"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo II

Constituo um infinito, construo uma ilusão, tendo a dizer, de novo pensando nos passos que me trouxeram até aqui, pois não estou longe do instante da partida, o do transe entre o dentro e o fora o fora e o dentro.

Talvez ainda possa remontá-los, os passos — quem sabe? ou quem sabe seja esta a minha sina, a do eterno retorno? —, para que não se percam de vez as delicadas tramas que sustentam a insensatez deste frágil equilíbrio. E, no entanto, não sou mais um agente da contemplação, um submetido ao abismo. Tenho o ímpeto de ir. Sinto a dor de ser. Devo me esforçar a isso, se desejo mesmo o que espero.

Quero o que ali está, abatido, cercado por seus iguais. Se eles comem sofregamente pedaços arrancados da coisa-móvel agora inerte, e parecem satisfeitos — porque me olham de soslaio e se movimentam com reprovação e ameaça quando me aproximo —, eu, ente-turbilhão, também posso fazê-lo. Quero. Tenho as ferramentas adequadas. Sou ágil, sou forte e quero. Mais: sinto que preciso

Afastem-se! Deixem-me ter um pedaço disso… Afastem-se! Já viram do que sou capaz, afastem-se! Querem meu grito? Pois aí o tens! Grito! Bato! Bato! Rasgo! Bato! Grito mais alto! Este grito lhes diz: afastem-se! Isso, obedeçam! Afastem-se! Não os quero por perto! Esta coisa-móvel-agora-inerte é só minha! Minha! Vão para longe!

Quero este pedaço… Como, engulo esta coisa quente, encharcada deste líquido espesso, atraente, aromado, que molha e se adere a mim; irresistível… Sim, é bom comer pedaços da coisa-móvel-agora-inerte. Conforta meu corpo, aquieta meu ânimo. É bom! Sim! Sim! Sim! Sim! Sinto-me saciado.

Venham, meus-iguais; cheguem-se para cá, aproximem-se! Vejam isto, arranquem e comam pedaços! Fartem-se! Isso, assim! Mais, comam mais! Não se importem com aqueles lá; eu os afastei, espantei. Eles estão longe e só virão quando sairmos daqui. É bom! Gostam? Estão satisfeitos? Agora sabemos o quanto isto é bom. Precisamos disto…

O grande-círculo-cegante ao alto vai se ausentando. Eu e meus-iguais estamos quietos, encostados por aqui, por ali e mais adiante; sonolentos. Isto nunca nos aconteceu assim — ficarmos fartos, pesados, bastados.

Eu, ente-turbilhão, permaneço excitado. Ainda penso nos acontecimentos de antes, quando comemos grandes pedaços, muitos pedaços encharcados e quentes, arrancados da coisa-móvel-lá-inerte. Sinto que foi bom e que precisamos disto. Precisamos porque ficamos mais fortes, mais capazes após comê-los.

A coisa-móvel-quando-inerte é bem diferente das sobras de coisas-abandonadas-imóveis largadas por aqueles-outros; coisas que cheiram diferente, que nos põem no chão e nos fazem urrar de dor depois que, por indolência, as comemos.

Alerta! Gritos vêm dali! Vamos! Venham todos ver o que está acontecendo… Vejo um-meu-igual lá longe, inerte, abatido, cercado por aqueles que antes combati. Afastem-se! Não queremos vocês aqui! São muitos, agora, aqueles-que-antes-combati. Eles não me atendem; parece que nem me ouvem. Pedaços do meu-igual-agora-inerte são comidos pelos-que-antes-combati. Nada posso fazer. Nada podemos fazer, nada. Nada.

Meus-iguais se afastam, mas alguns relutam. Estão famintos; querem pedaços do nosso-igual-inerte. Eu, ente-turbilhão, também quero, pois o cheiro que vem de lá me atrai, é o mesmo de antes. Sinto fome. Tenho o desejo, mas não posso me aproximar. Os-que-antes-combati agora são muitos e eu estou quase só; apenas uns poucos dos meus-iguais me acompanham, mas aqueles-lá são
muitos…

A grande-bola-de-luz-amigável agora domina o alto, salpicando o imenso vazio de pontos luminosos piscantes. Os ruídos se acalmam. Tudo o que era movimento cessa…

Calor. Zumbido. Ruídos inúmeros. A luz-cegante voltou e o que se encontra de fora, à minha volta, está desperto. Vejo ao longe os restos do meu-igual-ali-inerte, agora atacado por todo gênero de coisas-móveis, de todos os tipos e tamanhos: coisas que correm, coisas que flutuam no vazio, coisas que gritam, coisas que zoam.

Um caos impera e nos afasta daqui, tangidos pelo cheiro, agora rejeitado, vindo dos restos do meu-igual-lá-inerte. Caminhamos rumo ao grande-líquido, pois sentimos sede no fora que podemos ali saciar. Mas também percebemos sede no dentro, e esta não podemos satisfazer, porque não sabemos de onde vem, de que falta é feita, de que presença carece.

Ao meu lado, um pouco mais atrás, vai essa coisa-igual-a-mim-diferente, com cavidade ciosa embaixo, à qual nos unimos com gozo e de onde saiu meu-igual-lá-inerte. Seu corpo está inclinado para a frente. Sua cabeça, solta, oscila compassada para os lados. Sou simpático a tal movimento. Sua força sutil toca em mim o quê? O que me cabe expressar?

Sim, essa coisa-igual-diferente está mais quieta do que todos os nossos-iguais, mesmo das demais-diferentes. Ficamos assim, percebo, quando mais sentimos a sede e a fome de dentro; este é o tormento do ente-turbilhão… Quantos outros percebem?

O grande-círculo-cegante ao-alto se ausenta e a bola-de-luz-amigável ressurge. Isto acontece vezes seguidas, seguidas vezes, num sem fim que intriga. Sinto nisto um ciclo, uma repetição, igual aos desejos do fora e aos do dentro, que se apossam da minha vontade, regularmente.

Da mesma forma que sou compelido a saciar as fomes e as sedes que vêm do fora e se instalam no dentro; do mesmo modo que sou instigado a preencher as lacunas do dentro, que apenas percebo, igualmente me submeto a esse ciclo de luzes cegante e amigável, que revela e esconde as coisas móveis e imóveis do fora, carreando para o dentro toda sorte de busca por esclarecimento.

Sobre os ciclos do dentro, eu, ente-turbilhão, não tenho domínio; sou dominado, como que jogado contra pedras obtusas e seixos cortantes, atado até que outros estímulos se imponham. Sobre as coisas-externas-a-mim possuo poderes; me apodero, ou penso fazê-lo. As coisas iguais-a-mim e as coisas iguais-a-mim-diferentes agora são muitas, de diversos tamanhos e modos de agir. Todas têm sedes, todas têm fomes, todas se entreolham inquiridoras, desesperadamente inquiridoras — entes-turbilhão.

Meu-igual-saído-de-mim estava ao meu lado, antes, mas desapareceu entre as coisas-imóveis, e depois ouvi gritos, muitos gritos e um uivo… Quando me aproximei, chamado por meu-igual-condutor, vi que o-saído-de-mim estava largado, tal qual uma coisa-imóvel, e que todos comiam pedaços de si, dele, arrancados ou mordidos com força. Faminta, também quis comer, e seria bom porque tenho de preencher minha fome de fora.

Mas mantive-me distante, afastada por aqueles-lá, esperando que o-saído-de-mim retornasse para o meu lado com seus pedaços de novo inteiros. Esperei, esperei, e tudo afinal ficou quieto.

Permaneci assim, olhando a luz-amigável no alto, sempre esperando, até a chegada da dramática luz-cegante. E o-saído-de-mim não voltou; ficou lá, inerte, sem todos os seus pedaços, agora coberto por muitas coisas-móveis-pequenas; muitas.

Não compreendo. Sinto que me falta um grande pedaço no dentro. Não compreendo, mas me falta um pedaço no dentro… Um pedaço do tamanho do-saído-de-mim-inerte-lá-fora. Sinto dentro imensa fome-sede.

[As bases da evolução biológica das espécies foram legitimadas com a publicação de “A Origem das Espécies”, por Charles Darwin (1809-1882), em 1859, mas a maioria dos conhecimentos que se tem hoje sobre essa evolução surgiu apenas ao longo do séc. XX e o assunto está longe de ter se esgotado. Um oceano de questões ainda restam a serem elucidadas, dentre elas o desenvolvimento da empatia, que se sabe decorre da mudança da morfologia do cérebro, com o aumento do que os cientistas chamam de capacidade de se colocar no lugar do outro, entender sua situação, perceber seus sentimentos; a plasticidade comportamental (capacidade de responder de formas diferentes em situações distintas, ou de diferentes formas dentro de uma mesma situação); e a diferenciação física e emocional do macho e fêmea de nossa espécie, denominada Dismorfismo Sexual, que analisa, por exemplo, as razões que sustentaram o crescente vínculo entre casais, atribuído aparentemente à exigência de maior investimento parental devido à prolongada infância dos filhos”, segundo Lovejoy, C. Owen, em “Reexamining Human Origins in Light of Ardipithecus ramidus”.]