"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo VII

A síntese proposta por Karl Marx-Friedrich Engels, de que as religiões são um dos produtos das relações sociais, estando a partir de então inseridas no processo histórico (respondendo à visão dos enciclopedistas, de que são uma conspiração de parasitas exploradores, e à dos idealistas alemães, de que se tratam da alienação da essência da vida), é na realidade uma redução do fenômeno da religiosidade às conveniências da tese da luta de classes (burguesia x proletariado) como motor de tudo.

Ora, a gênese da religião é anterior à luta de classes e, portanto, do advento das relações sociais. Nesse sentido deve ser considerada e admitida, se se quer desenvolver uma análise consequente da História. Estranhamente, Marx e Engels parecem isto minimizar, quando afirmam que a “distinção entre os homens e os animais só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida”, o que é pouco — e insisto: conveniente — para quem mais adiante vai erigir um poderoso sistema de análise e construir uma ideologia.

Sem dúvida que a definição do momento em que se deu aquela distinção haveria de ser arbitrária, sempre. Mas o que se exige, diante de tamanha responsabilidade intelectual, é que ao formular uma teoria as premissas que a sustentam tenham sido provadas. E o que a antropologia conhecia na primeira metade do séc. XIX, quando as bases da construção do Comunismo foram firmadas, está bem longe do que hoje se sabe e pode saber.

Homem da ciência (não por acaso nomeou sua meta de “Socialismo Científico”), zeloso da necessidade de se ater ao factual ou ao razoável, quando esse factual está além da nossa capacidade de conhecê-lo, Marx não poderia, por exemplo, ter partido de uma premissa como esta: “Aquilo que os indivíduos são depende das condições materiais da sua produção. Esta produção só aparece com o aumento da população e pressupõe a existência de relações entre os indivíduos. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção”. [“A ideologia alemã”, introdução, 1846].

É como se antes do <<aumento da população>> o homem não houvesse existido como tal; é como se aquele ser já pensante, inseguro quanto ao desconhecido, temente às forças naturais que o cercavam, etc., aquele ser, por ainda não se tratar de um produtor organizado em grupo de indivíduos, não elaborasse rotinas de sobrevivência ou que tais rotinas não se tratassem do que de fato eram: os fundamentos do processo histórico, sem os quais nada para a frente teria existido.

A arbitrariedade do pensamento de Marx retorna no trecho [do mesmo “A ideologia alemã”] em que afirma: “A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, toda poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efetivamente em sociedade.”

Pois, então, aquela <<consciência da natureza>>, a <<do meio sensível imediato>>, constituída e profundamente sedimentada ao longo de sabe-se lá quantos milênios — fala-se, hoje, entre 130 mil e 465 mil anos —, de repente se vê sobrepujada, digamos assim, pela <<consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos>>?

Ora, se identificou, à luz dos conhecimentos antropológicos de sua época, que <<a consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência>>, por que Marx haveria de ignorar essa premissa ao elaborar a tese da luta
de classes?

Entendo que o fez porque este, de fato, é um terreno instável, o que colocaria a sombra da condicionalidade no centro de sua tese. E, no entanto, a bela tese da luta de classes ergue-se sobre pilares insuficientes, pois entende o homem como um ser social, quando, na verdade, o homem, cada homem, é um indivíduo, uma imensa complexidade sozinha. Aceitar isto seria esvaziar, ou relativizar, as consequências de seu “socialismo científico”.

Assim, o que temos é que Marx, em associação com Engels, elaborou um singular sistema de interpretação da História calcado nas relações econômicas entre as pessoas. E o fato dessa ideia ter sido capaz de mobilizar uma prática, enraizando-se tão profundamente nos corações e mentes de tantas pessoas, ao longo de quase dois intensos séculos, demonstra o valor e o poder de tal sistema.

A força retórica (mistificadora) de sua (quase) lógica é causa primeira do desenho de sociedade que temos hoje, sem que, no entanto, Marx-Engels tenham sido capazes de ver realizado o êxito daquilo que vislumbraram — a implantação internacional do comunismo pela vitória do proletariado em confronto com a burguesia. E por que isto (ainda) não aconteceu?

O que se percebe, repito, é que os alicerces dessa ideia-práxis assentam-se em bases movediças, como fica demonstrado na proposição acima, qual seja, a da <<consciência da necessidade de entabular relações com indivíduos>>. Estamos aqui diante de uma conclusão pouco provável. Na verdade, repito, uma proposição de conveniência, destinada tão somente a constituir a gênese arbitrária da teoria da luta de classes.

E disse ele mais [em A ideologia alemã]: “Esta consciência gregária ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente devido ao aumento da produtividade, das necessidades e da população, que constitui aqui o fator básico. É deste modo que se desenvolve a divisão do trabalho que primitivamente não passava de divisão de funções no ato sexual e, mais tarde, de uma divisão «natural» do
trabalho consoante os dotes físicos (o vigor corporal, por exemplo), as necessidades, o acaso, etc. A divisão do trabalho só surge efetivamente a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e intelectual”.

Quer dizer que a divisão por gêneros e o poder conferido pela força não tiveram assim tanta relevância no mapeamento do homem social que se formava, mesmo que num momento futuro, muito futuro adiante, tais diferenciações tenham vindo a se constituir em fatores determinantes para a <<divisão entre o trabalho material e intelectual>>?

Alto lá! Muito ao contrário, a condição de gênero e o vigor corporal, bem como a habilidade de se expressar “artisticamente”, representando nas paredes das cavernas a vida de seus iguais, por exemplo, foram exatamente as diferenciações individuais que lançaram as bases das relações sociais nascentes.

O que se segue é na verdade o tema central destes escritos, um roteiro para (eu) entender do que se trata a vida e para que servimos nós, seres humanos.

Desta forma, digo, repito e acrescento em várias passagens deste texto: o engendramento de uma força onipresente, onisciente, capaz de pôr fim à existência de tudo que é/está à volta, e por isso temido, adulado, adorado, esse engendramento é um fenômeno originado nos primórdios da existência do homem, encravado na mente dos nossos ancestrais, anterior, portanto, às relações sociais, precursor e constitutivo do nosso processo histórico.

Se foi, se é assim, como enfraquecer a importância desse fenômeno primordial, submetendo-o às conveniências de uma tese? Ao contrário, devemos respeitá-lo, encará-lo e combatê-lo naquilo que ele verdadeiramente é e se constitui, como empecilho-mor no caminho da emancipação do homem.

Em contraposição ao que propuseram Marx-Engels, aceito que a religião é uma manifestação infantil do indivíduo que é finito e sabe nada ser frente ao cosmos. Sua organização em crenças (as igrejas), esta, sim, é produto desenvolvido no correr das relações sociais e está inserida no processo histórico, com reflexos na e a partir da luta de classes.

O espírito do indivíduo de todos os tempos não está submetido exclusivamente às crenças e credos de seu grupo, de sua época e de sua circunstância, mas, a meu ver, principalmente ao seu sentimento atávico de insegurança. Se assim não fosse, por quê então renovadamente nos prostramos frente ao que (apenas ainda) não compreendemos, realimentando sempre e sempre nos submetendo àquela subordinação primitiva?

De fato, a matéria está no princípio. Foi dela que brotou a consciência, tenha a matéria uma origem (deus), ou não tenha vindo de lugar algum determinado (acaso). Sem a matéria, nem deus nem acaso teriam como se manifestar ou sofrer manifestação. É fora de dúvida que o que toca aos nossos cinco sentidos, o que toca às necessidades básicas do nosso corpo (a matéria), isto é o que prevalece ao final de um dia na vida do homo economicus, do homo proletarius, frente às banalidades da sua existência.

Mas o que toca ao vazio espiritual diante de nossa condição humana, isto é o que aflora nos momentos capitais do homo em essência, desde sempre. Retomando, o aspecto fundamental do fenômeno religioso (ou que nome se dê a isso) é a relação do indivíduo com a sua exposta e iminente finitude.

A primeira grande batalha desta imensa guerra em prol da emancipação humana é, portanto, a libertação do homem das teias construídas pela religião (não necessariamente da religiosidade) e, mais fundo ainda, a compreensão, aceitação e libertação dos nossos medos atávicos. Escapar dessas teias significa esclarecer o indivíduo, desde o seu nascimento, de que ele é único, está (a seu modo) só no mundo e que a sua vida lhe pertence. Mais: que para viver integralmente ele terá de assumir seu protagonismo.

Isto é idealismo? Não penso assim. Está mais ao nosso alcance nos convencermos dessa realidade humana irrefutável — a meu ver —, e contribuirmos desde sempre para a formação de novas gerações de
homens emancipados, respeitosos diante do universo (o que já seria um tipo de religiosidade), justos em relação aos seus iguais, destemidos frente ao que há de ser confrontado.

Está mais ao nosso alcance, repito, atuarmos conjuntamente em favor deste projeto revolucionário voltado para o indivíduo — abrigando, protegendo e integrando os menos afortunados pela genética, é bom que logo se esclareça, para não se dizer que defendo o darwinismo social, a eugenia —, do que depositarmos todas as nossas fichas, ou nos iludirmos com a possibilidade de alcançarmos os mesmos objetivos (a emancipação do homem) exclusivamente através de uma luta de classes.

Esta, a luta de classes, de fato está posta desde que os homens tiveram a <<consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos>>, como muito bem demonstraram Marx-Engels. A questão é como travar tal luta, do ponto de vista do assim dito proletariado, tendo em vista um adversário mutante, cativante, insidioso, policêntrico e a cada dia mais estando, ambos (proletariado e burguesia), mergulhados num ecossistema radicalmente tecnológico e errático quanto aos seus objetivos.

Embora no Manifesto Comunista se afirme que “a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe”, e que “a sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”, o que se constata hoje, 170 (e tantos) anos depois, é a complexificação dos antagonismos de ambos os lados da equação.

Ou seja, a insídia do adversário se manifesta concretamente na fragmentação, a ponto de hoje nos defrontarmos com uma sociedade onde prevalece o individualismo, que é a sobreposição dos direitos de um aos direitos de todos os outros; onde se intensifica o <<esfumaçamento de tudo o que é sólido>>, em oposição ao que se almeja, que é a preservação da individualidade. Aquela individualidade que protagoniza o indivíduo e atua em favor do coletivo.

Ao pontuar, dentre os feitos da revolução burguesa, que “as criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal”, Marx-Engels em verdade avistam [no Manifesto Comunista] o caminho do porvir. Só faltou dizer, admitir, que, do modo como está posto em sua tese, tal porvir não passa de uma quimera. Diria, até, uma veleidade intelectual.

Quem sou eu, admito, para levantar essa contestação, propor tal ousadia, confrontar duas mentes magníficas e seus insignes adoradores mundo e décadas afora? Sou provavelmente nada. Apenas um ser humano que um dia, no começo da década de setenta do século passado, ao cruzar uma rua larga da cidade de Santos, São Paulo, Brasil, fui tomado pela ideia de que ‘não poderia ser só esse, o acirramento do processo da luta de classes, o caminho para a realização da utopia’.

E hoje, ainda animado por tamanha inquietação, ouso expor o que penso, de diversas e insistentes maneiras no decorrer deste trabalho, pois sou aquele que guardou por décadas suas dúvidas, adiando trazer à luz o que aqui agora escrevo, sabedor de que deveria antes me dedicar a observar a realidade e a entender o que outros haviam formulado antes sobre os temas que me preocupavam e preocupam.

Não li tudo o que poderia, confesso. Não esgotei o entendimento do pensamento de ninguém em especial, mas, naquilo que via e lia, vejo e leio, sempre mantive/mantenho o foco voltado para o meu questionamento original. Nunca deixei de pensar sobre o que via e lia, enquanto constituí família e participei da criação dos meus queridos filhos.

Se o que expresso soa como ousadia ou presunção, penso que estou apenas exercitando o que prego em favor dos outros: o direito e o dever de sermos únicos e universais. Não tenho compromissos com instituições ou pessoas. Talvez por isso me sinta desobrigado de fazer citações a cada curva dos meus escritos. O conhecimento não é uma propriedade, ele está no mundo. Segue um processo infinito de imbricação em teia, digamos assim, para o bem da evolução humana.

Hoje, cinquenta (e tantos) anos depois daquela travessia de rua que reputo metafísica, estou cada vez mais convencido de que erramos o caminho. A percepção, nos primórdios da nossa espécie, de que a capacidade de expressar competências cognitivas nos distinguia dos nossos semelhantes criou na mente e nas práticas daqueles seres fundadores um poderoso e nefasto sistema de individualização e recompensa. E isto, insisto, muito, muito antes daquele momento em que passamos a viver em grupos e nos constituir em sociedade, o tal início da História proposto por Marx-Engels.

Imaginar que a História tenha simplesmente começado, sem admitir que ela, como qualquer ente conceitual ou concreto, resulta das partes que o compõem (no caso, as experiências e interações de cada um daqueles seres ‘pré-históricos’), é incorrer em grave erro. Um tipo de erro que inviabiliza ou, ao menos, enfraquece todas as formulações que se possam a partir dele elaborar.

Individualizar e recompensar, parece-me claro, são as matrizes da estrutura de poder, os ingredientes da ideia de posses materiais ou imateriais, de direitos exclusivos, de propriedade, ideia da qual deriva o conceito de Estado, com seus códigos e leis que deveriam servir a todos, igualmente, mas que não o fazem porque o Contrato Social é por natureza excludente. Apenas uns poucos, graças a seus atributos genéticos, inserção social, oportunidades e circunstâncias de vida têm real acesso aos meios de adquirir conhecimento. E a partir dele pensar e orientar suas ações com autonomia e critério.

A maioria (quase todos nós) apenas repete comportamentos medianamente aceitos e se faz socialmente útil, para isso frequentando os bancos escolares que lhe são disponibilizados, onde aprende a vencer na vida. Para contornar ou adiar o desespero dessa condição (sub)humana, inventamos aquela força maior e, com ela, o inevitável, a sina, o conformismo. Inventamos toda sorte de subterfúgios, inclusive a perspectiva de uma felicidade que nos seria outorgada se a fizermos por merecer, transferindo para os outros e para o desconhecido o sentido de nossa existência.

E, para completar, inventaram para nós, no decorrer do século XIX, a fantasia que desde então prospera de que o acirramento da luta de classes nos levará ao paraíso. Não levará! Não sem antes nossa espécie resolver os seus problemas com o cosmos.

[O Comunismo é a ideologia política e socioeconômica que pretende promover o estabelecimento de uma sociedade igualitária, sem classes sociais e apátrida, baseada na propriedade comum dos meios de produção. Para Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), seus formuladores como Socialismo Científico, o Comunismo seria a fase final do desenvolvimento da sociedade humana, a ser alcançada através de uma revolução dos trabalhadores. Sua ideia de governo é a Democracia pura e verdadeira, mediante a participação igualitária de cada membro da sociedade organizada. O princípio a ser seguido é o de: “A cada um segundo as suas capacidades, a cada qual segundo as suas necessidades”, conforme o Manifesto Comunista, de 1848. Embora Marx não tenha detalhado como o Comunismo poderia funcionar como sistema econômico, compreende-se que ele seria a etapa derradeira do Socialismo, o qual seria a fase necessária de acumulação de capital. Formulado pós-Revolução Industrial, o “Socialismo Científico” adicionou ao aspecto distributivista das doutrinas comunistas mais antigas a ideia da plena satisfação das necessidades humanas proporcionada pelo desenvolvimento tecnológico, abundância de bens e bem-estar geral.]


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