"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo VI

E se o presente for um estado de convergências a serviço do futuro? Neste caso, só haveria de real o futuro; àquilo que chamamos corriqueiramente de passado histórico caberia o papel de farol tremulante, repositório de precárias interpretações. Nessa compreensão, o enigma a decifrar seriam os rearranjos cósmicos que o futuro está a nos impor, de forma permanente, constante, irrenunciável.

As convergências, ou aquilo que denominamos coisas da vida, se dariam pela incessante tentativa de encaixe lógico das incontáveis partículas/manifestações constituídas pelo que deveria-existir, pelo que não-existe, pelo que existe. O constante resultado das convergências da vida, produzido por tais manifestações, constituiria a sensação fugidia do intangível presente.

A ilusão de vivermos um presente contínuo nos é dada pelo artifício de decompor o tempo de forma útil à materialização da vida. O que na origem seriam ciclos determinados pelo incessante rearranjo cósmico, passaram, convenientemente, a ser tratados como medidas de tempo ― a translação deste planeta em torno de seu sol, sua rotação e a lunação comporiam um sistema de medição arbitrário, matriz da ilusória sensação de presente.

Por esse raciocínio, entender-se-á o porquê de o presente ser/estar sempre incompleto/incapaz de responder/atender nossos anseios/esperanças de perfeição/felicidade. Parecemos incapazes de avançar, quando, na realidade, trata-se de expansão, não de avanço.

Avançar seria um conceito qualitativo e, por consequência, moral. Expandir apontaria para a noção de construir, seja lá o que for, e isto parece mais adequado ao indeterminismo da presença humana no cosmos.

Daí esse sentimento incômodo de que o mundo vai se tornando cada vez mais complexo e indecifrável, tanto mais o desvendamos. É que para nos apossarmos de novas compreensões é imprescindível estarmos enlaçados ao futuro, ao seu dispor. Ou seja, quanto mais conhecemos, menos seguros nos tornamos.

Algumas perguntas podem ser feitas, desde já: A proposta do futuro como único ente real seria uma forma de determinismo? Os embates travados no presente contínuo (inclusive os ideológicos) seriam, desse ponto de vista, ociosos? O futuro é um fim a ser alcançado?

Não se pode falar em determinismo quando o dever-existir, o não-existir e o existir resultam de uma constante aleatoriamente realizada. Aleatoriamente porque muitas das convergências estão a cargo de agentes indômitos, como são os seres da nossa espécie, ainda mais se atraídos por aquilo que desconhecem e/ou impulsionados pelo que se apaixonam.

Inexistiria, assim, um grande plano predeterminado a nós esperar lá no horizonte, tal qual a realização de uma promessa de perfeição. Muito ao contrário, o futuro estaria aberto, tanto mais amplo quanto mais densamente resolvido neste turbilhão de convergências.

Esse futuro seria como que a incessante atualização do passado. Não o passado histórico interpretado, esse instrumental precário da nossa espécie, mas aquele que já na sua origem contém o futuro. Isto é, o passado que se realizaria permanentemente no futuro, porque o tempo cósmico não possuiria cronologia.

Nada do que é/se dá neste átimo, em qualquer quadrante do tempo-espaço, seria, portanto, ocioso para a interação que o futuro nos impõe. Nós e tudo mais que existe, não-existe, deveria-existir estaríamos a serviço do eterno inacabado. Não haveria, em conclusão, um fim determinado a ser perseguido.

Haveria, isto sim, a troca febril dos espaços do ilógico pelo lógico,
não como resposta a um determinismo moral (inclusive do tipo religioso), mas como inarredável imposição de uma eterna construção. Contribuir para acelerar essa troca seria a mais nobre tarefa da nossa espécie, tendo como ferramenta para isto a ética.

As elucubrações acima podem não ter nenhum valor prático ou teórico, mas foram reflexões desse tipo que, em alguma medida, determinaram o que pensamos e somos hoje. Pensar e formular suas ideias é um dos deveres da nossa espécie.

Quem frequentou o Ensino Médio soube da existência dos gregos Sócrates, Platão, Aristóteles, e também do francês Descartes, que um dia anunciou a conclusão que todos conhecem: “Penso, logo existo”. Se teve sorte, ouviu falar ainda de Kant, Hegel, Marx e Nietzsche, dentre outros, em geral por meio de frases a eles atribuídas, quase sempre simplificadoras de suas ideias, fora do contexto em que foram utilizadas.

Acontece que a Filosofia e os filósofos são mais que isso. São, na verdade, os reais formuladores dos pensamentos e das ações humanas praticadas ao longo dos milênios e séculos que se estendem até aqui.

Influenciados pelos conceitos originários da excepcional capacidade de abstração desses poucos homens é que outros têm desenvolvido teorias inovadoras em todas as áreas do conhecimento humano, contribuindo para a construção da rede de inventividade denominada ciência, e para a projeção de seus reflexos sobre a vida cotidiana, a chamada tecnologia.

A Filosofia, portanto, não está parada no ar. Não habita um lugar misterioso, distante, inacessível. Não se destina; não deve se destinar ao círculo dos iniciados. As pessoas que têm a felicidade de frequentar as academias sabem disso.

Sabem que as formulações de Kant, Hegel, Marx, e de tantos outros, constituem a substância daquilo que os comuns mortais praticamos em nosso cotidiano. Por desinformação, desconhecemos que nossas vidas são ditadas por ideologias. Mais ainda: ignoramos que as ideologias decorrem de sistemas formulados por filósofos.

Por isso, é preciso colocar a Filosofia ao alcance de todas as pessoas. Tirá-la do âmbito da academia. Expandir a sua divulgação, de forma apropriada e sem dogmas, para todas as camadas sociais, é um dos maiores, senão o maior desafio da educação deste nosso tempo.

Fariam grande bem os divulgadores dos filósofos se explicassem às pessoas desta planície predada, patética, errática em que nossa civilização se transformou — sem surpresa para ninguém, é bom que se diga — o que, mesmo, disseram aqueles seres que mergulharam nas profundezas da compreensão do homem no universo.

É de Filosofia que precisamos agora. É desse conhecimento fino, incisivo, sutil e, no entanto, concreto, inteiramente presente nas ações humanas cotidianas, que nossa civilização carece. Está faltando esclarecer esses vínculos para públicos mais amplos, o distinto público.

É preciso desmitificar a Filosofia. Já erramos muito esperando que as ideologias nos salvassem. Não salvaram e não salvarão. As ideologias dividem os homens; promovem antagonismos; não contribuem para a conciliação da espécie e alimentam a ignorância de seus seguidores, pois os impedem de pensar e praticar o que pensam com independência intelectual. Uma vez filiado a uma corrente ideológica, é quase impossível dela divergir — perde-se o chão e os possíveis amigos.

Todo homem, toda mulher possui o poder de pensar e o dom de intuir. E tanto mais terá, na medida em que praticar tais virtudes de forma corriqueira, habitual, frequente. Não há nenhum mistério nisso. Nenhum conhecimento transcendental ou cabalístico. É a vida. Equivalente ao desenvolvimento de uma habilidade motora, tão comum nos atletas bem-sucedidos. Se eles conseguem, por quê não cada um de nós, com nossos cinco sentidos, a intuição e o poder de raciocinar?


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil