"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo I

Aquilo que sinto está fora; isto, que apenas percebo, está dentro. No meio, o ente que apreende o de fora e vislumbra o de dentro; intersecção de dialéticas enredadas: sentir com significar; pensar com produzir; interpretar com reagir. Entre outras tantas possibilidades cruzadas simultaneamente agora.


Volto-me para o dentro, refém deste imã cuja força atrativa está na elaboração e questionamento acerca do que é sentido. E dentro estando, mergulho neste turbilhão onde, sob agonia, busco pontos, linhas, porções de débeis saberes e frágeis certezas.

Pressinto que tal intra movimento é também expressão volitiva e continuo aqui, em transe, animado pelo breve vestígio do eterno; tocado pelo impulso de criar um caminho, uma rota, um mapa que me conforte, ao menos, nesta queda inevitável rumo àquilo que apenas percebo, instigado por aquilo que sinto. De imediato, a primeira lei se impõe ao ente: preservar para ter. E também o primeiro mistério: perenizar o perecível.

A lei indica as rotinas a praticar em favor da via do prosseguimento: resguardar todas as dimensões do ente — as de fora e as de dentro. O mistério instiga o paradoxo de acreditar desconhecendo a quê: aceitar a possibilidade do vir a ser — conviver com a contradição.

Não me cabe, nem a mim comporta resistir ao fado imposto pelo impulso de criar aquele caminho entre o dentro e o fora e o fora e o dentro. Tal destino se faz presente desde sempre; traz regras; produz ferramentas; elabora instrumentos, dentre estes, quem sabe? seja eu, aqui de dentro, o mais presunçoso, pois me concedo o direito de reivindicar — meramente reivindicar — certo poder de controle sobre o modo de caminhar.

Esta concessão é a minha fraqueza, meu íntimo segredo, embora relativo a alguma conveniência cósmica, sei lá… Afinal, as coisas que se movem — e criar um caminho no espaço e no tempo é, sobretudo, mover-se — necessitam do que se lhes atribua movimento; se esse elemento de estímulo configura-se um auto-engano plenamente admitido, o que se há de fazer?

O poder que reivindico — tão-somente reivindico —, eu, ente-turbilhão, o exerço como se de fato o possuísse, mesmo que seja um poder irreal, mero motor do espírito, repito.

E, no entanto, possuo uma consciência concreta, material, viva. Sinto-a porque tenho um corpo manifesto, instrumento multissensorizado que me possibilita utilizá-la, a consciência. Experimentá-la, capturar os efeitos de seu uso e aprender a partir das sensações e resultados que isto em mim produz.

Movimentos, cores, sons, gostos, odores, formas, texturas são fatos exteriores a mim, tanto quanto referências a me distinguirem do que mais exista. Muitas dessas presenças, que me acompanham e me validam como ente autônomo, restam imóveis; outras estão soltas na superfície sólida onde também me encontro, ou se acham nela encravadas.

Essas coisas-imóveis, ou que não se movem por si mesmas, compõem o maior dos conjuntos e massas que me cercam. É aquele que predomina, que é contínuo e unido, como se constituísse um corpo único, orgânico, em meio ao qual me desloco e de onde recolho coisas que saciam meus desejos, atendem à lei do prosseguimento, ou que transformo em instrumentos para tal.

Outro conjunto é o das coisas-móveis, as que agem com seus próprios meios, emitem ruídos, diferenciam-se por formas e comportamentos imprevisíveis. Muitas se mexem em volta de mim lentamente ou correndo, mergulhando, flutuando ao meu redor.

No universo deste ente-turbilhão, que sou, e de minhas relações com
as coisas-imóveis e as coisas-móveis, constato a existência de elementos fluídos, líquidos, ardentes e sólidos, entidades que se põem ao largo de meus desígnios, pois estão libertas de vontades ou determinações, sendo apenas força, ímpeto de existir, energia e essencial provisão.

O primeiro deles, o fluído, introduz-se por todos os recantos e paira num imenso vazio, translúcido se dominado pela luz intensa do grande círculo cegante ao alto, mas que na ausência deste — que não me deixa fitá-lo e me escurece e visão, quando tento — se enche de pontos luminosos, infindáveis, piscantes no escuro, acompanhados, às vezes, por outra bola de luz, esta, no entanto, amigável, fria, repousante de se ver, admirar e sonhar.

O corpo líquido, segundo dos elementos, adiciona-se ao meio e às coisas-imóveis e móveis, impondo-se pela dinâmica de seu movimento; ocupando os espaços externos e internos a mim, por complemento ou por excesso.

Atado e dependente do combustível que o mantém, o elemento ardente concentra-se em focos, que se espalham ou restringem, consumindo o que ali e aqui antes havia e era presente no sólido, o terreno das coisas-imóveis.

Sei que existo porque estou imerso em realidades assim, que me tocam, preenchem, aquecem e molham, queimam e envolvem; porque estou por todos os lados exposto — embaixo, entre, e acima incluídos. Mas sou além das impressões que capturo, e das outras apenas intuídas.

Olho em volta e percebo a presença de abundantes e variados conjuntos de coisas postas de pé, como me encontro agora, embora externamente distintas de mim e distribuídas ao acaso, ou de maneira uniforme, obedientes à direção desse fluido translúcido, cuja existência se manifesta nas coisas e que vem de não sei onde, seguindo a cantos que desconheço.

Além daquele desejo primevo de existir e para isso preservar, e de acreditar sem conhecer, não sei a quê sirvo. Ou, talvez, presuma: sou um experimento entregue ao seu azo, ao sabor da circunstância, fruto da ocasião. As obras que produzo são, assim, meros ritos de passagem, permanente iniciação. Não sei de onde vim. Desconheço o quê e a quem sou dado existir. Ignoro tal existência.

Temo, reluto, mas afinal e sempre me convenço de que ente-turbilhão é isto, substância em espiral. Meus movimentos alternam saltos, corridas, andadas curtas — tudo executado com alguma dificuldade e repetido cansaço, embora perceba que estou cada vez mais forte e resistente. Ando, agora, me apoiando apenas sobre os dois membros posteriores e assim posso enxergar mais alto e mais longe.

E não sou único. Vejo outros seres, distintos de mim em formas e propósitos, movimentando-se erráticos, ainda que tenham por rumo algo que também estou a buscar: conservação e proteção nesta existência. Digo, com ênfase: saciar os desejos primários é um de meus objetivos permanentes. Esta é a lei. Outros iguais a mim se aproximam e me olham curiosos, suplicantes de respostas, mas, como eu, condenados a esta solidão. O que somos? O abismo.

[A evolução humana ainda não está suficientemente explicada. Segundo os mais recentes estudos, ela tem origem nos primatas (65 milhões de anos) e começa a se manifestar nos hominídeos (6 milhões de anos), dentre entes o Homo sapiens. Inúmeras disciplinas dedicam-se a esse estudo, da antropologia, à arqueologia, à genética, à linguística. E o que hoje se sabe é que essa evolução deveu-se, aparentemente, a uma sequência de mudanças anatômicas ocorridas naqueles seres originários. O bipedalismo liberou as mãos para colher e transportar alimentos; proporcionou melhor distribuição e irrigamento sanguíneo a todo o corpo; permitiu o deslocamento mais rápido e, assim, facilitou a caça e a ampliação do campo de visão, além de ter promovido inúmeras adaptações ósseas e de articulações. A encefalização (o cérebro dos chimpanzés tinha 600m³, o dos neandertais até 1.900m³ e o do homem moderno cerca de 1.330m³), proporcionada pela consumo de carne e amido, bem como o cozimento dos alimentos, foi fator determinante para o desenvolvimento da aprendizagem e, em conjunto com a mudança da estrutura cerebral, aumentou a inteligência social, em consequência do crescimento das habilidades empáticas e da necessidade de interação entre os membros do grupo com vistas à caça, por exemplo; ampliou a cognição e possibilitou o desenvolvimento da fala. A Oposição ulnar (contato do polegar com o dedo mindinho da mesma mão), habilidade única no gênero homo, que permitiu manipular objetos e os agarrar com força e precisão, foi fundamental para a produção e uso de ferramentas (Homo habilis, 2,4 a 1,8 milhões anos atrás; Homo erectus, 1,8 a 1,25 milhão de anos; Homo sapiens, 300 mil anos).]