"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo XIII

Não tenho a veleidade ou a ingenuidade de pregar uma revolução de massas inspirada em qualquer ideologia política existente, ou a ser formulada. Até porque, repito, delas desacredito. São sempre manipuladoras e falhas, como tem sido demonstrado ao longo da História.

Minha aspiração é, quem sabe, mais pretensiosa: seguindo os passos daqueles que melhor pensaram, a meu ver, as razões da vida humana, exalto a construção do homem por ele mesmo a partir do mergulho de cada um em sua essência, de onde se pode e deve tirar a energia vital para existir. Já discorri bastante a esse respeito em páginas anteriores, mas insisto em continuar caminhando, buscando esclarecer o quê e como seria esse ato de mergulhar…

A fraqueza humana continuará sendo estimulada, porque Religião, Estado e Capital — que, no andar desta carruagem, nunca serão banidos, apenas se transformarão — dela se alimentam para manter de pé o seu sistema de poder. Mas não há força que se interponha com total eficácia e permanência à ação da pessoa consciente de sua racionalidade, plena de seus direitos e deveres.

Homens independentes e responsáveis bastam, acredito, para disseminar um mundo outro, desde que tenham as atitudes devidas. Construir um novo tempo exige a multiplicação da ideia e da prática, no âmago das gerações que estão se constituindo agora, do que seja o homem-animal cósmico; o império da maioridade carece desse engajamento.

Não é tarefa fácil, mas é de quantos estejam dispostos a participar. É quase impossível de ser realizada, mas é a única que vale a pena, pois é aquela capaz de recolocar nossa espécie diante da oportunidade de fazer direito. Muitos passos já foram dados; muitos recuos também ocorreram e ocorrerão.

E não há roteiro preestabelecido. Não há fórmulas, senão este sentimento guia, esta percepção mestre de que somos seres únicos, individual, intransferível e inarredavelmente donos do nosso destino, não obstante as heranças biológicas, psíquicas, físicas e culturais que nos trouxeram até aqui. Compreendido isto, aceita a missão, o que nos resta é conformar uma nova realidade, ao sabor da intuição de cada um.

Para além do ceticismo quanto ao futuro da espécie, sempre é possível tentar, fazer propostas, apontar caminhos. Antes, porém, é melhor não nos iludirmos quanto à força da insidiosa teia constituída pelos entes Religião, Estado e Capital, cujos interesses se encontram desde sempre enraizados no modo como se realizam as relações sociais planetárias. Destruir esse sistema multimilenar está fora de questão, teríamos de começar tudo de novo. Transformá-lo em favor do aprimoramento civilizatório, talvez esteja ao nosso alcance.

Para isso, é preciso de início identificar o medo dominante em nosso tempo, aquele cujas origens são do conhecimento dos públicos mais amplos e para o qual seja possível propor uma solução ao alcance da maioria das pessoas. Entendo que o principal problema que a humanidade tem de enfrentar é cultural. E não se muda a cultura por decreto. No máximo, o que se pode fazer é trabalhar para corrigir algumas práticas danosas à sociedade, desde que se faça um esforço abrangente, continuado e ininterrupto, por gerações.

As principais ameaças deste século, como tantos especialistas já identificaram, são uma guerra nuclear, o avanço da inteligência artificial desregulamentada, o descontrole sobre a biogenética e o desequilíbrio dos ecossistemas naturais. Destas, a mais premente e que tem seu poder destrutivo plenamente reconhecido é a questão ecológica ― o aquecimento global, que tem dentre seus efeitos mais danosos a liberação de novos vírus letais para o ambiente humano, e que é assunto dominante nos meios de comunicação tradicionais e nas redes sociais. Haja vista a pandemia do Covid-19 ora em curso.

O primeiro passo para a transformação, tendo em vista o aprimoramento civilizatório, portanto, é intensificar a mobilização a favor do convencimento das classes dirigentes, aquelas capazes de promover a efetiva criação e estabelecimento de políticas públicas pautadas pelo entendimento de que os cuidados com a Natureza são questão urgente e estratégica para a preservação da Terra e a manutenção da qualidade de vida de seus habitantes.

Embora socialmente maduro e perfeitamente alcançável, dado que os impactos provocados pela destruição dos ecossistemas estão à vista de todos, esse processo de persuasão é extremamente complexo, pois concorre com outras demandas do cotidiano político-administrativo (crise econômica, fome, desemprego, miséria, segurança, saúde pública etc.) e encontra a resistência dos grupos de pressão dominados pelo imediatismo de resultados, em especial aqueles situados no âmbito da alta finança especulativa global. A força em favor da manutenção do status quo é poderosa.

Ainda assim, tomemos, por hipótese, que as lideranças de um país estejam convencidas de que o meio ambiente, a qualidade de vida, a segurança alimentar, o futuro imediato de seus cidadãos, enfim, está ameaçado pelo descarte inadequado de lixos e coisas inservíveis (primeiro passo de um processo de ampla defesa do ambiente).

Institucionalizado esse convencimento — de que o lixo é um problema social importante e sua solução inadiável —, o próximo lance é elaborar um planejamento estratégico para se alcançar o ‘objetivo maior’, qual seja, modificar os hábitos inadequados das pessoas, o que, última análise, resultará numa mudança cultural com reflexos positivos sobre outras práticas ambientais igualmente danosas.

Esse planejamento deve, primeiramente, cuidar de fixar em lei aquele ‘objetivo maior’, atribuindo obrigações e metas a serem cumpridas pelas diferentes esferas de poder — federal, estadual, municipal. A busca do consenso político para se aprovar essa lei é o primeiro desafio, ainda mais porque, como se trata de um processo em construção, as metas originais devem ser periodicamente avaliadas e ajustadas.

Para que os ajustes periódicos ocorram, é preciso que a lei preveja a constituição de um Conselho permanente sobre o descarte de lixo, formado por representantes da sociedade civil e dos três poderes (executivo, legislativo, judiciário), destinado não apenas a promover as correções de rota e o ritmo, mas também derrubar as barreiras levantadas por seus adversários.

É imprescindível, ainda, que o Conselho, em sua instância nacional, tenha a presença regular não apenas dos delegados estaduais e do corpo técnico, mas também das principais lideranças dos poderes da república, tanto para conferir e reafirmar o compromisso do Estado com o ‘objetivo maior’, quanto para agilizar as soluções de caráter político. O acompanhamento das reuniões será aberto a todos os órgãos de comunicação.

Neste ponto, é preciso esclarecer o motivo de se propor a criação de uma estrutura nacional de Conselhos destinada a tratar exclusivamente da relação das pessoas com a produção e o descarte de lixos. O fato é que Conselhos muito abrangentes, como os que se formaram no Brasil a partir da Constituição de 1988 (da Saúde, da Educação, do Esporte, da Criança e do Adolescente, entre outros), não são os mais eficazes nem eficientes.

A complexidade e variedade dos temas por eles tratados é tal, que inviabiliza a formulação de ideias consistente para os segmentos a que se destinam. Assim, o que acaba sendo ‘encaminhado’ são propostas genéricas, em nada diferentes daquelas que o poder público mesmo faria. Como jornalista que acompanhou inúmeras dessas reuniões, na esfera municipal, de 2000 a 2013, posso ainda testemunhar o alto grau de direcionamento de tais Conselhos, com baixíssima representação social espontânea.

Existem três caminhos para se mudar qualquer prática cultural inequivocamente danosa às pessoas — como é o descarte inadequado de lixos. A mais rápida e, sem dúvida, eficiente, é a da punição. A de multar e mesmo deter cidadãos surpreendidos no cometimento dessas infrações. É esta que é adotada no chamado primeiro mundo e que nós aqui, no antigo terceiro mundo e agora países em desenvolvimento, confundimos, colonizadamente, com educação.

Não são mais educados os europeus e os norte-americanos, necessariamente, porque as vias públicas de suas metrópoles, em especial nas áreas turísticas, são normalmente limpas. Não se veem pessoas jogando lixos nas ruas e supervias dessas cidades. É claro!, porque se um ato desses for surpreendido, o responsável será multado de imediato. E isto pra começar! Ou seja, a decantada ‘cultura’ dos cidadãos do antigo Primeiro Mundo decorre basicamente da prática da punição.

A eficácia desse caminho é evidente. Mas merece observações. A primeira é a das condições econômicas. Aplicar multas a pessoas com recursos é mais fácil do que àquelas que não possuem renda para atender sequer às necessidades básicas do mês. Outra, também fundamental, é a da personalidade dos povos. Os homens e mulheres do Hemisfério Sul, por motivos e razões que não cabem aqui examinar, são tradicionalmente menos disciplinados/obedientes que os do Norte.

Os dois outros caminhos são o exemplo e a educação. Caminhos associados, pois precisam e devem começar pela família, consolidando-se nos primeiros anos da formação educacional da criança. Isto, porém, não é o que acontece, em especial nas sociedades deste nosso Hemisfério. Aqui, por conta de vários fatores — sendo o principal deles o econômico-social — o gravíssimo problema da destinação de lixos sempre esteve em segundo plano.

Mas é na educação continuada e no exemplo permanente que minha proposta de mudança da cultura se baseia. Estou convicto de que só através da implementação de um novo currículo escolar, em que os princípios da cidadania ocupem espaço prioritário, será possível aprimorar esta nossa oportunidade civilizatória. A via da punição é pedagógica, mas não deixa de ser uma violência, só devendo ser utilizada em caso de evidência criminosa.

Tanto quanto aprender a ler e escrever; tanto quanto dominar as quatro operações aritméticas está o conhecimento e a prática cotidiana das relações de cidadania (direitos e deveres). Os adultos conscientes sabem que os lixos inadequadamente destinados vão parar na rede de esgotos, nos rios, nos mares, contribuindo para gerar enchentes, deslizamentos de encostas habitadas, mortandade de peixes; e que levarão décadas, centenas de anos para serem absorvidos pela natureza. Uma tragédia e uma catástrofe!

Admitindo-se que algo concreto e positivo seja alcançado ao longo e após esse perseverante processo, qualquer que venha a ser o resultado teremos igualmente conquistado um novo patamar de cooperação social e aprendizado democrático, o qual constituirá uma plataforma para o lançamento de outras iniciativas estruturantes daquilo que considero o maior desafio do nosso tempo (se ainda nos restar tempo para enfrentá-lo): o amadurecimento do ser humano.

Mas, insisto, propostas como essas são meros exercícios, formulados a partir de cenários que implicam mínima dose de racionalidade aos atores em cena, em torno de um breve roteiro por todos pactuado, coisa da qual nem eu mesmo me convenço enquanto escrevo.