"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo III

A linguagem codificada é um confortável obstáculo ao avanço da nossa espécie. Com a invenção e o desenvolvimento dos idiomas falados e, mais ainda, com suas representações escritas e depois amplamente reproduzíveis, fomos capazes de exprimir conceitos, transmitir experiências, disseminar ensinamentos, definir contratos, construir uma civilização.

Porém, embevecidos com os sons que passamos a produzir, as ideias e os conceitos expressados, deixamos de perceber que ela, a linguagem, é incapaz de transmitir a complexidade da compreensão que os nossos sentidos e intuição, associados, alcançam. Como tantas (todas?) as invenções humanas, a linguagem é limitada, enganosa, intangível, imensurável em seu significado.

Alguém já questionou a precariedade da linguagem para cumprir plenamente seu papel como código a serviço do entendimento entre as pessoas, mesmo aquelas detentoras de repertórios equivalentes e pertencentes aos mesmos estratos culturais e sociais, ainda que contemporâneas das mesmas experiências.

Surpreende-me, em particular, a dificuldade que enfrentam pessoas de extremo e reconhecido saber em se fazerem entender, isto é, explicitar com clareza as ideias que buscam transmitir. Ao se dirigirem a um amplo auditório, comunicam-se, pela escrita ou fala, como se se exibissem diante de néscios, a quem devessem impressionar ou a quem desejam distanciar-se por meio do jargão exclusivo de suas especialidades.

É tão evidente essa dificuldade que me inclino a acreditar não se tratar exatamente disso, mas de uma escolha racional plenamente exercida, mesmo que ainda inconscientemente adotada, fruto de um tipo de deplorável corporativismo. Sustento essa minha crença na premissa de que todo teorema plenamente demonstrado é passível de ser explicitado a qualquer público, ainda que tal tarefa demande um sem número de esclarecimentos e esmiuçamentos, sempre com o uso dos vocábulos menos controversos (para cada época e meio social) e a estrutura gramatical adequada (ou seja, o código mais lógico).

É possível questionar a eficácia de um aparelho eletrônico, até sua utilidade; é possível duvidar do valor nutricional de um alimento; pode-se (e deve-se) questionar, por exemplo, os atos dos agentes a serviço do Estado, como a legalidade do impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ou a qualidade da sentença judicial proferida contra o cidadão brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, no caso do apartamento do Guarujá (litoral de São Paulo, Brasil), entre outras.

Todos os atos e produtos humanos são passíveis de avaliação e quase sempre revelam-se falhos, ou fraudulentos. Já a linguagem, ela própria uma das primeiras e fundamentais invenções humanas, condição indispensável para a evolução da nossa espécie (embora ainda se possa ter dúvidas se de fato isto que temos é evolução), esta resta majestosa, depositada num Olimpo inquestionável. E, no entanto, porém, não obstante, a despeito da crença cega em seus poderes, trata-se de uma ferramenta insuficiente e, por isso, se não fracassada, ao menos passível de muitos aprimoramentos.

Quando nos dedicamos a quaisquer tentativas de produzir esclarecimento, o que brota dali (e daqui, reconheço!) são borrões, rascunhos de percepções, interpretações equivocadas. Por isso, construir uma comunicação por meio exclusivo das formas de linguagem de que dispomos pode até ser nobre tentativa, mas, convenhamos, é uma tarefa frustrante. Vejam estes tempos que nos cercam. Quanto entendimento pode ser obtido, neste exato instante, por meio do uso da linguagem falada e escrita, em qualquer mídia (media) que se queira utilizar? Não sei quanto.

O sempre lembrado professor João Itagiba, que me apresentou à Filosofia no final da década de sessenta do século passado, no Colégio Canadá, em Santos (litoral de São Paulo, Brasil), dizia, por exemplo, que o Inglês é um idioma precário, pobre de nuances, mais adequado ao ambiente dos negócios, desprezível para quem, como ele, devia seus conhecimentos a fontes gregas, latinas, germânicas, francesas. Penso agora que o professor errou (ou deixou de acertar), pois nenhuma dessas formas de comunicação (idiomas) foi capaz de lançar luz sobre a questão que realmente nos interessa. Para começar, pra que serve a porra da nossa vida?

Não culpemos nossos antepassados mais remotos, aqueles que do grito, da associação de ideias primárias e da mimetização dos ruídos produzidos por seus próprios corpos e pelo ambiente que os cercava desenvolveram magníficos códigos, significantes de tantos sentimentos e instigadores de tantas ações. Foram heroicos aqueles seres. Graças ao modo e ao método com que responderam ao desespero de suas existências, alguma oportunidade civilizatória se abriu para nossa espécie.

Mas, o fato é que, veja, estamos encarcerados pela linguagem, presos ao que os textos e as falas podem, precariamente, nos dizer. Nem mesmo o que nos chega por intermédio de imagens e de sons organizados, como a pintura e a música (também elas linguagens); nem mesmo o que nossos músculos espontaneamente expressam (o que se apresenta como uma outra forma de comunicação) somos capazes de valorizar, pois a linguagem lida/ouvida tornou-se a nossa prisão, a chancela do nosso (des)entendimento.

Com a linguagem constituímos um modo de ser e sobreviver, e a isso denominamos civilização. Mas não fomos capazes, ainda, de aceitar a fragilidade de sua simbologia para enfrentar a grande tarefa de nos situarmos no espaço-tempo. Daqui de dentro deste código, no mesmo instante em que o utilizo e enquanto agradeço a tantos que o criaram, desenvolveram e aperfeiçoaram, não posso deixar de nele reconhecer os contornos de um cárcere suave. E, no entanto, um cárcere.

A tecnologia, mãe do utilitarismo, salta à frente e cria apps capazes de traduzir frases entre diferentes línguas, capacitando-nos à comunicação básica, e mais uma vez nos oferece uma ilusão: a de que assim ampliamos o entendimento entre os diferentes grupos humanos. Triste engano. Repete-se mais uma vez e de novo a quimera oferecida pelo desenvolvimento da internet e, depois, pela criação das redes sociais.

Não se trata de condenar a tecnologia, muito menos a telecomunicação digital globalizada. Mas é fundamental que estejamos cientes da relatividade desses recursos como meios efetivos de comunicação, para além da própria linguagem que desenvolvemos ao longo de milênios, bem como alertados para os danos às relações entre as pessoas produzidos por essas plataformas virtuais, como hoje ocorre aos bilhões mundo afora.

A propósito da oposição já presente em nossas vidas, entre a experiência interpessoal e a novíssima, intermediada por máquinas e aplicativos, lembro-me dos Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro, em 2016, onde o que melhor impressão causou foi a empatia e a receptividade do brasileiro com as pessoas que nos visitavam, vindas de todo o mundo.

Vendo o que o Japão (próxima sede dos Jogos Olímpicos) nos apresentou ao final da cerimônia de encerramento dos Jogos do Brasil, em 21 de agosto de 2016; lendo as primeiras notícias do que nos espera em Tóquio (quando a pandemia de Covid-19 permitir), vejo que vivemos uma radical transição civilizatória marcada pelo fim das relações humanas diretas, aleatórias, intuitivas, emocionais, criativas.

Em seu lugar, vai se estabelecer o que já está aí, bem desenhado, pela cultura pokemon-go: a previsibilidade codificada, livre do imponderável, sem as surpresas das relações inesperadas, sem os sustos das esquinas, sem sorrisos, sem gargalhadas e, certamente, sem vaias deseducadas. No lugar de tanta humanidade, a robótica nos conduzirá a práticos hotéis, espetaculares estádios, precisos assentos, diversificados restaurantes, passeios encantadores e, se quisermos, mesmo, a “proibidas” diversões.

Tudo isso sem que a nossa comunicação básica, prática e utilitária sofra os percalços da diversidade linguística. Sim, porque até lá teremos adicionado a alguma parte do nosso corpo um gadget que traduzirá para o idioma do portador o que afinal se precisa saber para ir daqui ali, o que comer, o que dizer quando alguém gostar de você. “Brave new world” em acelerada gestação tecida por algoritmos proprietários, inacessíveis. Basta de amadorismo! Welcome corporations of the new era.

Não estou melancólico, nem antecipadamente saudosista. Este é, sim, o caminho do homem. Nossa espécie haveria de passar, inevitavelmente, pelo deslumbramento tecnológico. Estava, está “escrito nas estrelas” que essa é mais uma síntese da eterna dialética vislumbrada por Hegel(?). Não será o fim; sequer o início do fim, como alguém definiu um começo que não se destina a ser conclusivo.

Por isso e pelo que virá — inclusive as chuvas de meteoros artificiais, em lugar dos superados fogos de artifício; a celebração galáctica, imposta-subjugadora, ao invés desta terrena, explosiva-libertadora — penso que o grito que restou dos dias olímpicos brasileiros foi de certo e incompreendido desespero.

[A origem da linguagem ainda está em disputa. Alguns estudiosos sustentam que ela evoluiu ‘a partir de um sistema pré-linguístico existente entre os ancestrais pré-humanos’ (continuidade); outros, que é um ‘traço humano único, incomparável a qualquer outro encontrado entre os não humanos, e que deve ter surgido repentinamente na transição entre os pré-hominídeos e o homem primitivo’ (descontinuidade). Dessas duas, a tese da continuidade predomina, com variações de entendimento: faculdade inata precedida pela cognição animal; ferramenta socialmente aprendida, desenvolvida a partir da comunicação animal, gestual ou vocal. O fato é que ‘não existem registros históricos diretos do desenvolvimento da linguagem, nem processos similares a serem observados hoje’ capazes de sustentar qualquer das propostas em discussão. As análises apontam, no entanto, que a linguagem vocal teria surgido há pelo menos cem mil anos. Já a linguagem escrita data de aproximadamente 7000 a.C.]