"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo V

— Bom dia! Já tomou café?

— Ainda não, acabei de levantar; estou aqui olhando o noticiário na internet… Faz aí, pra mim. Mas não muito, porque vou querer mais depois e prefiro fazer outro. Não gosto de café velho.

— Tu és chato, mesmo! Não precisa explicar nada. Não vou fazer nem mais nem menos apenas porque você está fazendo esse discurso. Vou fazer o café, e pronto! Mais tarde, se você quiser, joga fora o resto e faz outro!
[O cotidiano depende de tuas opções e decisões? Não, nem de longe. Ele resulta de teus desejos e expectativas, no embate com os personagens passados, presentes e futuros que habitam a história corrente da tua vida; futuros, sim, porque passado e presente geram efeitos que só mais adiante se darão a conhecer.]

— Você viu toda essa cobertura da mídia sobre a morte do Niemeyer?
[Oscar Niemeyer, 1907-2012, arquiteto brasileiro, construtor de Brasília.]

— Claro! Ele demorou tanto tempo entrando e saindo de hospital que deu para preparar direitinho o obituário.

— O cara merece. Foi um grande arquiteto, bem-sucedido. Teve a chance de exercer sua integridade e fez isso muito bem.

— Pena que tudo seja apenas assunto de mídia, mercadoria. Seus bons exemplos, se houve, serão esquecidos em poucos dias.

— Obrigado! O café está ótimo! Ainda bem que você não perguntou se ficou bom de açúcar. Todo mundo pergunta isso, e depois de ter adoçado; é engraçado. Se tem dúvida, por que não serve amargo e oferece o açúcar à parte?
[Vives em função de compromissos profissionais e familiares, à espera dos finais de semana para fazer mais das coisas que gostas, expectativa essa quase sempre frustrada porque talvez não saibas exatamente quais são os teus prazeres. Talvez sobressaia o fato de que tens consciência das limitações que a vida nos impõe e que é preciso aceitar isso; a menos que se desista de tudo, o que é sempre uma possibilidade.]

— Vamos andar na praia?

— Claro! Já estou me trocando. Vamos cedo, pois ainda quero comprar frutas na feira. Precisamos comer frutas, tomar sucos faz bem.

— O quê é isso, alguma insinuação de que eu não como frutas? Ah, já entendi, foi a barra inteira de chocolate que comi ontem à noite…

— Pois é, vais entupir tuas veias, assim…

— Bom dia!

— Bom dia! Bom dia! O sol vai esquentar hoje. O melhor é andar nessa hora, mesmo. Bom passeio!

— Obrigado.

— Você respondeu ao cumprimento do zelador?

— Claro, acenei com a cabeça. Você não viu?

— Tava lendo agora, antes de sair, um artigo sobre essa movimentação que vem sendo orquestrada pela Direita, em todo o mundo. Não gosto de me deixar dominar pela ideia de complô, mas também não acredito em coincidências.

— Para de ler essas coisas, senão você vai ficar doente.

— Impossível não ler! Tá pipocando em todo lugar. E, de fato, você percebe que a Direita, ou que nome se dê a esses caras, armou um modelo de reação que envolve a mídia e o judiciário, atuando conforme as decantadas regras democráticas. Eles vêm dando verdadeiros golpes de estado, insuflados por notícias construídas pela mídia e contando com sentenças moralistas das instâncias mais altas da justiça. O que menos importa é a verdade. E a classe média, que é quem faz a opinião pública, vai dormir em paz, acreditando que tudo é verdade e se sentindo atendida em seus reclamos… Um golpe de mestre.
[Quando tu chegas em casa, no início da noite, após um dia de trabalho, queres pouco mais do que tomar banho, vestir uma roupa confortável e assistir na televisão os filmes que deixastes gravando na madrugada anterior, atividade às vezes interrompida por uma rápida refeição antes de ir dormir — isto é o quê? Vamos alinhar as ideias: o homem do tempo presente é, em essência, um acumulador, um sujeito que vive para os excessos, desde que socialmente permitidos.]

— Olha, vou te dizer uma coisa: o mundo não tem conserto, a ser humano é uma merda. Quando a gente vê toda essa tecnologia, todos esses conhecimentos disponibilizados, inclusive de graça, na internet, e mesmo assim as pessoas continuarem incapazes de pensar, a gente perde as esperanças no futuro. Fico aqui pensando nos meus netos…

— Eu não quero pensar no futuro. Sei que isso é impossível, mas quero me ligar no presente, no presente mais presente, neste exato instante aqui.

— Até porque estamos atravessando a rua e tem carro vindo em alta velocidade… Se liga!

— Pois é. Cuidado aí com a merda de cachorro na calçada…

— Falar nisso, você viu aquela mulher chamando o animal de “meu filho”?

— Fiz que não ouvi.
[Tua rotina é pobre, eu sei, mas é isso o que acontece com a maioria das pessoas, sejamos sinceros. Ninguém vive em permanente frenesi: nem os personagens do mundo do entretenimento; sequer os direitistas ou os esquerdistas mais radicais — os extremos da cena social e política dos nossos dias. Se pensas que a vida dessa gente difere em tudo da tua, consulta o teu especialista em marketing, ou a biografia não autorizada do político de tua preferência. Não te esqueças: somos todos humanos e medíocres.]

 Você trouxe dinheiro? Precisamos passar na padaria, na volta da praia.

— OK… O filme de ontem à noite foi muito bom. Bem estruturado, bem realizado, com boas interpretações, uma boa diversão.

— Só teve aquele problema do roteiro.

— Bem, não chegou a ser um problema. A questão era que os caras precisavam chocar a plateia; faz parte da coisa. Por isso é que o herói, na dimensão do passado, é o próprio filho de sua amante na dimensão do presente.

— É, deve ter sido de propósito, mesmo. Mas muita gente nem percebeu a coisa. Ou foi pensar em casa.
[O que eu quero mesmo dizer é que o cotidiano das pessoas não depende exclusivamente de suas opções e decisões, sejam elas o que forem — esquerdistas ou direitistas radicais, estrelas do entretenimento ou pacatos cidadãos cumpridores de seus deveres. Cada um desses grupos, com suas diferentes colorações e sutis diferenças, pratica sua cota de excessos. Mas, convenhamos, nenhum é um excesso excessivo. Todos são, de fato, excessos moderados pelo perfil de cada personagem.]

— Tem uma nova geração de roteiristas no mercado. Não exatamente de pessoas jovens, mas de ideias novas, que incorporam e cruzam informações de todos os lados. Da química, da psiquiatria, da geografia, da física quântica, da antropologia… Muito interessante.

— Muito interessante, mesmo! Está até dando pra ir ao cinema, de novo.

— É, nada se compara a uma tela grandona, com ar-condicionado.

— Desde que não tenha uns caras deglutindo um balde de pipocas do teu lado… E fazendo comentários idiotas.

— Naquele filme do resgate, com tantos dramas, lances políticos, existenciais, econômicos, ideológicos, as pessoas só se ligavam em coisas triviais; riam de quase-piadas visuais, entre um bocado e outro de pipoca…

— Foi o que eu disse.
[Desconfio, até, que se assim fosse seria péssimo. Todo mundo precisa do inesperado, embora muitas vezes ele nos traga más notícias. É como o sexo: o melhor é aquele que acontece sem planejamento, na confluência do desejo com a oportunidade. Assim é a vida. Tu sabes que desejos e expectativas não são equivalentes. Os primeiros provêm de experiências vividas ou tão imaginadas que, para ti, se tornam reais — presta atenção. Já as expectativas são do território da aventura, matéria do desconhecido, do risco que tu assumes quase com medo de que se realize. Por isso, o melhor que te acontece é irrepetível. E o melhor que pode te acontecer será sempre novo, mesmo que seja a realização de um desejo.]

— Choveu de madrugada. A praia está cheia de lixo.

— Esse lixo todo não tem a ver só com a chuva. Chuva, por mais forte que seja, traz apenas folhas e pequenos galhos soltos das árvores das encostas em torno da baía. Esse lixo é produzido pela ignorância das pessoas, mesmo. Você vê até nas ruas próximas lá de casa… Todo mundo trata o espaço público como lixeira. E se você for reclamar, é capaz de apanhar.

— Eu reclamo. Mas só quando estou sozinha.

— É, mulher ainda tem uma certa liberdade para isso. Mas não abusa.
[Deixar filmes gravando, de madrugada, alimenta a tua expectativa de inesperadas novidades. Um certo frisson te percorre quando apertas o play, pondo pra rodar aquele que a sinopse de merda pouco explica mas promete. Tem lá um ator, uma atriz que costuma escolher bons roteiros… Bom, nem sempre, pois às vezes eles estão apenas precisando de dinheiro para pagar as contas do mês e aceitam fazer qualquer coisa. Afinal, quem não tem dívidas?]

— … É, virou moda…

— Eu não sei o que está acontecendo. A cada dia vejo mais casais de meninas se beijando. Meninos é mais raro, quase não vejo. Mas, meninas, é a coisa mais comum. Dizem que assim se divertem e não correm o risco de ter doenças, ou de ficarem grávidas…

— Não me importo. É mais um falseta desta nossa época.

— Falseta?

— Falseta, fingimento, engano… Sexualmente, você sabe que as pessoas podem ser tudo; é uma questão física, mas também pode ser de escolha. Desses relacionamentos entre adolescentes do mesmo sexo, quantos serão verdadeiros? Também não sei, mas não me incomodam. Acho que incomodam mais a elas e a eles, pois você percebe um certo ar de desafio, quando você os olha. E as pessoas olham porque olham, porque eles e elas estão ali aos beijos e amassos, e não exatamente porque os estejam julgando, condenando…

— Acho tudo isso uma pena, porque não vejo muita sinceridade. É mais uma moda. De qualquer forma, sempre sobra a atitude. Isso é bom, define o caráter.
[Tu sabes que, mesmo no ambiente profissional, onde prevalecem os contatos formais, é possível haver lances de amizade sincera. Tu sabes disso! De vez em quando tu ouves uma palavra limpa, acompanhada de um olhar desconcertantemente claro… O que fazer? São as pessoas e suas súplicas por entendimento, aceitação, compreensão. Ser humano não é fácil.]

— Você, mais do que eu, circula por aí e conhece o funcionamento das famílias de hoje. Sabe que o descompromisso é total; os pais não assumem os seus papéis. Ou se ausentam do processo de criação dos filhos, ou se igualam a eles, querendo ser seus amiguinhos, confundindo-os. Sei que meus filhos têm seus defeitos e que nossa relação com eles contribuiu para alimentar alguns desses problemas, mas não os vejo como pessoas emocionalmente dependentes. Eles têm suas opiniões e pronto.

— Acho isso ótimo!

— Eu também! Ter opinião já é um grande começo. O resto é aprendizado.
[Será que é isso mesmo, que todo mundo precisa do inesperado? Essa tua dúvida é típica, diriam os críticos da burguesia. Mas, veja, não se trata de…]

— Vamos voltar? Essa trilha sonora de ginástica está me incomodando. Detesto ginástica na praia.

— Estamos ficando velhos.

— Eu estou ficando velha, mas não acho que isso tenha a ver com idade. Pular ao som de uma música cretina como essa é a coisa menos interessante para se fazer na praia. Sentar numa cadeira e jogar conversa fora, bebendo cerveja ou caipirinha, é até melhor.
[Esse passeio na praia de Santos aconteceu no final de 2012, antes da guerra híbrida que se declarou contra o Brasil, em 2013, e antes da explosão das redes sociais de comunicação. Relendo em 2020 essas anotações, minha interlocutora de passeio fez questão de registrar: — Muito do que pensava naquela época, já não penso mais. Tenho até vergonha de um dia ter pensado aquilo...]

— Oi, tudo bem?

— Quem é?

— Já te disse um monte de vezes: trabalha comigo.

— Tô sem óculos de grau.

— Esse cara que eu cumprimentei é…
[No livro “The Root is Man”, Dwight Macdonald, importante pensador norte-americano, afirma: “Achamos que é uma questão em aberto se o aumento do domínio do homem sobre a natureza é bom ou ruim, tendo em vista seus resultados concretos sobre a vida humana, e que é necessário ajustar a tecnologia ao homem, mesmo que isso signifique uma regressão tecnológica, em vez de ajustar o homem à tecnologia. Não se trata, é claro, de rejeitar o método científico, mas sim de pensar o âmbito em que ele pode produzir resultados frutíferos. E sentimos que um solo firme a partir do qual se pode lutar em prol da libertação humana, que era o objetivo da
antiga Esquerda, é o terreno não da História, mas daqueles valores não-históricos (verdade, justiça, amor, etc.) que Marx tornou fora de moda entre socialistas”.]


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil