"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo XI

Nas sociedades tribais, a educação era transmitida de pai para filho por intermédio da prática observada, e os conhecimentos se destinavam à sobrevivência imediata do indivíduo e de seu grupo.

Na Antiguidade, o saber tornou-se privilégio da elite herdeira do velho poder derivado da força, condição levada ao extremo na Grécia, onde frutificou entre os cidadãos (não os escravos, nem os estrangeiros) o estudo das questões fundamentais: a existência, o conhecimento, a verdade, os valores, a mente, o cosmos, a linguagem — em só uma palavra: filosofia.

Na Idade Média (400 a 1500 d.C.), com a queda do Império Romano (27 a.C. a 395 d.C.) e a Igreja Católica assumindo o espaço do Estado, prevaleceu a ideia do homem (não todos, como sempre) criatura divina, cabendo-lhe cuidar de um certo tipo de pureza d’alma, harmonizando fé e razão conforme os ditames da Escolástica, primeiramente praticada nos mosteiros, mas, a partir do século XIII, também nas cidades, quando ciência e arte tornaram-se leigas.

Naquele mundo em que, a princípio, os monges eram os únicos letrados, as maiores referências eram os antigos gregos, em especial Pitágoras (571 a 500 a.C.). Estudava-se a gramática, a dialética e a retórica; a geometria, a aritmética, a astronomia e a música, sempre enfatizando a espiritualidade daqueles a quem era permitido estudar. Aos infiéis, aos impuros e aos de outras classes restava a miséria e a morte impiedosa (a Inquisição contra hereges tem origem no mesmo século XIII).

As circunstâncias da época, marcadas pelas invasões de bárbaros — estes ainda mais governados pelo poder da força, tanto que, convertidos, trouxeram para o cristianismo o espírito belicoso da jirad (guerra santa), que a partir do século XII inspirou as Cruzadas e a imposição da fé pela força —, teriam impedido qualquer possibilidade de discernimento, admita-se. Mas, como o nosso tempo é outro, de constatação, análise e esclarecimento, é preciso pôr em relevo: a qualquer momento estivemos, estamos e estaremos, sempre e sempre, falando de seres humanos sem distinções de nenhuma ordem, ainda que animais em origem e instintos.

Constate-se, repito, que a partir daqueles anos — os da Idade Média — estavam lançadas as sementes de um novo método de ensino, baseado na leitura e discussão de textos ditos sagrados e, em seu último período, a retomada do estudo dos clássicos gregos, prática que encaminhou a passagem do Feudalismo ao Capitalismo, terreno em que foi lançada a semente da Idade Moderna.

Lembremo-nos de que exatamente naqueles anos, início do séc. XVI (1501-1600), iniciava-se a ocupação portuguesa do que viria a ser o Brasil, possessão esta marcada, primeiramente, pelo choque de uma civilização arcaica (conforme a definição de épocas geológicas de André Prous, desenvolvida em “Arqueologia Brasileira”, livro lançado em 1991 pela editora da Universidade de Brasília), com aquela em que já despontava o Iluminismo.

Ressalte-se que nesse novo período histórico, sempre norteado pelos valores da antiguidade clássica, porém marcado já pelos avanços científicos/tecnológicos (o primeiro martelo mecânico usado em tecelagem data de 1086, na Normandia), o habitante das florescentes cidades, membro da nascente burguesia, passou a ser o centro da vida, o agente da individualidade, da força da razão, da oposição à autoridade.

Não por acaso o mecenato (a Casa dos Médici, do séc. XVI ao séc. XVIII, por exemplo) frutificou no período renascentista. Era a inteligência e a arte, expressões refinadas da mente, incapazes de fazer prevalecer o império da razão — e por isso cooptadas pelos déspotas esclarecidos e a classe social emergente —, mas plenamente habilitadas a deflagrar a revolução social, econômica e política que se estende até os nossos dias, sustentada na primazia do capital como elemento instrumentalizador do poder renovado da força, da nossa velhíssima e conhecida força.

São do Renascimento (séculos XIV a XVI) as escolas que buscavam dissociar-se tanto da monarquia quanto da Igreja Católica — a mais influente das instrumentalizadoras da transcendência, com domínio sobre todo o mundo ocidental, especialmente ao longo do período anterior, a Idade Média —, ao tempo em que esta se viu fustigada pela Reforma Protestante (1517, séc. XVI) de Martinho Lutero.

A Reforma, basicamente, contestou o poder do papa de promover indulgências ou libertar os pecadores do purgatório, bem como condenou a exclusividade da igreja ao acúmulo de bens e ao lucro. Registre-se que indulgência é a pura e simples compra, em vida, do perdão pelos pecados cometidos; já purgatório é o estado de purificação da alma pecadora, que se dá por meio do pagamento de esmolas (orações e celebrações de missas encomendadas pelas famílias e amigos de parentes mortos).

À Reforma Protestante, a Igreja respondeu com a Contrarreforma, ou Reforma Católica, surgida a partir do Concílio de Trento (1545), onde, entre outras medidas, decidiu-se pela catequese dos povos do Novo Mundo. Foi desse Concílio que se originou a Companhia de Jesus, movimento filo capitalista destinado a propagar os dogmas cristãos (enquanto ampliava seu patrimônio), incluindo em sua doutrinação o esforço educativo das elites nas localidades onde se estabelecia; Brasil, em particular.

Cabe aqui lembrar o que parece evidente, mas que alguns contestam, à moda de Marx-Engels: afirmar que a conformação da absurda, da criminosa desigualdade social brasileira seja fruto exclusivo de fatores nativos, isto é, das relações que aqui se desenvolveram ao longo dos 500 e tantos anos desta nossa existência como colônia e depois país, é quase como dizer que a história brasileira se constituiu a partir (e tão-somente) da chegada do primeiro português; e que aquele lusitano teria pisado a nova terra virgem dos vícios, tradições e cultura trazidos do seu passado recente, ou remoto, sem falar dos medos e inseguranças originários da espécie.

Ora, ora. Os seres vindos da Europa, da África — e, tantos anos antes, da Ásia, da Oceania e sabe-se lá de onde mais —, que aqui construíram uma nação, não o fizeram senão a partir da formação cultural, política, religiosa e social herdadas ou adquiridas em suas terras de origem.

Nós, brasileiros, somos consequência do encontro dos povos originários com aqueles que nos colonizaram, bem como das relações e vivências desenvolvidas desde que passamos a construir a nossa própria história. Não é sequer razoável, do ponto de vista da racionalidade, admitir como válida a tese evidentemente errônea de que somos o que somos porque, em determinado momento, um grupo de intelectuais quis que nós pensássemos que assim fôssemos.

Esses intelectuais, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, estavam e estão, sim, no caminho certo, quando atribuem a formação cultural do Brasil não exclusivamente às relações que aqui se deram a partir de 1500, mas também à herança que os colonizadores trouxeram na bagagem. E, insisto eu, igualmente ao legando primitivo daqueles povos.

Como também não me parece aceitável afirmar, peremptoriamente — e a partir disso construir um sistema inteiro de pensamento, como o fizeram Marx-Engels —, que a complexidade da sociedade humana, como hoje a conhecemos, nasceu e decorre única e exclusivamente das relações estabelecidas quando o homem deixou a condição de nômade, caçador, coletor, e passou à de sedentário, produtor, proprietário.

Por mais que tal construção (premissa) faça sentido e tenha sustentado, com méritos incontestáveis, o desenvolvimento de um arcabouço ideológico e as práticas dele decorrentes, isto não autoriza a ninguém concluir que este seja o caminho adequado e definitivo para a compreensão inteira da realidade e a determinação do processo que nos levará a um real avanço civilizatório. Ou, no caso brasileiro, ao esclarecimento sobre a condição social horrorosa em que nos encontramos.

O enigma por trás da falência do nosso modelo de civilização está longe de ser desvendado. Isto salta aos olhos, ainda mais hoje, quando vemos o aprofundamento dos conhecimentos em torno da formação genética e da psiquê humanas.

Agora mesmo (2020), revelou-se que cientistas do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolucionária, em Leipzig, Alemanha, e do Instituto Karolinska, em Estocolmo, Suécia, conseguiram genomas de alta qualidade a partir de material de neandertais (que viveram no período paleolítico, entre 30 mil e 300 mil anos) obtido em cavernas na Croácia e Rússia. Esse estudo revelou que “uma variação do DNA neandertal, envolvido no controle dos impulsos dos nervos, pode ser responsável por fazer os ditos ancestrais dos homens mais propícios a sentir dor”.

De acordo com esses estudos, “pelo menos 0,4% dos participantes de um banco biológico do Reino Unido, com 500 mil genomas britânicos modernos, carregam o gene neandertal mutante. Em tais pessoas, o gene cria uma proteína responsável pela duração dos sinais de dor enviados ao cérebro e à medula espinhal”. Ou seja, isso explicaria porque algumas pessoas sentem mais dor do que outras.

Assim, ao contrário das premissas que sustentam as teses a) Irrelevância das raízes culturais, políticas, religiosas dos povos que colonizaram o Brasil para explicar as relações de desigualdade predominantes hoje em nosso país; e b) Determinação das relações baseadas na produção como fundamentos irrecorríveis da construção desta nossa civilização, o que se percebe é a importância incontornável do fator humano. Somos, sim, sujeitos da História, mas igualmente seus pacientes. Erráticos, inseguros, amedrontados pacientes.

Desde o advento da sociedade de consumo, impulsionada pela máquina a vapor e aprimorada, posteriormente, pela linha de produção, a educação formal tem intensificado o seu declínio, na esteira de sua massificação em prol do utilitarismo. A verdade é que a universalização do ensino, conquista meritória da modernidade e em definitivo institucionalizada pelos regimes autodenominados democráticos, trouxe como semente de sua ruína a perda gradativa de qualidade, condição potencializada pelo crescimento demográfico associado ao avanço no controle das doenças e à longevidade das pessoas.

Não por acaso os últimos grandes saltos do engenho humano se deram até o final do século XIX, mas na física e matemática: em 1900 Max Planck (1858-1947) descobriu a mecânica quântica; em 1905 e 1915, respectivamente, Albert Einstein (1879-1955) demonstrou a relatividade restrita e a relatividade geral. Isto para nos limitarmos aos três momentos que viraram o mundo de cabeça para baixo, deixando de lado inúmeras outras formulações científicas que igualmente vêm impactando os rumos da nossa espécie.

Na filosofia, aponte-se um nome, pós Sartre (1905-1980), que tenha logrado avançar além do que haviam proposto os existencialistas, desde Kierkegaard (1813-1855) e Heidegger (1879-1976). Talvez Michel Foucault (1926-1984), talvez.

De resto, o que se tem, com todo o respeito aos contemporâneos mais determinados, são alguns mestres comentadores (aqueles que dominam as formulações originais e as usam tão bem ou melhor que seus inventores) e muitos diluidores (apropriadores dissimulados das invenções alheias), para adotarmos a classificação de Ezra Pound (1885-1972).

Os ‘pensadores’ da segunda metade do século XX e primeiras décadas deste XXI atuam como lançadores de modas (ainda segundo Pound). Incapazes de inventar, recusam, no entanto, a condição de mestres, apegando-se a questões pontuais da existência, mais preocupados em buscar a notoriedade do que, assumidamente (e esta é a palavra-chave!), lançar luz sobre as ideias daqueles que os precederam; aqueles cujas formulações, afinal, são o que impregna o comportamento moderno.

Lamentavelmente, no instante mesmo em que sabedoria e ação deveriam estar em sintonia, o que se vê é frustrante, porque orientado pelo complexo de inferioridade e os mais mesquinhos interesses. Não se explicitam as construções inesperadas dos fatos históricos, o aprofundamento das compreensões com o despontar dos novos questionamentos (a velha dialética), a construção civilizatória não subordinada necessariamente a critérios determinados... É isso?!

Encontramo-nos, parece-me, diante de uma Idade Média rediviva, dominada pela diluição e fragmentação do conhecimento, embora frente a um quadro diferente daquele outro, onde ao menos germinaram as grandes linhas filosóficas que levaram ao Iluminismo. Perdemos tempo.

Pode-se argumentar que a baixa velocidade da vida dos séculos passados era propícia ao ofício de pensadores, com seus céus pontilhados de estrelas e a predominância do silêncio no entorno de suas existências. Certamente que essas condições terão ajudado no ofício da reflexão sistemática e frutífera, embora a seu tempo o ritmo da vida daqueles homens também estivesse acelerado em relação ao que houvera antes.

Mas, o que decisivamente contribuiu para a originalidade da prática de pensar a vida e o cosmos, até as primeiras décadas do século XX, foi o fato de os ginásios e as universidades terem propiciado estudos de melhor valor do que os centros de ensino de agora, na medida em que formavam alguns seres capazes de pensar e viver para o mundo, e não a mão-de-obra exclusivamente destinada ao mercado, como hoje ocorre.

Se naqueles séculos o pensamento atuava verticalmente, hoje ele se espalha para os lados, em extensão, explorando em águas rasas — sabemos muito, mas amadurecemos pouco. A sociedade moderna é, como já se disse, imediatista, perecível, instantânea, instável e febril — promove o “esfumaçamento de tudo o que é sólido” (Marx-Engels), subordina-se alegremente à tecnologia e se “liquidifica” (Zygmunt Bauman, 1925-2017).

Não se trata de uma visão simplificadora, mas de um dado da realidade: falta massa crítica à nossa época. Apesar de sua força, intensidade e capacidade de permanência — diz-se, até, que ela seria indestrutível —, a revolução burguesa — a maior de todas, segundo Marx — não faz o rompimento completo com o passado imediato. E não faz porque não queira. Não faz porque não entende/aceita que aquilo que constitui a memória do animal-homem tornou-se parte irremovível da existência do homem-animal; independentemente da vontade de quem quer que seja.

Não entende/aceita que no passado estão gravados os desvios fundadores da civilização, cristalizados como ideias, sofisticados como práticas inseridas em todas as rotinas cotidianas das pessoas através dos tempos, e agora robustecidos por ferramentas novas, capazes de amplificá-los e fortalecê-los, como a um câncer do espírito agindo sobre e no interior de nossa época. Ou seja, a poderosa revolução burguesa reconstrói e ressignifica ad infinitum o velho caminho errático. Perde-se em meio às facilidades que o autoengano tecnológico nos oferece. Ilude-se com miçangas.

Observe-se o caráter ingênuo de toda e qualquer revolução social. Ou não é ingenuidade imaginar que as obras do homem de hoje podem ser dissociadas das obras do homem de ontem, apenas porque se modificaram as relações de produção? Pois bem, as bases ideológicas da bela e generosa revolução comunista científica fincaram-se na ilusão de que seria possível construir o homem novo zerando (ou diluindo) a cultura acumulada pelo homem velho.

Isto, como afinal se viu, é impossível. Quer queiram ou não, repito,
as gerações de agora levam para adiante o essencial da cultura daquelas que sucedem, desde os primórdios da nossa espécie. A bem da verdade, nada na História surge por geração espontânea, ou a partir daqui ou dali. Para que mudanças substantivas ocorram, é preciso que haja atores conscientes e dispostos a perseverar nesse processo sem esperar adesões, sem propor coletivos, sem almejar lideranças — sendo, apenas; errando, corrigindo, mas sendo.

No âmbito educacional, o que se vê nestas primeiras décadas do século XXI é a quase suspensão, de novo e sempre, da possibilidade de se construir um futuro de maioridade para a espécie humana animal, pela via das instituições: o ensino perde a capacidade de instigar o raciocínio; não promove o prazer da descoberta; não provoca a invenção.

Do nível primário à universidade, o cenário é de terra arrasada. Alguns contradirão, apontando exemplos de excelências em indivíduos e instituições, mas, na verdade, referem-se a ilhas, exceções que apenas confirmam a regra e preservam a mais inconveniente das realidades: a manutenção de uma elite restrita (egoísta e cínica), que eventualmente absorve mentes privilegiadas originadas das classes economicamente inferiores.

A grande massa da população permanece mergulhada na mediana mediocridade. Em todos os níveis escolares, por exemplo, copia-se desbragadamente, graças aos links gerados pelos sistemas de busca da internet. E não é que essa facilidade para capturar informações online seja um fato inédito — em décadas passadas, ainda sem a rede mundial de computadores, existiam as bibliotecas e também se copiava demais. O que há de novo nestes tempos — porque tem mais gente fazendo isso, milhões de pessoas — é que se copia mal; apenas se chancela a cópia, sem entender o que está sendo reproduzido.

Disse quase suspensão da possibilidade de construir a maioridade da espécie num tributo à tese que confere à dialética o poder de formular novas sínteses a partir do diálogo permanente entre o passado e o presente, embora tenha minhas dúvidas de que isto seja de fato ainda possível. Trata-se de uma esperança, acompanhada da constatação de que, em decorrência do atual modelo de ensino especializado e utilitarista, falta e faltará mais ainda pensamento independente e ousadia a quem cabe raciocinar e formular projetos; e mais ainda a quem os opera.

Os que muito fazem, apenas repetem com novos confeitos o que outros já pensaram e ousaram dizer em seu tempo, com a diferença de que aqueles se expuseram aos riscos presentes em suas respectivas épocas e circunstâncias históricas. Uma conclusão possível é a de que atravessamos o último século sob o signo das conveniências.

Vivemos, assim, coerentes com a fragilidade deste momento, tempos de ampla covardia travestidos de heroicos. Tempos em que a busca da notoriedade é uma obsessão praticada em todos os cantos da vida social; estimulada e patrocinada pelos meios de comunicação, à guisa de entretenimento.

É quase impossível — e também inútil — separar o que é verdade do que é mentira naquilo que nos chega por meio da mídia. Esta reunião de ideias e argumentos aqui expostos, a propósito — reflexões de uma pessoa sobre as origens da espécie, sua história pessoal e coletiva, e dessa pessoa sobre a vida —, pode também não conter nenhum vestígio de valor. Admito.

Neste teatro social cambiante, o que temos é a ascensão de lideranças emocionalmente despreparadas e intelectualmente insuficientes, incapazes, especialmente elas, de capturar a cena contemporânea e, por consequência, inaptas para motivar e conduzir mudanças.

Isto quanto às elites políticas, contingente formado pelos velhos e novos herdeiros do poder. O que não dizer do estrato intermediário da sociedade, constituído daquelas pessoas que, graças à democratização do ensino possível, têm tido a oportunidade de adquirir alguma formação e atuam como prestadores de serviços à sociedade: jornalistas, médicos, funcionários públicos, juízes, promotores, economistas, advogados, engenheiros, psicólogos, professores, e tantos outros?

São estes, a quem cabe, historicamente, a tarefa de repercutir a cultura das elites para os demais segmentos da sociedade, os que se encarregam, alegre e lucrativamente, de disseminar as tais práticas perversas previamente instituídas, ampliando e perpetuando os danos decorrentes dos descaminhos originários.

Aqui, é bom que se repita: a perversão atribuída a tais práticas — a imposição do poder como prerrogativa da força física; a mitificação do desconhecido; a predominância do sobrenatural sobre o transcendente — está na gênese do animal-homem; é anterior à formulação de quaisquer sistemas filosóficos. Estes, na verdade, foram construídos dentro desse ambiente mental, por assim dizer, sendo por ele conformados.

A força forte é a que precede; é o fato gerador da reação — o princípio é este: a força fraca relativiza-se à primeira. Assim, mesmo que o contingente dos animais-homens fracos tenha sido mais numeroso naqueles momentos pré-sociais, foram os animais-homens fortes aqueles que estabeleceram as regras e os padrões fundadores.

Neste sentido, se a moral surgiu como uma igualmente poderosa e astuta reação dos muitos mais fracos aos poucos mais fortes, isto importa como uma boa hipótese ao entendimento de sua genealogia, mas não elimina nem diminui a sofisticada rede de relações estabelecidas a partir do fato gerador — a imposição do poder como prerrogativa da força física.

Uma mudança de rumo — se isto ainda é possível, repito — não se dará, portanto, exclusivamente pelo caminho da filosofia acadêmica (praticada entre quatro paredes), pois não depende de sistemas, mas da compreensão e apreensão do processo pré-histórico da espécie e de uma ação individualizada não sobre, mas a partir do ser humano de hoje e de sempre.

Se é verdade que nosso modelo de civilização está em crise funcional e na rota da autoextinção, como parece; se percebemos, em linhas gerais, as razões dessa falência; e se compreendemos que o triunvirato que a sustenta — Religião, Estado, Capital — não cederá qualquer parcela de poder, muito menos patrocinará a necessária construção do homem independente e responsável — esse homem transcendente (embora animal) a que me refiro —, o que nos resta fazer?

Em primeiro lugar, não interessa se daqui a bilhões de anos o Sol se extinguirá e, aí, uma justiça cósmica será feita; nesse instante futuro nós não estaremos aqui, mesmo! Nosso compromisso possível é com o presente, com este momento em que estamos a produzir ideias, as quais, cedo ou tarde, poderão — ou não! — ser transformadas em práticas.

No presente em curso é que se realiza o ideal cósmico do homem-animal a caminho de seu absoluto — do absoluto do homem-animal, enfatizo, pois nenhuma ideia, pensamento algum tem valor se não tiver este ser, a espécie humana, a sua existência, como seu fim e princípio. Ao menos nesta galáxia.

À guisa de tentativa de roteiro para superarmos a menoridade da espécie humana, proponho que o caminho incontornável que temos à frente com vistas à realização da inadiável tarefa — dado o estágio de degenerescência e desagregação em que nos encontramos — deva passar pela construção de um modelo educacional ético e verdadeiramente inclusivo.

Não diria que se trata de um “novo” modelo, pois entendo que este a que me refiro é, em verdade, o tipo de educação que deveria ter sido adotado desde sempre, se a cultura do poder (físico e/ou mental) do mais forte não houvesse prevalecido nas relações entre os humanos, desde as nossas raízes ancestrais.

Se os seres mais sábios, dentre aqueles que originaram o Homo sapiens, tivessem compartilhado com seus grupos não o mistério de suas descobertas — desta forma tornando-se senhores de uma ascendência poderosa sobre os demais, tanto ou mais do que os riscadores das paredes das cavernas —, se tivessem compartilhado não o mistério, mas o método que seguiram para alcançar suas descobertas, nossa História teria sido bem diferente.

O ato de ensinar o método, e portanto empoderar outras pessoas a repetirem e superarem aquilo que aprendemos, é prática recente entre nós, não mais distante do que 2000 anos a.C. Ainda assim, como se viu e vê, apenas alguns eleitos nesse modelo tiveram e têm acesso a tal oportunidade libertadora.

Foi sobre esse paradigma seletivo de transferência de verdadeiro conhecimento que se assentou o alicerce desta nossa civilização, esta que em sua melhor face denominamos humanismo e que em sua melhor prática traduzimos por democracia, o tal governo do povo e para o povo.

Mas não nos iludamos: nem mesmo na Grécia antiga, onde o termo foi cunhado (em oposição à aristocracia, a forma de governo conduzida pela nobreza), havia de fato ‘democracia’. Tanto que, como nos ensina a História, a cidadania era exercida tão somente por homens, filhos de pai e mãe atenienses, livres, maiores de 21 anos e capazes de lutar em guerras; estrangeiros, escravos e mulheres estavam excluídos dessa participação política.

Portanto, quando hoje leio e ouço comentários de que tal ou qual democracia está ou se tornou fragilizada, ou que a democracia está morrendo, concluo que esses analistas estão sendo um tanto ingênuos, para dizer o mínimo.

O que temos hoje, mundo afora, mesmo nos melhores exemplos (as tais ‘democracias modernas’ nascidas da progressiva adoção do sufrágio universal, no séc. XIX), não passa de autoengano ou dissimulação, como queiram, porque é democracia consentida. A democracia, a verdadeira, é utópica, um ideal a ser buscado mediante a autoconstrução da maioridade da espécie humana (e não ao acirramento da luta de classes, lembro).

Ou seja, ‘humanizamos’ algumas relações e ‘democratizamos’ algum conhecimento, mas sob certas condições de ‘temperatura e pressão’, de modo a que não mais do que alguns pudessem (e possam) vir a adquiri-lo e desenvolvê-lo (para o bem comum?), enquanto a imensa maioria restou e resta entregue à própria sorte, imersa na ignorância e/ou submetida à insegurança codificada de qualquer fé.

Quando proponho o ensino do método de se desvendar os mistérios do mundo — e repito que a negação desse ensino está na raiz dos males de nossa civilização, pois foi essa primitiva recusa que fundamentou a estrutura de poder que desde sempre nos submete —, quando faço essa proposta estou falando de trazer para o mundo de todos e todas, desde a mais tenra idade, a possibilidade e o direito de compreender que habitamos um planeta, que este planeta viaja no cosmos, que é um ser vivo, que é finito, que para melhor desfrutá-lo temos de agir com sabedoria, ética e tolerância aqui, agora, sempre.

E estou falando, ainda, que esses ensinamentos não podem ser matérias de estudos complementares ou reservadas aos mais velhos, mas que se tratam de questões fundamentais, preliminares, iniciais da formação de todo ser humano.

Dizem que temos de ‘educar para o mundo’… Não, temos de educar para o cosmos! Sem primeiro conhecer seu lugar planetário, sem saber onde habita, sem fincar os pés sobre esta Terra e senti-la viajando no espaço-tempo, sem vislumbrar a singularidade de sua existência cósmica nossa espécie permanecerá para sempre nesta jornada infame, construindo sua História pelo meio mais doloroso e de improvável sucesso.

Alguns de nós, graças à genética, à condição de classe, às particularidades de nossa criação e ao ensino privilegiado que possamos ter tido — isto é, ao meio a que pertencemos e às condições objetivas de nossa existência —, sabemos até mesmo aonde podemos chegar: a real democracia.

O impressionante sistema desenvolvido por Marx-Engels, apesar de insuficiente, é prova disto. No entanto, e isso é uma verdade inarredável, não aprendemos ainda a trilhar um caminho viável para alcançarmos esse fim sempre utópico. É a isto que se destina o modelo educacional que proponho.

Conquistar conhecimento pela boa educação é mais difícil do que alcançar a riqueza. Os donos da riqueza do mundo, por exemplo, sabem dessa verdade. Sabem que, no fundo, no fundo, é preciso dificultar o desenvolvimento da capacidade crítica das pessoas e, para isso, manter o sistema de distribuição de boa educação sob rédeas curtas.

É preciso, do ponto de vista dos interesses dos donos da riqueza do mundo, impedir que muitas pessoas pensem demais, enxerguem demais, emancipem-se demais. Pensem “errado”, como muitos deles gostam de dizer e agora dizem, no Brasil e em outros pontos do planeta, os defensores da “escola sem partido”.

Os donos da riqueza do mundo até admitem, e festejam, quando alguém saído dos estratos inferiores da sociedade alcança notoriedade pela via da obtenção de riqueza. Afinal, eles precisam resolver problemas objetivos da vida social, necessitam manter aceso o desenvolvimento tecnológico, a invenção de novos remédios para os deles e para os nossos males, desde que possamos pagar o preço, o que é ainda melhor, porque assim a economia se movimenta e eles aumentam sua riqueza.

Surgiu um jovem com uma ideia brilhante (IBM, Windows, Apple, Facebook, Google, Amazon, Twitter, WhatsApp, Instagram etc.) esperando para ser colocada em prática? Por quê não apoiá-lo, financiá-lo, promovê-lo, deixá-lo enriquecer de modo a que se torne mais um do clube? Isso é meritocracia! Parabéns, rapaz! Você é genial! E assim caminha a humanidade.

O que não pode e imensamente incomoda aos donos da riqueza do mundo é se alguém de baixo adquire educação verdadeira, ou seja, põe a cabeça fora do penico e vê como de fato é o mundo, como se dão as relações sociais e, pior, vê que é possível tentar mudar a realidade. Aí não pode! Lembra um personagem da minha juventude, o Dinho, que andava ligeiro pela Praça da Independência, em Santos, e falava aos ouvidos das pessoas com quem cruzava: “Não pode!” É, “não pode!”, não.

Pode ter educação formal, essa que está disponível ao grande público e que em muitos países é até gratuita, garantida pelo Estado. O que não pode, aos olhos dos donos da riqueza do mundo, é a educação que vai além, o conhecimento que nos liberta para pensar, para questionar inclusive as relações sociais vigentes. E também não pode, é terminantemente proibido, atuar no sentido de mudar o status quo.

Quando alguém possui tal educação (por ‘dom divino’ ou opção) e, com suas palavras e atos, passa a disseminar seus conceitos e práticas, em busca da concretização da utopia, os donos do dinheiro do mundo se incomodam e põem seus exércitos nas ruas para abortar a ousadia. Do seu ponto de vista, cada época tem sua cota admissível de pessoas verdadeiramente educadas. Esse número não deve, de maneira alguma, ser ultrapassado, ganhar massa crítica, sob pena de ameaçar a estrutura social desde sempre construída.

Durante muito tempo o acesso à educação, mesmo essa mais simples, corriqueira, básica, utilitarista, esteve restrito e vigiado, para que as possibilidades que ela descortinava não se disseminassem sem controle (leia o livro “O nome da rosa”, de Umberto Eco, ou veja o filme). O andar da carruagem da História foi aos poucos distendendo essa vigilância, mas sem nunca admitir/praticar o óbvio revolucionário: educar o homem é emancipar o homem. Não. Para os donos da riqueza do mundo, educar é tão somente instrumentalizar o homem.