Em 2001, quando o mundo ainda estava sob o impacto do ataque de 11 de Setembro à sede do capitalismo planetário, a cidade de Nova Iorque, o renomado compositor alemão de música contemporânea Karlheinz Stockhausen (1928-2007) afirmou que aquele ato terrorista teria sido “uma obra de arte tão grande quanto qualquer outra”.
O comentário produziu grande incômodo, mas Stockhausen nunca se explicou, nem se desculpou; afastou-se, ou foi afastado de apresentações públicas a partir dali, até sua morte. A frase, no entanto, é importante, pois nos dá a oportunidade de refletir sobre essa questão balizadora de nossa existência: o mal.
Por definição, o mal é a ausência do bem, isto é, a falta da capacidade de compreender e compartilhar os sentimentos dos outros (empatia) e de refletir sobre o certo e o errado (ética). Trata-se de uma construção da mente e, portanto, exclusivamente humana — se um peixe grande come um peixe pequeno, ele não age assim por maldade, mas por instinto, em favor da sobrevivência de sua espécie.
Nossa espécie, resultante de singularíssima conjunção cósmica — dê-se a Ela o nome que se der —, deparou-se desde o princípio com alguns desafios existenciais, dentre eles, e talvez o mais importante, a obrigação e necessidade de superar os instintos.
Isto é: jamais teríamos constituído os laços sociais fundadores de nossa civilização — por mais fracassado que seja este modelo civilizacional que erigimos —, sem que estivessem presentes em nossa consciência os conceitos de bem e de mal. O problema fundador desta nossa realidade esquizofrênica é que fomos incapazes de realizar aquela obrigação e necessidade: os instintos nunca foram superados, porque nunca de fato alcançamos a maturidade.
Uma explicação talvez se encontre no fato de que os instintos nos são convenientes; afinal, são eles que impulsionam a busca permanente por minorar nossas carências físicas e materiais (o que chamo de via do prosseguimento), sobrepondo-se assim, pela urgência, aos conceitos morais que balizam o bem e o mal. Estes se destinam a prover a convivência utilitária entre semelhantes, a qual pode ser, e usualmente é, relativa às circunstâncias pessoais, sociais, históricas; aqueles, os instintos, atendem às nossas demandas existenciais imediatas — tanto quanto as de qualquer animal —, sendo, portanto, condição imperativa e incontornável de sobrevivência.
Os sucessos individuais e coletivos — “aos vencedores as batatas”, como sentenciou Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” —, validam a prática multimilenar da lógica relativista norteada pelos instintos. Validam, confirmam, mas igualmente consolidam os obstáculos ao avanço da consciência que fundamenta os conceitos de bem e de mal. Eis a esquizofrenia plenamente incorporada às nossas vidas.
Nesse sentido, o 11 de Setembro de 2001 nova-iorquino, se formos capazes de abstrair os sofrimentos e as destruições ocasionadas, pode ser visto, sim, como “uma obra de arte tão grande quanto qualquer outra”. A definição de Stockhausen, por mais chocante que sempre pareça, não contempla a (i)moralidade do ato; principalmente porque, como sabemos, nossa civilização relativiza o mal. Sem qualquer cerimônia.
A “arte” por Stockhausen referida está (esteve) no fato estético em si, realizado conforme os mais avançados conhecimentos disponíveis (técnica), executado com inquestionável eficácia (maestria) e produtor de efeito devastador sobre a consciência do Ocidente (mensagem) — três requisitos presentes, entre outros, em qualquer manifestação artística.
Já o mal apontado, e de fato presente naquele atentado, em nada difere de outros tantos e sanguinários males perpetrados ao longo da História de nossa fracassada civilização, com destaque para os que me vêm à memória:
Santa Inquisição;
Colonialismo predador extrativista;
Escravidão de 12,5 milhões de africanos;
Genocídio dos povos indígenas de todo o planeta;
Assassinatos em massa pelo nazismo, fascismo, stalinismo;
Bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki;
Exploração continuada das nações pobres;
Fome, doenças físicas e mentais etc. etc. etc. etc., e ainda todos os males que impingimos uns aos outros, cotidianamente, mundo afora.