A 'Ars Humanae' quântica

Habilidade ou disposição dirigida para a construção de uma finalidade prática ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e racional  este é o significado de Arte (do latim Ars, Artis), uma definição "breve e clara" para literalmente todas as ações humanas, numa conceituação que nos remete às ideias de ofício, expediente, obra, produto, talento etc

Tudo começou a mudar radicalmente no Renascimento (meados do século XIV ao fim do século XVI, na Europa), período histórico inspirado na Antiguidade Clássica grega, onde se passou a valorizar a racionalidade, em contraposição ao dogmatismo místico, religioso, obscurantista da Idade Média.

Ali, na transição do feudalismo para o capitalismo, paradoxalmente aos avanços científicos que se seguiram, a ideia de Arte como a construção de uma finalidade prática ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e racional, perdeu sua abrangência, delimitou-se à utilização exclusiva que hoje lhe conferimos  a de expressão do belo.

Essa abrangência corrompida, reduzida e delimitada ao plano da estética  categoria da expressão humana destinada ao agrado dos sentidos e, em sua versão mais sutil, à incitação da racionalidade , embora nobre, retirou da compreensão e das ações cotidianas do homem o seu caráter de unidade. 

O que originalmente sempre fora Arte, as diferentes Artes do homem, a integralidade de seus conhecimentos  ars grammatica/a arte da gramática, ars liberales/as artes liberais, ars illiberales/as artes mecânicas, ars civiles/as artes da paz e da jurisprudência, ars disserendi/a arte da lógica, pessimae artes/os vícios detestáveis , deixou de ser assim compreendido e nomeado. Ganhou condição individualizada, apartada do todo, fragmentada, especializada.

Se isto abriu as portas da cognição para o advento do método científico, proporcionando a melhoria das condições de existência da espécie  mediante a ramificação da ciência, seu aprofundamento e consequente desenvolvimento de novas e renovadas tecnologias  não podemos ignorar o já citado paradoxo: também produziu a perda do sentimento do uno, do universal, e acelerou a compartimentação dos saberes, das Artis humanaes.

Se ainda restam dúvidas quanto ao peso determinante deste paradoxo para a ascensão do atual momento histórico, dominado por uma completa entropia, basta atentar para a abundância de conhecimentos e saberes já conquistados por nossa espécie, os quais, compartimentados (entre vários campos científicos que mal se comunicam) e exclusivisados (acessíveis apenas a seus proprietários; não socializados), estão longe de servirem ao interesse comum e não nos tem proporcionado qualquer possibilidade de quietação.

O fato é que a História cobra seu preço: ganhamos de um lado, perdemos do outro. Assim tem sido em cada mudança de época, todas elas provocadas por grandes cataclismos naturais ou produzidos pelo homem em seu processo civilizatório.

Falamos da virada da Idade Média para o Renascimento. Mas podemos nos referir ao advento da Idade Moderna (1453 a 1789), com a expansão do comércio marítimo, o descobrimento de novas terras, o intercâmbio com novas culturas, a absorção de conhecimentos de outros povos, mas, igualmente, o surgimento do colonialismo, da escravidão, da retomada da força e influência das religiões em detrimento do respeito ao mistério da existência.

A Idade Contemporânea iniciada em 1789, com a Revolução Francesa, proporcionou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas também consolidou em definitivo a exploração capitalista, produziu o mercado de massas (dos supérfluos e da obsolescência programada), a destruição do ambiente, duas sangrentas guerras mundiais, a interminável Guerra Fria, o domínio da energia nuclear e a possibilidade de autodestruição da espécie. Esta é a Idade que, se diz, dura até hoje.

Assim como tantos outros, discordo dessa periodização. Desde as formulações de Albert Einstein, em meados da segunda década do século XX, seguidas da descoberta das propriedades da Física Quântica, não se pode mais falar em Idade Contemporânea. A própria ideia de contemporaneidade perdeu o sentido.

Sabe-se, agora, que nada é contemporâneo. Tudo está em movimento relativo. Tudo pode ser e não ser. Tudo e nada tem a mesma importância (pois são interdependentes e complementares) no plano dos fenômenos físicos; ou seja, naquilo que somos, vemos, cheiramos, sentimos, ouvimos, experimentamos. Talvez estejamos em plena Idade Quantum (que é a menor quantidade de qualquer grandeza física). 

Ironicamente, penso eu, a evolução cognitiva nos está reconduzindo para aquela sabedoria de origem, onde o homem, embora erroneamente se achasse o centro do Universo, sabiamente se apropriava de todo o conhecimento disponível, sem compartimentá-lo, sem fragmentá-lo, apenas exercitando a Ars humanae.

Em nosso favor, podemos alegar que a massa e variedade de conhecimentos hoje disponíveis nos impedem de exercer a integralidade e interdisciplinaridade de seu uso. Mas isso podia ser verdade até ontem. Hoje, amanhã, com os avanços na computação quântica, estamos diante da iminência de uma nova e ampla fronteira civilizacional.