio. Uma pena!

É o que mais interessa!

Sinto informar-lhes, mas a “democracia” não nasceu na Grécia, nos anos 500 a.C. Até onde já sabemos, formas democráticas de governar cidades já haviam sido postas em prática na antiga Suméria (4000 a.C.), no sul da Ásia (2600 a.C.), na China (2000 a.C.) e só então na cidade-estado de Atenas, seguida por Teotihuacan, o “Lugar dos Deuses”, entre 100 a 600 d.C. (região onde surgiria o México).

Essas informações se encontram no livro “O Despertar de Tudo - Uma nova história da humanidade”, em que David Graeber e David Wengrow se propuseram a enfrentar a interpretação da História estabelecida em 1651, por Thomas Hobbes (em “Leviatã”) e em 1754 por Jean-Jacques Rousseau (em “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”).

Hobbes, tido como “fundador da teoria política moderna, afirmou que, sendo os seres humanos as criaturas egoístas que são, a vida num Estado de Natureza original nada tinha de inocente: pelo contrário, devia ser ‘solitária, pobre, sórdida, brutal e curta’ — na prática, um estado de guerra, com todos lutando contra todos. Se houve algum progresso em relação a esse estado de coisas, em grande medida foi exatamente por causa dos mecanismos repressivos, que Rousseau viria cem anos depois a condenar: governos, tribunais, burocracias, polícia”, explicam Graeber e Wengrow.

Já Rousseau disse que “antigamente, éramos caçadores-coletores e vivíamos por muito tempo numa condição de inocência infantil, em pequenos bandos. Esses bandos eram igualitários, justamente por serem pequenos. Foi só depois da ‘Revolução Agrícola’, e ainda mais depois do surgimento das cidades, que essa feliz condição se desfez, dando origem à ‘civilização’ e ao ‘Estado’ — o que também significou o aparecimento da literatura, da ciência e da filosofia escritas, mas, ao mesmo tempo, de quase tudo de ruim na vida humana: patriarcado, exércitos permanentes, execuções em massa e burocracia”.

É no confronto a essas duas visões que o “O Despertar de Tudo” trabalha, “reunindo evidências que vêm se acumulando nas últimas décadas na arqueologia, na antropologia e disciplinas afins, e que apontam para uma explicação totalmente nova do desenvolvimento das sociedades humanas nos últimos 30 mil anos”, dizem os autores da obra que, a meu ver, revoluciona a chamada teoria política.

A única questão pendente, no entendimento de Graeber e Wengrow, e também na minha visão por várias vezes aqui exposta, é o quanto esse tema pode interessar às pessoas deste nosso tempo politicamente errático, socialmente caótico, espiritualmente imaturo. Nesse caldo de inseguranças pessoais e coletivas, qual a importância sobre onde e quando surgiram e se exercitaram formas democráticas de governo?

Aparentemente, nenhuma importância. Mas na verdade muita, porque o fato de os humanos virem desde os seus primórdios organizando-se politicamente sem submissão hierárquica, mas buscando sistemas equitativos de autogoverno, reforça a compreensão de que, ao contrário do pensamento comum, o que erigimos ao longo de 30 milênios foi de fato uma anti-civilização.  

Reconhecer um erro, como já diz a sabedoria popular, é o primeiro passo para o crescimento, a mudança e o aprendizado. É um ato de humildade e maturidade que permite evitar prejuízos maiores, aceitar as próprias falhas e, a partir delas, tomar novas decisões e corrigir o rumo. O que há de mais importante a fazer, neste momento da História, se não promovermos essa autocrítica? Isto é o que mais interessa neste instante! 
 

Selfie, segredo

Eu, brasileiro, confesso/Minha culpa, meu pecado/Meu sonho desesperado/Meu bem guardado segredo/Minha aflição

O piauiense Torquato Neto (1944-1972) certamente partiu de suas reflexões sobre a realidade e os destinos do Brasil quando escreveu Marginália II (musicada por Gilberto Gil). 

Eu, brasileiro, confesso/Minha culpa, meu degredo/Pão seco de cada dia/Tropical melancolia/Negra solidão

Mas, como sempre fazem os verdadeiros poetas, não foi apenas deste país que ele tratou. 

Aqui, o Terceiro Mundo/Pede a bênção e vai dormir/Entre cascatas, palmeiras/Araçás e bananeiras/Ao canto da juriti

A partir do autorretrato deste povo, ele traça a essência de quem somos nós, os seres humanos.

Aqui, meu pânico e glória/Aqui, meu laço e cadeia/Conheço bem minha história/Começa na lua cheia/E termina antes do fim

O grande valor de sua poesia é tornar universal o que primeiro é pessoal, depois nacional. Tudo junto agora.

Minha terra tem palmeiras/Onde sopra o vento forte/Da fome, do medo e muito/Principalmente da morte/Olelê, lalá 

Não há separação entre os três espaços existenciais. Esse é o grande ostensivo segredo, que guardamos ao longo de toda a vida.

Minha terra tem palmeiras/Onde sopra o vento forte/Da fome, do medo e muito/Principalmente da morte/Olelê, lalá

Dizem alguns estrangeiros que o espírito brasileiro, revelado em nossa música, principalmente, carrega o dom de mesclar tristeza com esperança.

A bomba explode lá fora/E agora, o que vou temer?/Oh, yes, nós temos banana/Até pra dar e vender/Olelê, lalá

Mestres em rir e dançar à beira de precipícios é o que somos. 

Aqui é o fim do mundo/Aqui é o fim do mundo/Aqui é o fim do mundo

Vivemos assim, alegremente, nos limites da existência, sem nos importar onde ela começa ou termina.

Irresponsáveis? Ingênuos? Talvez!

Ou, quem sabe?, apenas sábios. 

Nada é fácil

Não nos cabe escolher a época em que existimos, mas, se me fosse possível decidir, teria sido exatamente neste presente histórico onde eu preferiria estar, e ser. Estar como testemunha consciente deste tempo conturbado, extremado, imprevisível, mas, sem dúvida, também magnífico, pleno de possibilidades palpáveis e renovadoras. E ser a serviço deste mesmo tempo, na condição de um existente dedicado a conhecer e superar sua própria imaturidade, sem ignorar as demandas objetivas.

Como escreveu o amigo e mestre Cid Marcus — A vida como viagem interior“todas as filosofias do ocidente, desde Platão, colocaram o homem acima do mundo, contra o mundo, diante do mundo, de costas para ele, mas não dentro dele. A nossa colocação dentro do mundo (somos parte) só acontecerá se ficarmos no aqui e no agora”.

Sim, este mundo que construímos é injusto, egoísta, dominado pela competição e o ódio, mas o planeta em que estamos, e somos, é uma bela joia cultivada pelo Cosmos. Defendê-lo não se traduz em promover revoluções, ao contrário. E de novo recorro a Cid: em vez de nos perdermos no mundo exterior, “movermo-nos em direção do nosso mundo interior, uma viagem a que alguns dão o nome de meditação, de introspecção; o oposto do movimento centrífugo, um movimento centrípeto, como uma tentativa de aproximação de um eixo de rotação”.

E por que a prática revolucionária está fadada ao fracasso? Porque nada do que façamos em favor ou contra o mundo exterior estará sob o nosso controle; tudo resulta no inesperado, e às vezes no oposto do que pretendíamos. Não se trata de cruzar os braços frente as iniquidades; nem de abdicar o direito e o dever de fazer diferente. Trata-se, em primeiríssimo lugar, de dar prova do sincero e inteiro propósito daquilo que fizermos. Ou seja, de nos revolucionarmos.

Volto ao Cid: “O ser humano está sempre em luta contra si mesmo e contra o mundo. Criou-se a máxima de que viver é competir e não colaborar. Estamos em luta contra a raiva que sentimos, contra a bebida, contra a comida, contra as forças eróticas que nos subjugam, contra o tempo, mas geralmente acabamos nos complicando, nos sentindo, na maioria das vezes, derrotados. Essas coisas, porém, precisamos lembrar, não acontecem só conosco. Desde que o homem está no mundo é assim. Uma pergunta então poderá se tornar cabível: por que esse tipo de luta nos põe sempre contra nós? Ora tomamos o partido de um lado, ora de outro. Esta luta é, no fundo, absurda”.

Fazer com sincero e inteiro propósito também é isto: viver e ser no presente, na certeza tranquila de que o futuro sempre virá, e que será tanto mais promissor quanto melhor nos dedicarmos às tarefas de agora.

Corresponder a cada momento àquilo que o momento exige não é tarefa banal. Todas as distrações nos convocam; todas carregam alto poder de atração. A começar pela mitificação do passado, quando dele retiramos as vicissitudes. A terminar pela idealização do futuro, quando nele fingimos não ver os inevitáveis imprevistos.

Não espero obter dos outros nada disso que aqui defendo. Não alimento ilusões, até porque desconheço o quanto de mim está de fato convencido, compromissado, determinado a agir conforme meus próprios argumentos. A tradição se assenta, pesada, sobre meus (nossos) ombros; sobrecarrega minha (nossa) vontade; freia o impulso das boas intenções.

Nada é fácil. 
 

Especulações fundamentadas

Se compararmos o cérebro humano com um computador, sua capacidade de armazenar informações seria algo em torno de 2,5 petabytes (ou 2,5 quatrilhões de bytes), sabendo-se que um byte corresponde a 8 bits (ou seja, oito combinações de 0 ou 1, equivalente ao corte ou passagem de energia, respectivamente), onde é possível armazenar um caractere ou uma instrução computacional.

Mas não está no potencial estimado de armazenar 2,5 quatrilhões de instruções computacionais, ou caracteres, que reside o valor maior do nosso cérebro. O que o distingue da máquina símbolo deste milênio é a habilidade de priorizar e relacionar memórias de forma complexa, bem como sua alta plasticidade neural (capacidade de se adaptar e mudar estrutural e funcionalmente ao longo da vida, em resposta a novas experiências, aprendizado, ambiente, ou lesões).

As informações apreendidas pelo cérebro proveem dos nossos cinco sentidos, mas não se tratam de dados brutos, burros. Ao contrário, eles se vinculam a sensações ambientais e objetivas, e a fatores subjetivos (memórias, contextos, sentimentos, importância, prioridade etc), além de se relacionarem e de estarem submetidos à crescente capacidade cognitiva da espécie humana, bem como a essa entidade mental denominada intuição, ou “sexto sentido”.

Se é verdade que nosso cérebro é um ente biológico incomparável (eu diria que é a nossa vinculação direta com o Cosmos), por que então alimentamos o temor de que a chamada Inteligência Artificial (IA) — ferramenta lógica material, terrena, baseada na compilação e organização do acervo de informações elaboradas ao longo da História pelo nosso próprio cérebro — venha a ‘dominar o mundo’ um dia?

Penso que o temor, aqui, não é quanto à capacidade da IA oferecer soluções práticas de forma mais rápida que nosso cérebro, quase instantâneas, em atendimento às necessidades cotidianas de cada um, ainda que extinguindo profissões e provocando desemprego em massa (o que numa situação extrema poderá ser minorado, por bem ou por mal, através de políticas públicas de distribuição de renda). Nosso medo quanto ao futuro da IA decorre de dois outros fatores essenciais, e já intuídos: 

a) Que essa ferramenta deflagre no médio e longo prazo um processo de regressão intelectual da espécie humana, em decorrência de deixarmos de exercitar nossas habilidades físicas e capacidades cognitivas, com reflexos negativos sobre as competências futuras da própria Inteligência Artificial, que passaria a se alimentar de falsas informações, degradando assim todo o sistema em que ela, a IA, se sustenta; 

b) Que essa ferramenta venha a ser capaz de espelhar o modo humano de existir, auto desenvolvendo-se e finalmente criando seus próprios padrões de comportamento, calcados não na identificação intelectual, relativista e afetiva, a chamada empatia, mas no utilitarismo e indiferença em relação ao outro, porque, afinal, o outro será um não-indivíduo, tão somente um replicável.

Nesse segundo cenário, teremos (ou teríamos) a paulatina substituição dos indivíduos humanos imaturos de hoje (insuficiência emocional que temos sido incapazes de superar, embora, reconheçamos, nunca tenhamos de fato tentado), por não-indivíduos emocionalmente indiferentes em relação aos seus semelhantes, atuando — na melhor das hipóteses — em favor de uma relação harmoniosa com o planeta, mas sem a compreensão do valor desse comportamento. Pela simples razão de serem destituídos de sentimentos.

Distraídos e perdedores

Torço pelo Santos Futebol Clube e, como escrevi em dois outros textos — O futebol nos enobrece e O que nos aproxima e motiva —, considero esse esporte (e a prática de esportes, em geral) um dos valores fundamentais de nossa condição humana. O fato, enfim, é que torço pelo SFC e tenho sido afetado, como todo e qualquer torcedor, pelo quase sempre lamentável desempenho do meu time.

Nesta segunda-feira, 6 de Outubro de 2025, tenho a dizer (embora isso interesse a poucos) que a situação precária em que o Santos se encontra (perdeu ontem por 3x0 para o Ceará, em Fortaleza) não é uma questão irrelevante. Ela tem lá sua ‘universalidade’, digamos assim. A melhor análise que vi sobre isto está nesta postagem do jornalista Alex Frutuoso, “Homens sem ambição”.

Sim, é de homens sem ambição que se constitui meu time. Dos onze indivíduos que periodicamente entram no campo em busca de uma vitória (e que invariavelmente saem derrotados, ainda que tenham empatado, pois o empate quase sempre decorre de seus próprios erros), desses onze atletas talvez um ou dois ambicionem algo além de chegar fisicamente inteiros ao final dos 90 minutos de jogo, bem como garantir mais um mês de salário.

A aspiração, o desejo de realizar ou atingir algo não corre em suas veias; não vibra em seus nervos; não impulsiona seus tendões e músculos. Não ocupa suas mentes.

Falta-lhes ambição. Sem ela, são burocratas da bola. Desperdiçam energias aplicando, na medida do possível, as habilidades que aprenderam ao longo de suas carreiras a caminho do ocaso. Não são necessariamente homens velhos. São indivíduos emocionalmente gastos; materialmente fartos; espiritualmente descomprometidos. Não possuem horizontes.

Tenho o costume de observar o semblante dos jogadores do Santos quando eles entram em campo para disputar uma nova partida. Lamento dizer isso, mas percebo a derrota do meu time já nesse instante, quando percebo seus olhares sem foco, distraídos, sem interação calorosa com os demais companheiros; cabisbaixos ainda que brevemente, como se eles mesmos se surpreendessem no cometimento de um ato falho, essa manifestação inconsciente de nossa psique. É um relance intuitivo, mas suficiente para encher meu coração de desânimo.

Por coerência e autopreservação emocional, deveria desligar a TV nesses momentos. Não o faço porque sempre resta a esperança de que algum evento inesperado ocorra, e nos socorra de mais uma derrota (ou frustrante empate). Isso acontece às vezes, quando por substituição entra em campo um jogador mais jovem, vindo das categorias de base, cheio de ímpeto e desejo de vencer (no jogo e na vida).

A injeção desse novo sangue tem, eventualmente, o dom de espantar o marasmo; despertar aquilo que qualquer equipe esportiva precisa ter: o desejo intenso, a ambição permanente pela vitória, sabendo que para isso é preciso lutar como se pelo último prato de comida fosse.

A lição que se tira disso é óbvia e histórica: o glorioso Santos Futebol Clube nunca foi um ajuntado de bons atletas em final de carreira; nem mesmo de bons atletas na plenitude das condições físicas.

O Santos sempre foi um time formado por grandes jogadores experientes, mesclados por promissores (alguns geniais) atletas formados em suas equipes de base, os tais ‘meninos da Vila”.

Enquanto essa tradição não for respeitada e retomada, mais “homens sem ambição” continuarão entrando em campo. Distraídos e perdedores.

Sobre ‘que fazer?’

Dois grandes pensadores, ambos russos, enfrentaram a pergunta “Que fazer?”. O primeiro foi Nikolai Tchernichevski (1828-1889), que escreveu seu livro em forma de romance, em 1863, contando a história de Vera Pavlovna, que se recusa a seguir um casamento arranjado e se junta a um grupo de jovens em busca de uma nova sociedade baseada em cooperativas e igualdade

A obra inspirou revolucionários como Lenin, e teve grande importância no contexto da Revolução Russa. Sobre o herói do livro, Rachmetjev, o historiador inglês Orlando Figes publicou, em 1996, “A tragédia de um povo”, resumindo a obra de Nikolai. Aqui, um resumo do que Figes diz sobre o herói: 

Este Titã monolítico que serviria de inspiração a uma geração de revolucionários (incluindo Lenin), renuncia a toda a alegria da vida para fortalecer a sua vontade sobre-humana e se tornar imune contra todo o sofrimento que a futura revolução trará forçosamente consigo. Ele é um puritano e ascético: numa certa ocasião chega mesmo a dormir numa tábua de pregos para oprimir o seu impulso sexual. Treina o seu corpo com ginástica e levantamento de peso. Não come nada que não carne crua e treina o seu raciocínio de forma semelhante, pela leitura de dia e de noite de ‘apenas o essencial’ (política e ciências naturais) até que ele se apoderou do conhecimento da Humanidade. Só então o herói revolucionário se inicia na sua missão. Nada o desvia da sua causa, nem mesmo os interesses amorosos de uma bela jovem viúva, que ele recusa. Ele leva uma vida rigorosa e disciplinada, com tantas horas de leitura, tantas com exercícios, etc. E (esta a mensagem da história) é apenas essa devoção que possibilita o novo homem a deixar para trás a existência alienada do velho ‘homem supérfluo’. Ele encontra a redenção através da política.

O “Que fazer?”, de Vladimir Lênin (1870-1924), foi publicado em 1902, na linha da pregação de Nikolai Chernyshevsky. Trouxe a noção de organização revolucionária como uma necessidade para o avanço das lutas proletárias, num contexto onde as diferenças no interior do Partido Operário Social-Democrata Russo se ampliavam. E buscou tratar de questões práticas para o movimento socialista não se perder em meio ao desmoronamento do regime tzarista. Confrontando-se com as vias do socialismo moderado e reformista, bem como com teorias liberais mais radicais, Lênin descreve qual a ação política necessária para dar um caráter revolucionário às transformações que ocorriam na Rússia de então.

Como um mantra destinado a produzir autoconvencimento, reafirmo a cada dia a decisão de não parar de tentar. Por aqueles que me são próximos e pelo dever que o fato de existir me impõe. E, como já escrevi em outro texto, é preciso tentar de forma consciente, ‘compreendendo, relativizando, superando as razões civilizatórias e amesquinhantes que nos trouxeram até este momento de caos, nacionais e planetário’.

A mim; a todos nós, os existentes, não é permitido abrir mão de tentar. Muitos, talvez a maioria, esteja desistindo, ‘entregando os pontos’, abatidos pelos reveses ou frustrados com breves êxitos. Sim, os pequenos êxitos embalam erros, turvam nossa visão, enganam o julgamento.

Talvez essa teimosia — a de tentar — venha a ser igualmente uma covardia, uma imodéstia, uma arrogância, uma pretensa superioridade moral. Talvez. Mas ainda que seja assim, nega-la não é uma opção, pois tenho intimamente a visão, o pressentimento, a intuição — ou, quem sabe, apenas a esperança — de que algum caminho factível exista.

Não são Nikolai Tchernichevski (com sua abordagem romântica) e Vladimir Lênin (com sua prática revolucionária) que embalam minha visão. Penso que estou mais próximo das ideias do pensador italiano Pietro Ubaldi (1886-1972), que no livro “Profecias”, de 1953, explicita o futuro possível: 

“E, dado que a vida é sempre luta contra algum inimigo que obstaculiza a emancipação, desta vez o inimigo não será mais o próprio semelhante que vamos agredir, mas a nossa própria natureza animalesca, para superá-la e vencê-la. Como se vê, guerra contra ninguém, mas apenas contra as inferiores leis da vida, que ainda sobrevivem no homem, com o fim de sobrepujá-las. A emancipação da animalidade — eis a nova conquista; ou seja, um ‘requintamento’ de vida, não só na forma de fidalguia exterior, mas na substância, que é uma atitude psicológica de compreensão para com o próximo, de ordem na vida social, de bondade para com todos os seres. Embora tudo isso possa parecer utopia, não há outro futuro, se quisermos que haja verdadeiro progresso. Esta é a nova ordem do mundo.”

[As passagens em itálico foram extraídas de verbetes da enciclopédia livre digital Wikipédia.]

Dever intransferível

É tocante (no sentido de patético), como os indivíduos em geral se conformam (no sentido de cômodo) em delegar aos outros, ao outro, o protagonismo que lhes cabe nesta casca de planeta; e não apenas a alguns, mas a todos e cada um de nós.

Hoje somos capazes de especular que tal comportamento pode ter se instalado na psique de nossa espécie desde antes da transição do nomadismo para o sedentarismo, há 12 mil anos, quando a prática da especialização laboral passou a se estabelecer e em definitivo se impôs.

O entrecho da construção da História humana está alicerçado em paradoxos. No plano do intangível, fomos condicionados a enfrentar o desafio de viver sem porquê — leia, por favor, Destinados a ser. Mal e porcamente, ou empurrando com a barriga, como se diz, tocamos nossa vida para frente, jogando pra debaixo do tapete o lixo espiritual gerado por essa contradição. 

No plano do tangível, que denomino de ‘via do prosseguimento’, o paradoxo foi exatamente a prática da especialização do trabalho. Não poderia ter sido de outra forma, afinal, havia diferentes tarefas a serem realizadas e, para o bem da eficácia, da produtividade e do interesse geral, formaram-se grupos específicos de indivíduos para executá-las.

Ocorre que, embora útil e inevitável, a especialização paradoxalmente cobrou seu preço; e ele não foi barato. Aqueles indivíduos por natureza autossuficiente, capazes de absorver os conhecimentos básicos transmitidos pelos mais velhos para garantir sua sobrevivência, passaram a delegar algumas dessas tarefas a outros.

Essa rede de interdependência laboral, necessária e incontornável, produziu sujeição e subordinação. Os indivíduos que antes sabiam porque e como prover seu sustento, esqueceram-se de suas habilidades e/ou as repassaram a terceiros.

Surgiram as especializações e seus desdobramentos, determinados pela complexificação dos conhecimentos setoriais, de tal modo, por exemplo, que hoje um único médico já não dá conta de seu paciente; um só engenheiro não é capaz de projetar toda e qualquer obra; um único matemático não resolve todos os teoremas; um só físico não é capaz de enfrentar a variedade dos fenômenos naturais etc.

Muitas reflexões decorrem dessa completa interdependência. Alguns destacam só as vantagens — e elas são verdadeiras —, mas há quem, como eu (e tantos outros), também apontem o tal paradoxo do comodismo perverso, que se revela exatamente neste adiantado momento da História humana, quando dos indivíduos de nossa espécie se exige mais e mais autonomia reflexiva.

Não se trata de advogar pela volta de um remotíssimo passado, quando aqueles indivíduos sabiam o suficiente e dominavam os fazeres imprescindíveis à sua sobrevivência. Talvez não seja necessário que todos reaprendam a acender o fogo friccionando pedras ou peças de madeira; confeccionar as próprias armas para abater animais e obter a próxima refeição; saber distinguir a planta comestível da venenosa etc.

Mas, a meu ver (e de tantos outros, repito), é imprescindível que sejamos capazes de compreender e fazer uso dos conhecimentos fundamentais e universais deste nosso tempo (equivalentes àqueles do passado), sem nos submetermos à tutela de especialistas.

Por exemplo: quais são as forças que sustentam aquilo que nossos sentidos são capazes de conhecer, e como essas forças se projetam no espaço cósmico? Foi esse o sentido de meu texto de ontem — O que é essencial. 

O que é essencial

Nossa ignorância sobre as evidências da natureza precisa e deve ser superada, com urgência. Não é necessário que sejamos doutores em Matemática ou Física para compreendermos essas essencialidades; basta termos acesso de forma coletiva e metódica ao que já foi comprovado por cientistas ao longo dos últimos 350 anos, desde Isaac Newton (1643-1727). 

Dentre essas evidências, destaca-se o conhecimento da existência e do funcionamento das chamadas quatro forças, estas que controlam todas as interações do Universo, desde a formação de galáxias e estrelas, até a estrutura dos átomos e reações químicas que permitem a vida. Sem elas, a matéria se desintegraria, o Universo não se formaria como o conhecemos, nem a vida seria possível. Abaixo, uma breve descrição (com auxílio de Inteligência Artificial nos trechos em itálico): 

A força gravitacional mantém os planetas em órbita ao redor do Sol e é responsável pela queda de objetos na Terra e pelas marés. Foi anunciada em 1687, quando Newton a publicou em seu livro “Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica”.

A eletromagnética responde pela interação entre partículas subatômicas carregadas, como elétrons e prótons, combinando as forças elétrica e magnética. Causa atração entre cargas opostas e repulsão entre cargas iguais, mantém átomos e moléculas unidos. É a base da eletricidade, do magnetismo e da luz. Seu conhecimento foi consolidado ao longo do século XIX, culminando nas equações de James Clerk Maxwell (1831-1879), em 1865.

A nuclear forte é a mais poderosa, pois responde por duas funções cruciais: manter os quarks unidos para formar prótons e nêutrons, e manter prótons e nêutrons unidos no núcleo atômico. Ela opera em distâncias muito curtas, sendo forte o suficiente para superar a repulsão eletromagnética entre os prótons e, assim, permitir a existência dos núcleos atômicos. A ideia inicial de sua existência foi proposta por Hideki Yukawa (1907-1981), em 1935. 

A nuclear fraca é responsável por transformar partículas subatômicas, como ocorre no decaimento beta (onde um nêutron se converte em um próton, um elétron e um antineutrino). Ela atua em um alcance extremamente curto, dentro do núcleo atômico. É crucial para processos como a fusão nuclear no Sol, mantendo o equilíbrio de prótons e nêutrons no universo. Sua formulação teve início com Enrico Fermi (1901-1954, um dos inventores da bomba atômica), em 1933.

Há, ainda, uma quinta força, responsável por uma interação fundamental hipotética que, se existir, poderia explicar enigmas do universo, como a matéria escura e a aceleração da expansão cósmica.

Qualquer indivíduo, desde que seja informado a partir da primeira infância, de maneira adequada, é capaz de paulatinamente assimilar e dominar essas informações essenciais para a apreensão de seu (nosso) pertencimento cósmico. Este é o desafio que está posto.

Como escreveu Leonardo Boff, em recente artigo — A Terra é viva, geradora de todos os seres vivos —,  "as quatro interações básicas do universo (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear forte e a nuclear fraca) continuam atuando sinergeticamente para a manutenção da atual seta cosmológica do tempo rumo a formas cada vez mais relacionais e complexas de seres. Muitos cientistas sustentam que elas, na verdade, constituem a lógica e o dinamismo interno do processo evolucionário; por assim dizer, a estrutura, melhor dito, a mente ordenadora do próprio cosmos". 
 

Já se ouvem os gemidos

Não cabem mais contemporizações. É urgente disseminarmos o conhecimento e a compreensão de que a Terra pertence ao Universo, e que nós, seres humanos, somos apenas ocupantes transitórios da casca deste planeta. Transitórios, mas em grande parte responsáveis por seu destino cósmico.

Menções frequentes, e crescentes, a esse respeito têm sido vistas nas redes sociais — me informou ontem um amigo —, e é bom que isso esteja acontecendo. Finalmente!

O advento do humanismo, há cinco ou seis séculos, proporcionou progressiva formulação dos direitos dos indivíduos de nossa espécie, até que a ideia se consolidasse em textos legais destinados a regular a convivência entre as pessoas, os povos e as nações.

Vemos hoje que o nobre objetivo não se realizou; ao contrário, foi corrompido. A nunca superada imaturidade emocional da espécie impediu a interiorização daquilo que nossa razão formulava. Ao contrário, desenvolvemos comportamentos dissimulados, hipócritas, fingindo praticar o que na verdade sempre descumprimos, ainda que cobrando responsabilidade aos outros, ao outro.

Fizemos assim, desde sempre, nas relações políticas — Não é aceitável que os indivíduos eleitos para legislar ou governar continuem colocando seus interesses pessoais e/ou de seus grupos à frente das necessidades urgentes dos cidadãos de seus países, estados, cidades.

Atuamos do mesmo modo onde se deveria aplicar justiça — É revoltante ver os integrantes privilegiados desse sistema, que deveriam agir segundo direitos coletivos e igualitários, decidindo em favor dos segmentos endinheirados e poderosos, e impunemente, porque afinal são eles próprios que se regulam.

Agimos assim até no campo da estética, que deveria ser livre, crítica e sábia — É inadmissível que os produtores de arte, de todas as artes, ainda percam tempo olhando para seus próprios umbigos, em transes egotripcos, ou para o umbigo das sociedades em que estão inseridos, contemplando, apenas condoídos, as incontáveis injustiças.

O tempo da insinceridade acabou. Muitos, a maioria, infelizmente, ainda não tem conhecimento disso, mas veem tomando ciência na carne, das formas mais trágicas, pois o caos se instalou no âmago das relações públicas e privadas, e seus efeitos dolorosos se espalham democraticamente para todas as camadas sociais.

A prática do humanismo, repito, é uma falácia. Pouquíssimos o fazem, e aqueles que adotam seus princípios (predominância do homem, racionalismo, valorização da potencialidade individual, autonomia e autodeterminação, defesa da liberdade, promoção da educação e do conhecimento, prática da ética, valorização da dignidade, defesa da atitude crítica, destaque aos aspectos físicos, emocionais, espirituais e cognitivos do homem) são ridicularizados.

Basta de contemporizações! Chega de diversionismos! E não porque alguns de nós, seres humanos, desejemos pôr fim à trágica pantomima que nos cerca, ao teatro de absurdos a que estamos submetidos, mas porque é a realidade que se impõe.

O ser humano pertence ao Cosmos. É a partir desse plano que devemos nos enxergar, e não da visão medíocre e limitada de nossa breve existência. Com uma vantagem: a partir do momento em que adquirirmos essa compreensão e prática, as misérias existenciais ganharão uma chance de serem superadas.

Como nos avisou o poeta T. S. Eliot (1888-1965), o mundo acaba não com um estrondo, mas com um gemido.

Ignorância e limitação

Silêncio por favor
Enquanto esqueço um pouco
a dor no peito
Não diga nada
sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais
quem me deixou assim
Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas
E nada mais nos braços
Só este amor
assim descontraído
Quem sabe de tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito


Esta canção, na interpretação minimalista de seu autor, Paulinho da Viola, ou no canto construído de Marisa Monte, é a concreta possibilidade de se produzir beleza. Nela estão reunidos precisão poética e modernos recursos formais, numa demonstração de que a maestria artística não se limita ao ambiente ‘erudito’, ou de ‘vanguarda’. Também pode estar no ‘popular’.

A expressão organizada de estados emocionais — a que denominamos arte —, bem como sua fruição, constituem atributos exclusivamente humanos. Categorizá-los de acordo com a origem social de seus produtores e, pior ainda, conforme o público a que se destina, são comportamentos típicos de mentes arrogantes. 

A invenção, nas artes ou nas ciências (estas mesmas uma forma de arte — leia 'Ars Humanae' quântica), independe da origem social de seu produtor. Certamente que o acesso à educação e à cultura pode lhe proporcionar alguma vantagem, ou oportunidade, mas não necessariamente.

O que está na essência do inventor, ou mesmo do mestre — admitindo-se a categorização do poeta e crítico Ezra Pound (1885-1972) —, é o talento natural e as habilidades aprimoradas daquele que organiza e emite a mensagem (artística ou científica). É a genialidade da raça.

Paulinho da Viola, que tomei como exemplo, é mestre no ofício de depurar emoções em precisas palavras; desvendar a essencialidade humana; mostrar que é possível ser popular e universal.

Quê importa sua origem social, ou se ele possui atributos formais além daqueles que o permitem se expressar em textos depurados e sons organizados? O que tem valor é a qualidade fina de sua obra; seu poder de emocionar, inquietar e suscitar reflexão, independente da educação e da cultura de seu público. Como tantos outros dessa estirpe (preste atenção no solo do cuiqueiro, na versão de Marisa...).

Categorizar os indivíduos — em especial produtores de artes — segundo suas aparências, origens ou o meio em que circulam, é uma atitude desinteligente, um vício civilizacional adquirido e que não conseguimos abandonar. Mas também é, e principalmente, uma muleta social e um biombo moral para esconder nossa própria ignorância e limitação. 

Nosso primeiro passo

Da mesma forma que — como observou alguém falando da opressão imposta pela grandeza de New York aos seus visitantes, ensinando que para capturar e se apropriar do espírito da metrópole era preciso olhá-la de seu ponto mais elevado —, para internalizar nosso pertencimento ao Cosmos é igualmente necessário que observemos a Terra do ponto mais distante que nos for possível. 

Isto, quase por milagre, nos foi proporcionado em 1990, conforme mencionei em texto anterior —  “Tributo a Sagan” —, mas pode ser revisto e compreendido aqui: “Pálido Ponto Azul”.

O que nossa espécie precisava para alçar um novo patamar cognitivo — e a partir dele iniciarmos nossa jornada de amadurecimento mental e espiritual — era de um evento dessa magnitude e força de convencimento. Pois há 35 anos o temos. É urgente reconhecer seu valor e utilidade.

Alguns dizem que a disposição de nos voltarmos para o Cosmos só ocorrerá após imenso cataclismo, seja ele provocado por nós (pandemias geradas por desequilíbrio ecológico, desastres ambientais produzidos pela crise climática, histeria planetária decorrente de entropia comunicacional, guerra nuclear…), ou proveniente do espaço (choque de um grande meteoro, tempestade solar…). Mas, a partir dessa experiência que Sagan nos proporcionou, não precisa ser assim.

Penso, como tantos outros, que se aquelas imagens (e seu significado) forem mostradas, analisadas e contextualizadas para crianças, adolescentes e jovens, ao longo do processo educacional e com a profundidade adequada a cada faixa de idade, algum impacto humanístico relevante haveremos de alcançar.

Se nossa sina é “vivermos imersos nessa quase maldição de pensar em saídas, sem vislumbrar luz; conscientes de que tal circunstância, em si mesma, é uma daquelas necessidades básicas que nos estão determinadas” — ou seja, das quais não podemos declinar —, que abracemos conscientemente esta inevitabilidade existencial.

A luta não continua. A luta é agora!

Ela deve se dar primeiro em nossas mentes; impor-se à nossa vontade cotidiana e mundana, de sol a sol; sem que percamos da vista e da vontade o imperativo categórico ético anunciando por Immanuel Kant (1724-1804), que define uma ação como correta se a sua máxima (o princípio por trás da ação) puder ser universalizada, ou seja, se puder ser aplicada como uma lei a todos os seres racionais sem contradição.

Temos já bastante poder de discernimento para pôr em prática o processo de resgate da espécie humana. Ele começa pelo autoconvencimento da essencialidade de nossa conciliação com o Cosmos. 

Esta jornada terá início com o primeiro passo. Sua disseminação para segmentos mais amplos da sociedade se dará de forma estruturada, orgânica e pacífica, em oposição à demência a que estamos submetidos neste exato instante da História.

Esta é a nossa ‘reação igual e oposta’; nossa aplicação racional e possível da 3ª lei de Isaac Newton (1643-1727).  
 

Sempre o outro

Pensar é só pensar. Digo isso, quase citando na íntegra Millôr Fernandes (1923-2012), depois de reler o último texto que aqui postei — “O caminho da intuição” —, na linha das ideias e objetivos de tantos dos meus textos e livros já publicados. E confesso que encontrei pela frente, alto e nítido, o muro maciço desta evidência existencial concreta: não temos saída.

Estamos irremediavelmente aprisionados às demandas da vida material, cotidiana, a via do prosseguimento, como um dia nomeei — aquela que se impõe, de sol a sol, sem nos deixar tempo nem espaço para empreendermos qualquer tentativa de fuga deste labirinto em que nos encontramos.

Nossos pensamentos acerca da conquista do amadurecimento mental de nossa espécie não passam de hipóteses, reflexões de certa forma presunçosas, pois se trata tão somente de pensar sem consequências, sem as ações requeridas.

Parece ser verdade que a tomada de consciência de nosso status cósmico — coisa que tenho defendido em todo lugar — tem, terá ou teria o poder de realizar a necessária inflexão mental que nossa espécie necessita. A questão é como essa maravilha se dá, dará, ou daria.

Não será — e aí se encontra o ‘muro’ — através de palavras faladas ou escritas. A poder de convencimento da linguagem é limitado. Não há argumento capaz de superar a imposição das necessidades básicas da existência — a tal via do prosseguimento

No resumo da ópera, o que prevalece é o grito da fome, da sede, dos sofrimentos físicos e psicológicos, das inseguranças pessoais e sociais, do abandono, e não menos da sexualidade mal resolvida.

Impossível competir com tais demônios concretos, onipresentes, carnais.

O que é isso, uma renúncia, uma confissão de fracasso, o fim da História? Não, ainda, pois tanto quanto as exigências do corpo e da mente, está na essência do ser humano conjecturar sobre outras e melhores possibilidades existenciais. 

Irônico, vivermos imersos nessa quase maldição de pensar em saídas, sem vislumbrar luz; conscientes de que tal circunstância, em si mesma, é uma daquelas necessidades básicas que nos estão determinadas...

Desconhecemos o tempo que nos resta para encontrar a solução desse mistério. E, como indivíduos imaturos, que somos, seguimos esta jornada inconsequente, formulando ideias libertadoras sem realmente nos determinarmos a construir a tal conciliação cósmica; consumidos pelas imposições da via do prosseguimento.

Tenho defendido aqui, desde o começo, e nos meus livros também, que essa conciliação subordina-se à conquista de nossa maturidade. Continuo pensando assim, mas o que agora percebo, de forma cristalina (e para mim sempre dramática), é que não seremos capazes de cumprir essa tarefa; ao menos na ordem de eventos que eu imaginava, ou desejava; não ao menos até onde minha vista alcança no futuro.

Queremos que o outro venha nos resgatar.

O outro. Sempre o outro.  

O caminho da intuição

O prosseguimento de nossa existência depende da superação dos desafios impostos a este ser imperfeito e finito, nos três planos em que a luta se desenvolve: físico, mental, espiritual.

Esta é a nossa condição incontornável e o nosso único caminho: lutar em prol da preservação do corpo, do equilíbrio da mente, de nossa conciliação com o cosmos. Não deveria haver um ordenamento nessas 'frentes de batalha’, mas é assim que está posto e só nos cabe ‘combater’.

Primeiramente, é preciso destacar que viver nos cobra compromisso intransferível com as experiências proporcionadas pelos nossos sentidos. O mundo conforme o entendemos é fruto do modo como o vemos, ouvimos, cheiramos, saboreamos e sentimos, embora essas vivências não sejam suficientes para nos elevar acima e além dos condicionamentos primários (estes que também garantem a existência reativa de outras espécies). Falta-nos a intuição.

Há de se reconhecer que no plano físico algum sucesso alcançamos. Hoje vivemos mais; muitas doenças estão sob controle; e temos meios para saciar a fome de todos que habitam a casca deste planeta (só não o fazemos porque o egoísmo nos impede).

No plano mental, porém, continuamos distantes da maturidade; não por falta de percepção das fraquezas que nos dominam — nós as conhecemos! —, mas porque ainda não fomos capazes de mapear e neutralizar as motivações e os gatilhos que nos mantêm emocionalmente rebaixados (o egoísmo apontado acima, por exemplo).

O fato de nos inconformarmos com o que somos (imperfeitos e finitos), e por isso vivermos em estado de permanente angústia, ainda que sufocada, resulta de ainda não termos alcançado a conciliação no plano espiritual. Este talvez seja o maior dos nossos desafios, porque, uma vez enfrentado, produzirá benéficos efeitos sobre os planos físico e mental. Mas, reafirmo o que tenho dito (e tantos outros dizem): formular e praticar religiões não foi e não será uma opção; constatar e aceitar isso tem sido um longo, lento, e doloroso processo. 

As dores e os prazeres decorrentes da luta nesses três planos, tendo o físico como predominante, constituem perdas e ganhos essencialmente nossos, individuais. Ainda que a ideia de livre arbítrio seja um equívoco, pois somos determinados por sucessivos e interconectados fatores sobre os quais não detemos qualquer poder (combinação genética, origem geográfica, meio social, condição familiar etc.), as escolhas que a cada instante fazemos são exclusivamente nossas. E são nossas porque não são outros que as praticam, mas nós mesmos, seus agentes — quer resultem em flores ou espinhos. É simples assim!

Quanto menos negarmos que a vida é luta; quanto menos rejeitarmos nossas responsabilidades no protagonismo dessa luta; quanto menos ignorarmos as relações de causa e efeito decorrentes das ações que protagonizamos; quanto menos nos distrairmos perseguindo crenças, esperanças, quimeras fugazes; quanto menos nos perdermos entre o que nossos sentidos oferecem e o que desejamos que eles nos proporcionem, mais municiaremos a intuição a nos oferecer novos entendimentos sobre nossa existência. E com mais harmonia avançaremos nos três planos de luta.

Avançaremos para melhor?

Essa é a questão sem resposta. Primeiro é necessário definir o que compreendemos por "melhor". 


Tributo a Sagan

John Lennon, aquele velho romântico do rock and roll planetário dos 1960-70 (hoje teria 85 anos), cantou até a exaustão que ‘de amor é o que cada um de nós precisa’. Hoje sabemos que as coisas da vida não são bem assim. Não é de ‘amor’ que cada uma das pessoas deste mundo carece, mas de pensar.

Pensar é mais difícil do que amar. O amor decorre de processos neurológicos associados à empatia entre indivíduos; de compromissos sociais; de interações químicas — nada disso está sob nosso controle; são manifestações espontâneas, individuais, irracionais.

Pensar é diferente. Exige abstinência das distrações que subvertem nosso momento (tais quais as guloseimas, que devemos evitar, pois sequestram nossa fome); pede desprendimento para considerar posições contrárias (pois a força de um argumento independe de ideologias, é uma questão de lógica); e também requer tempo e ambiente propício (porque o pensamento é incompatível, por exemplo, com uma chaleira chiando na cozinha).

Essas são algumas das condições para se obter reflexões produtivas. A crescente ausência desses fatores subjetivos e/ou objetivos talvez explique o porquê do pensamento filosófico deste nosso tempo não superar as melhores ideias formuladas pelos filósofos do passado.

O fato é que, desde o início do século XX, quando já se definiam as linhas mestras da cultura de massas, instalada no mundo após a II Guerra Mundial — tendência antecipada por Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650) —, o que temos tido são sucessivos intelectuais dedicados a gravitar em torno dos antigos teóricos.

Sim, alguns têm sido ousados e esclarecedores — cito Sigmund Freud (1856-1939), Carl Gustav Jung (1875-1961), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Zygmunt Bauman (1925-2017), apenas para ficar nos meus preferidos —, mas, talvez por ignorância minha, não enxergo em nenhum desses, e em outros, desde a virada do século XIX para o XX, a condição de propositores de passos à frente na compreensão da existência humana.

Onde vi alguma luz foi na iniciativa de astrofísicos, como Carl Sagan (1934-1996), que insistentemente nos apontou o caminho do Cosmos, e no dia 14 de fevereiro de 1990 conseguiu que a Voyager I direcionasse suas câmeras para o espaço atrás, já percorrido, capturando uma sequência de 60 imagens inéditas da Terra, pouco antes de mergulhar para além do Sistema Solar.

Esse evento transcendente (naquele dia a Voyager I, lançada doze anos antes, se encontrava a 6 bilhões de quilômetros do nosso planeta) deveria ter despertado “mais e melhores” reflexões filosóficas, pois nos proporcionou a inédita e inestimável prova da insignificante presença cósmica do ser humano, em contraste com nossa imensurável imodéstia.

Não foi o que aconteceu. Sagan lançou muitos livros, produziu incontáveis artigos, proferiu inúmeras conferências, mas seu enlightenment cosmológico ficou restrito ao campo das curiosidades, nunca tendo superado a arrogância dos ‘pensadores autorizados’ a interpretar nossa existência.

Esquecem-se esses ‘intérpretes’ que tem sido a prática da ciência, desde as eras primitivas (quando ainda nem de ciência se falava), a responsável por puxar os fios da cognição humana. Pensar é preciso. Mas para pensar “mais e melhor” é necessário ter os pés plantados na Terra. Ainda que a Terra não passe de um “pálido ponto azul” perdido no espaço. 

Nós as comemos

O que somos nós, seres humanos, sob o ponto de vista estritamente biológico? Até prova em contrário, descendemos do Homo neanderthalensis e do Homo sapiens, ambos originários da grande família Hominidae, surgida há 7 milhões de anos na África. Éramos, então, animais onívoros, ou seja, nos alimentávamos de vegetais e carnes.

O vegetarianismo tem suas referências mais antigas no Hinduísmo (2.200 a.C.) e no Budismo (1500 a.C.), quando era recomendado, mas não imposto aos seguidores dessas religiões. Na antiga Grécia, por influência de filósofos, uma parcela da sociedade passou a se alimentar preferencialmente de vegetais, sob a justificativa de promover a “benevolência entre as espécies”. À frente desse entendimento estavam Pitágoras (c.570 a 495 a.C), Platão (428 a.C. a 347 a.C.), Epicuro (341 a.C. a 271 a.C.) e Plutarco (46 d.C. a 120 d.C.) — Pitágoras, inclusive, ficou conhecido como “pai do vegetarianismo ético”. 

A prática continuou durante o Império Romano (27 a.C. a 476 d.C.), especialmente entre filósofos e religiosos, mas se perdeu durante a Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C.). A partir do Renascimento (1400 d.C. a 1700 d.C.), com a valorização da cultura grega clássica na Europa, o vegetarianismo foi retomado e defendido também por grandes pensadores, como o francês Voltaire (1694-1778) e o norte-americano Henry David Thoreau (1817-1862). “Em 1847 — conforme a revista National Geographic — foi fundada a primeira sociedade vegetariana no mundo, na Inglaterra, e em 1889 se criou a International Vegetarian Union”.

Desde então, o vegetarianismo (prática mais moderada) e o veganismo (sua versão radical, surgida oficialmente em 1944, que exclui a ingestão ou utilização de todos os alimentos ou objetos de origem animal) não pararam de se expandir. Nos dias de hoje, imensa parcela da sociedade se declara escandalizada, até mesmo enojada, com o consumo de carnes, tendo excluído a proteína animal de sua dieta.

Sabe-se, no entanto, que ‘adotar um estilo de vida ativo é essencial para se manter saudável, e que isto requer ganho de força e massa muscular. Para isso, é necessário estimular a síntese proteica no músculo. Os dois principais estímulos são o exercício de força e a proteína alimentar. Mas o primeiro também aumenta o catabolismo proteico (a degradação de proteínas) no músculo. Por isso, um aporte nutricional que garanta um saldo proteico positivo (em que a síntese seja maior do que a degradação) é essencial. Assim, em teoria, a proteína animal é considerada melhor para ganho de massa e força muscular’, explicam especialistas ouvidos pela BBC.

Nos primórdios de nossa ancestralidade, o ‘ganho de força e massa muscular’ foram essenciais na luta pela sobrevivência. Se essas condições não estivessem presentes no metabolismo daqueles indivíduos, através do consumo da carne de animais, provavelmente nossa espécie não teria seguido adiante e construído uma História.

Portanto, conforme o Hinduísmo, o Budismo, os antigos gregos nos ensinaram, e as pessoas sensatas costumam recomendar, a sabedoria não está nos extremos. Enquanto a ciência não for capaz de produzir proteína sintética equivalente a animal, o consumo de carnes continuará necessário, de preferência com moderação. E não nos esqueçamos de que as plantas, embora não sintam dor, também são seres vivos.

Elas emitem sons em situações de estresse; comunicam-se por uma rede subterrânea de fungos; partilham nutrientes com suas vizinhas; produzem substâncias químicas para atrair predadores dos insetos que as atacam — ou seja, pedem socorro. Ainda que sua seiva não seja vermelha como o sangue animal, elas são tão dignas de “benevolência” como os bichos que abatemos. E mesmo assim as comemos. 
 

Nosso cárcere suave

Ouvi hoje meu neto mais novo, o Otto, prestes a completar 7 anos, exercitando sua recente conquista: a capacidade de ler palavras e compreender mensagens contidas em seus livrinhos de histórias.

Feliz com o significado desse momento, o que me ocorreu de imediato foi a importância transcende do processo de invenção da linguagem falada, e depois escrita, para o desenvolvimento cognitivo da nossa espécie.                                                                                                                                                                Ainda que sobre sua origem só nos restem suposições, tal mistério se assemelha à pergunta que se faz a respeito da matemática: ela foi descoberta ou inventada? Com uma agravante: superando a linguagem dos números, a linguagem dos signos revela inegáveis fragilidades e insuficiências.

Prova disso é que — muito mais do que a matemática, cuja expansão tem proporcionado o incessante desenvolvimento das ciências e a interminável revolução tecnológica — a linguagem dos signos e dos significados tem fracassado naquilo a que exatamente se propõe: promover o entendimento entre os seres humanos. É sobre isso o Capítulo III do meu primeiro livro — “Do que se fazem as salsichas” —, parcialmente reproduzido abaixo:

A linguagem codificada é um confortável obstáculo ao avanço da nossa espécie. Com a invenção e o desenvolvimento dos idiomas falados e, mais ainda, com suas representações escritas e depois amplamente reproduzíveis, fomos capazes de exprimir conceitos, transmitir experiências, disseminar ensinamentos, definir contratos, construir uma civilização.

Porém, embevecidos com os sons que passamos a produzir, as ideias e os conceitos expressados, deixamos de perceber que ela, a linguagem, é incapaz de transmitir a complexidade da compreensão que os nossos sentidos e intuição, associados, alcançam. Como tantas (todas?) as invenções humanas, a linguagem é limitada, enganosa, intangível, imensurável em seu significado.

Alguém já questionou sua precariedade para cumprir plenamente seu papel como código a serviço do entendimento entre as pessoas, mesmo aquelas detentoras de repertórios equivalentes e pertencentes aos mesmos estratos culturais e sociais, ainda que contemporâneas das mesmas experiências.

Todos os atos e produtos humanos são passíveis de avaliação e quase sempre se revelam falhos, ou fraudulentos. Já a linguagem, ela própria uma das primeiras e fundamentais invenções (ou descobertas) humanas, condição indispensável para a evolução da nossa espécie (embora ainda haja dúvida se de fato isto que temos é evolução), esta resta majestosa, depositada num Olimpo inquestionável. E, no entanto, porém, não obstante, a despeito da crença cega em seus poderes, trata-se de uma ferramenta insuficiente e, por isso, se não fracassada, ao menos passível de muitos aprimoramentos.

Quando nos dedicamos a quaisquer tentativas de produzir esclarecimento, o que brota dali (e daqui, reconheço!) são borrões, rascunhos de percepções, interpretações equivocadas. Por isso, construir uma comunicação por meio exclusivo das formas de linguagem de que dispomos pode até ser nobre tentativa, mas, convenhamos, é uma tarefa frustrante. Vejam estes tempos que nos cercam. Quanto entendimento pode ser obtido, neste exato instante, por meio do uso da linguagem falada e escrita, em qualquer mídia (media) que se queira utilizar?

Não culpemos nossos antepassados mais remotos, aqueles que do grito, da associação de ideias primárias e da mimetização dos ruídos produzidos por seus próprios corpos e pelo ambiente que os cercava desenvolveram magníficos códigos, significantes de tantos sentimentos e instigadores de tantas ações. Foram heroicos aqueles seres. Graças ao modo e ao método com que responderam ao desespero de suas existências, alguma oportunidade civilizatória se abriu para nossa espécie.

Mas, o fato é que, veja, estamos encarcerados pela linguagem, presos ao que os textos e as falas podem, precariamente, nos dizer. Nem mesmo o que nos chega por intermédio de imagens e de sons organizados, como a pintura e a música (também elas linguagens); nem mesmo o que nossos músculos espontaneamente expressam (o que se apresenta como uma outra forma de comunicação) somos capazes de valorizar, pois a linguagem lida/ouvida tornou-se a nossa prisão, a chancela do nosso (des)entendimento.

Com a linguagem constituímos um modo de ser e sobreviver, e a isso denominamos civilização. Mas não fomos capazes, ainda, de aceitar a fragilidade de sua simbologia para enfrentar a grande tarefa de nos situarmos no espaço-tempo. Daqui de dentro deste código, no mesmo instante em que o utilizo e enquanto agradeço a tantos que o criaram, desenvolveram e aperfeiçoaram, não posso deixar de nele reconhecer os contornos de um cárcere suave. E, no entanto, um cárcere. 

Vejam como são as coisas

Dizem historiadores que, ao contrário do que se convencionou, a primeira povoação do nascente Brasil, no início do século XVI, teria sido Cananéia, surgida cinco meses antes da fundação de São Vicente (a 22 de janeiro de 1532), hoje tida como a “célula mater na nacionalidade”.

Alguns atribuem o nome à palavra tupi kanindé, ou kaniné, um tipo de arara existente na região, aportuguesada ao longo do tempo para Cananéia. Ocorre que, em 24 de janeiro de 1502, dois anos após a ‘descoberta’ do futuro Brasil, uma expedição exploratória tendo à frente Gaspar de Lemos e Américo Vespúcio — destinada a reivindicar e demarcar as novas terras para Portugal — teria nomeado a região como Barra do Rio Cananor. Talvez em homenagem à importante cidade portuária de mesmo nome, localizada na costa sudoeste da Índia, dedicada ao comércio com a Pérsia e Arábia nos séculos XII e XIII.

Dizem também que em 1531, quando Portugal enviou uma nova expedição, sob o comando de Martim Afonso de Souza, o local não se chamava Kanindé, ou Kaniné, mas Maratayama (mara = mar e tayama = terra, ‘onde o mar encontra a terra’).

Fato curioso é que a mesma expedição exploratória de Lemos e Vespúcio, a de 1502, teria trazido de Portugal uma ‘figura obscura, o degredado português Cosme Fernandes’, desterrado exatamente naquela localidade, onde se tornou personagem poderosa.

Há controvérsias sobre o verdadeiro nome de Cosme Fernandes; sobre quem o trouxe de Portugal; e até mesmo sobre a data em que ele aqui chegou. Mas o que se dizia, à época, era que a ilha de Cananeia havia se tornado ‘um verdadeiro depósito de degredados’, destinado a povoar os limites portugueses, ao Sul, do Tratado de Tordesilhas (firmado entre Portugal e Espanha em 1494). Degredados ‘eram pessoas condenadas pela justiça ou pela Inquisição a cumprir pena no exílio. E não só criminosos comuns, mas também presos políticos e cristãos-novos perseguidos’. 

Cristãos-novos era a designação dada a judeus e muçulmanos convertidos à força ao cristianismo na Península Ibérica, especialmente a partir do final do século XV. Ou seja, Cosme Fernandes (ou Cosme Fernandes Pessoa, ou Duarte Perez) pode muito bem ter sido um cananeu, denominação dos indivíduos vinculados à antiga Canaã (atual Israel e Palestina, vejam só!), uma das mais antigas civilizações da história da humanidade.

Muitos degredados eram jovens, fundamentais para a ocupação dos primeiros povoados, contribuindo com suas habilidades de negociação e força de trabalho para o desenvolvimento das terras além-mar. Mas, como a História é cheia de surpresas, Cosme Fernandes, o Bacharel de Cananéia, nunca prestou obediência à coroa portuguesa. Passou a combatê-la e, na opinião de muitos, inaugurou o espírito indômito que marcaria a alma do povo de Santos [*], São Paulo, a cidade-sede da região.

[*] Meu livro “Sonífera ILHA” conta em 100 páginas a história de como o caráter combativo do santista se estabeleceu, e foi substituído pela apatia desde a segunda metade do século passado. 

Não vale “poder e riqueza”

Ouvi nesses dias de um iraniano (Nima R. Alkhorshid), em conversa com um norte-americano (Larry C. Johnson) — Dialogue Works —, analistas de geopolítica, estimulante reflexão sobre o valor do nacionalismo. Ambos concordaram nos seguintes termos:

Nima: “Se você se ama, então é capaz de amar outras pessoas também. E de certa forma, o nacionalismo remete a esse conceito. Se você ama o seu país, consegue entender que outras pessoas também amam o país delas. É por isso que você pode encontrar um terreno comum para trabalhar com outras pessoas, ao invés de tratá-las como diferentes. Sim, elas são diferentes porque são brasileiras, norte-americanas, mas no fim das contas todos são seres humanos, que podem se unir, trabalhar juntos, encontrar um terreno comum para atuar. Mas antes de amar a si mesmo e ao seu país, você não é capaz de dar amor ou amar qualquer outra nação, qualquer outro povo”.

Larry: “Você já conheceu alguém que realmente se odiava e por causa desse auto ódio se envolvia em todo tipo de comportamento autodestrutivo. Os mesmos princípios, eu diria, se aplicam aos países. Então, quando você realmente coloca a si em primeiro lugar, parece egoísmo, mas quando você lida com outro país que também está se colocando em primeiro lugar, é aí que entra a arte da diplomacia. Você descobre no que podemos concordar, o que podemos fazer juntos que vai melhorar a situação de ambos. Porque o mundo não foi construído para ser apenas um jogo de soma zero, onde eu ganho e você tem de perder. E é isso que estamos enfrentando agora”.

Nima, que vive no Brasil, e Larry, nos EUA, traduzem nesse diálogo um aspecto daquilo que tentei expor no texto Destinados a ser. Os dois partem da aceitação fundamental de que, tendo nascido aqui, ali ou acolá, todos somos seres humanos, pertencemos à mesma espécie, habitamos o mesmo planeta.

Mas a conversa traz outra oportuna constatação: o fato de estar disponibilizada na internet, ao alcance de milhões de pessoas, contando inclusive com tradução em áudio realizada com recursos de Inteligência Artificial (IA).

Este é, sem dúvida, o maior valor que a comunicação global nos tem proporcionado — a oportunidade de democratizar o acesso a questões fundamentais da existência, numa demonstração de que tais assuntos não se destinam a ambientes fechados, nem a ouvidos privilegiados. Se bem explicados, todos podem entender.

Por isso, o lado sombrio e destrutivo da internet, tanto quanto o potencial disruptivo da IA, não podem servir de argumento para condená-las. Temos de dialogar a fim de desenvolver meios e modos de assumirmos o controle social sobre o uso desses recursos, pois seus potenciais são imensos. Nesse diálogo, a principal pergunta a ser feita é: O quê nos motiva a desenvolver essas tecnologias? Não vale a resposta “poder e riqueza”.