"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo XII

Acabo de ler a notícia de que duas mulheres jovens, de boa aparência — segundo testemunha —, aproximaram-se de um morador de rua e lhe pediram para queimar o saco que carregavam, na fogueira improvisada que o aquecia ao relento; disseram tratar-se de lixo que precisavam descartar. Atearam fogo ao pacote e foram embora. Impressionado com o forte odor, o homem remexeu o saco em combustão e descobriu que ali havia uma criança recém-nascida.

Quê civilização é esta? Refiro-me a um fato ocorrido na noite do dia 12 de agosto de 2012, domingo, na cidade de Santos, São Paulo, Brasil. Não aconteceu numa zona de conflito armado, onde as pessoas vivem no limite da desumanidade. Não, Santos é uma cidade de classe média, de pessoas que frequentam escolas; e que tem como divisa o lema “Patriam Charitatem et Libertatem Docui” (“À Pátria ensinei a caridade e a liberdade”)… Não se põe deliberadamente fogo no corpo de ninguém, ainda mais de uma criança.

Outra notícia nos informa que no dia 21 de agosto do mesmo ano, uma menina de 16 anos, de família cristã e com incapacidade mental, foi presa no Paquistão acusada de blasfêmia por ter queimado páginas do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, sabendo-se que o fez porque precisava de fogo para cozinhar.

Esses dois episódios — a violência praticada pelo indivíduo, ainda que relativa a um feto resultante de aborto, e aquela perpetrada em nome de uma religião, ainda que imersa num ambiente de radical fé religiosa —, dentre tantos outros que despontam do nosso cotidiano, são frutos da mesma doença desta civilização: a perda do bom senso, o rompimento dos limites da humanidade, a covardia, a intolerância.

Contra isso, indignação já não basta. Há hoje uma indústria, um marketing da indignação. Indignados transformam-se, instantaneamente, em personagens consumíveis pelo mercado. Ganham eleições. Viram parlamentares, prefeitos, governadores, presidentes! São frutos das tais novas ferramentas produzidas pela ‘revolução burguesa’, capazes de amplificar e fortalecer os desvios fundadores.

Vejam as entrevistas que se fazem na televisão com os indignados de todos os cantos. Percebe-se a existência de uma fórmula destinada a provocar comoção nas pessoas; e essas pessoas provocadas, por sua vez, também já desenvolveram padrões patéticos de reações, repetindo frases e gestos de efeito aprendidos em novelas e em outras ‘reportagens’ semelhantes, comportando-se, enfim, com total indignidade frente as tragédias de que são protagonistas. Também aqui há exceções, ilhas cada vez mais isoladas de exceções, mas isto é o que em geral ocorre em todos os países, inclusive nos hegemônicos.

Enquanto o crescimento populacional se mantiver ascendente e as relações humanas cultivarem os mesmos paradigmas errôneos estabelecidos no passado, o círculo vicioso em que estamos não será interrompido. Ladislau Dowbor, em seu livro “O Capitalismo se desloca” (pode ser baixado aqui: http://dowbor.org/wp-content/uploads/2020/05/Dowbor-O-capitalismo-se-desloca-Edicoes-SescSP-2020.pdf), esclarece que se dividirmos o PIB mundial, da ordem de 85 trilhões de dólares, pela população do planeta (cerca de 7,8 bilhões de pessoas), “constatamos que o que hoje produzimos pode assegurar 3.000 dólares por mês por família de quatro pessoas”.

Ou seja, o mal maior não é o crescimento populacional, mas a ganância e o egoísmo que sustentam a criminosa distribuição de renda. Assim, a violência e o sofrimento continuarão a se banalizar (números recentes indicam que temos 850 milhões de pessoas passando fome, das quais mais de 150 milhões são crianças, “ainda que seja produzido no mundo mais de um quilo de cereais por pessoa por dia”, lembra Dowbor), amplificados pelas modernas tecnologias que agregam ao problema central — os desvios originais do processo civilizatório — o aumento da velocidade das comunicações, quase extinguindo o tempo imprescindível para se amadurecer o novo. Inclusive a tragédia nova.

Ao contrário, o novo é sempre a novidade que está por vir. Observa-se isto, claramente, na transmissão de eventos esportivos ao vivo, quando, ao se aproximar o final o narrador já começa a chamar a atenção para o confronto do dia seguinte, dizendo que aquele sim, o de amanhã, é que será magnífico.

É claro que há o componente comercial justificando a chamada ao próximo evento — e para que haja maior eficácia, o narrador capitaliza os momentos de máxima atenção das pessoas. Mas a lógica que está por trás dessa prática é a de tratar o novo como um mero ativo econômico, a mesma que orienta a obsolescência programada, um dos elementos capitais do nosso tempo.

O resultado desse modelo de relação social é que se passou a festejar a facilitação das interações virtualizadas, aceitando-a como coisa bastante e suficiente, embora saibamos que não é esta forma de vida que determina a nossa existência aqui e agora.

Germinou-se um neo golem destinado a preencher todas as nossas lacunas e complexidades, mas que é insuficiente, pois seu universo se constitui de verdades precárias, frivolidades, crenças de encomenda — mais ainda do que as suas matrizes religiosas milenares e os arremedos contemporâneos ditos pentecostais.

E depois, não obstante a vigência dessa esquizofrenia social, fingimos não entender por que se multiplicam as doenças do físico e do espírito. Essas pandemias não se controlam apenas com remédios, drogas, substitutivos materiais ou discursos, nem com simples exemplos, por mais afáveis e santificados que sejam os portadores da boa-nova.

Os alimentos das nossas frustrações, inadequações e incoerências são a ignorância, o conformismo, a preguiça e, até agora — mais de cinco mil anos após o homem ter inventado a escrita e a roda, dois dos marcos da evolução da espécie animal —, a nossa incapacidade de formular e praticar um contrato social menos egoísta, mas que também não seja apenas generoso, e sim capaz de manter acesa a chama do humanismo e a valorização do indivíduo.

Digo isto porque a generosidade, por ser uma virtude individualizada, não estimula a sua prática coletiva. Expõe, tão somente, um exemplo digno de louvor, merecedor de aplausos e de recompensas, o que é pouco para a construção de uma cultura.

Ainda está por ser edificada a doutrina que coloca o homem-animal, sem restrições de qualquer ordem, no centro da vida; aquela que definirá sua real presença no universo. Em nosso errático processo civilizatório, graças ao pensamento livre e poderoso de alguns seres de fé cósmica, muito se sabe hoje a respeito do que é bom e necessário para o avanço da espécie.

A maioria desses conhecimentos, no entanto, circunscreve-se à Academia ou a pequenos comitês; carece de aplicação extensiva e continuada, certamente porque tal prática não interessa ao triunvirato construído pelo poder da força — Religião, Estado, Capital. Seus raros defensores são tratados como clowns e, na luta pela sobrevivência, renunciam ao debate apaixonado, à defesa metódica de suas crenças.

Quando muito, são vistos por aí, a discorrer sobre profundas verdades, mas sem assumi-las por inteiro. Comportam-se como se falassem do sexo dos anjos, acovardados, destituídos de atitude (e isso bem pode ser uma autocrítica...). Enquanto isto, fortalece-se a volubilidade nas relações entre as pessoas e se expande — mais uma vez e sempre! — o individualismo.

Mas, afinal, como poderia ser diferente, dada a complexidade do mundo e da vida no grupo e nas nações? Não pode ser diferente se, neste caso, perguntarmos apenas o como(?). Este nos paralisa, porque envolve interesses particularizados, conveniências, etc.

Poderá ser diferente se se perguntar também o por quê. E o motivo é que sempre deveria ter sido de outra forma. Porque cada homem é único. Porque a busca da felicidade possível é uma tarefa individual e intransferível. Porque, per se, os ganhos materiais são insatisfatórios. Porque o conhecimento é o maior valor do homem e mais conhecimento é mais valor adquirido. Porque privar qualquer membro da espécie da oportunidade de realizar seus potenciais é cometer um crime de lesa-humanidade. Esse como(?) decorrerá da aceitação dessas evidências.

Não atender a essas questões de forma satisfatória, ou melhor, ignorar as boas respostas já formuladas pelos grandes pensadores, desqualificando-as como vãs, foi o caminho equivocado que tomamos e no qual nos temos mantido. É o que está nos atando a esta rota de desastre, apesar dos festejos que ocorrem aqui e ali. Desastre que ganha contornos patéticos na medida em que somos nós mesmos que abdicamos de mudar de rumo, conformando-nos com essa estrutura de dominação em troca de migalhas consumistas.

Sempre se pergunta pela saída, pela solução, pelo quê fazer(?). Pois ela em tese existe e, como já disse, está ao alcance da maioria das pessoas que possuem acesso aos meios de produção do conhecimento, em especial neste nosso tempo de bancos de dados online com acervo em expansão.

A verdadeira Torre de Babel não é a da multiplicidade de línguas. Estas são (apenas) instrumentos desenvolvidos pelos grupos humanos para comunicar sentimentos, em consonância com o seu ambiente. Podem ser muitas e muitas podem ser pobres de conceitos e, por consequência, de léxico; incapazes de atingir suas metas, o que contribui de forma decisiva para o desaparecimento dos grupos que as utilizam.

O que importa não é a variedade de línguas, mas as percepções que elas são capazes de exprimir, e que são anteriores a qualquer linguagem; essas impressões adquiridas a partir dos sentidos sempre estarão lá, gerando seus efeitos sobre o corpo e o espírito. O sentimento de injustiça, por exemplo, independe do domínio que se possa ter de qualquer forma de expressá-lo.

A injustiça desarma, desestrutura, fere o âmago da pessoa vitimada, que reage física e espiritualmente, mas em verdade a somatiza, como se se impusesse um sacrifício expiatório, um autoimposto castigo independente da sua vontade. E tanto mais reagirá tal pessoa, seu espírito e seu corpo, na medida em que não encontrar os meios para expressar seus sentimentos.

A Babel real, pois, é aquela construída pela banalização e o desmerecimento de tudo: da violência, da sexualidade, da posse desmedida de bens materiais, da superoferta de informações descategorizadas ou mal organizadas, da manipulação do discurso, da prática e da posse do que quer que seja apenas porque está ao nosso alcance. Esse é o cenário deste nosso tempo de comunicação planetária por intermédio de redes sociais plenamente monitoradas e codificadas/decodificadas a serviço dos interesses da tríade Religião-Estado-Capital.

Desperdício é outro caráter criminoso do nosso tempo; irresponsabilidade é a tônica do comportamento das pessoas movidas pelo descompromisso. Ou seja, nossas ações são errôneas porque não tomamos posse da cultura do humanismo. Sabemos da sua existência e o quanto essa cultura é valiosa para o progresso da espécie, mas dela não nos apoderamos porque a prática da indolência nos é conveniente; exige menos, quase nada, do nosso arbítrio.

Agir socialmente com independência e responsabilidade dá trabalho. Principalmente quando vivemos numa sociedade que se construiu pela dominação e sujeitamento do outro; em que uns poucos mandam e os demais obedecem, ainda que, alega-se, submetendo-se a regras democráticas. Não nos deixemos enganar, repito: toda democracia ora em uso é circunscrita, exclusiva de determinados atores formados e informados de maneira desigual e insuficiente. Trata-se apenas, como alguém já disse, de belo vocábulo.

No que difere a democracia de hoje, que tantos festejam, das relações sociais havidas no passado mais remoto do homem-animal? Se naquele período os frutos decorrentes do exercício do poder cabiam à elite constituída a partir do poder da força, em nosso tempo não é diferente: os ganhos continuam exclusivos dos herdeiros dessa nata de cidadãos, com o agravo de que agora somos parte de um teatro em cena aberta, partícipes involuntários de um simulacro de ‘governo do povo’ encenado a cada ano eleitoral.

Sociedade… Isto que fizemos e temos é de fato uma sociedade, um ajuntamento de interesses em prol do benefício comum? O problema é como se conceitua o adjetivo ‘comum’, como os beneficiários dessa sociedade selecionam seus membros, franqueiam-lhe os meios para o real aproveitamento dos tais benefícios. O completo desastre em que o Brasil se encontra mergulhado, neste momento (final da segunda década do século XXI), deve-se, em grande parte, a uma medida baixada pela ditadura militar no final de 1969, por iniciativa de um sujeito chamado Jarbas Passarinho, então à frente do Ministério da Educação.

Tal decisão foi a retirada do estudo da Filosofia do Ensino Médio, sob o torpe argumento de que assim se impediria a promoção da ideologia comunista. Igualzinho ao que se pretende agora, com a história da “escola sem partido”. Lembro-me de ver o mestre João Itagiba, meu professor de Filosofia, quase discursando indignado no pátio do Colégio Canadá (Santos, São Paulo), no final dos anos 60, estando o Brasil sob ditadura, prevendo um futuro negro para o país, ao tomar conhecimento daquela decisão então anunciada.

O resultado desse crime é que nas últimas quatro décadas o Brasil formou ao menos duas gerações de indivíduos alienados, inaptos para questionar as injustiças do mundo, ignorantes dos princípios humanistas (o melhor que esta civilização pôde formular, até agora), incapazes de interpretar os fatos da vida além da dicotomia preto ou branco.

São esses e essas ignorantes togados(as), dominados pela cultura do egoísmo e do individualismo, treinados para o elogio da meritocracia e para a compreensão rasa da realidade, são esses e essas que assumiram o poder de definir (ao menos por enquanto) o nosso futuro imediato.

Levantamento realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias, em 2013, revelou que a média de idade dos juízes, desembargadores e ministros brasileiros é de 45 anos; e que na Justiça Federal estão os juízes mais jovens, com 42 anos (em média), tendo começado suas carreiras aos 31,6 anos (homens) e 30,7 anos (mulheres). O mesmo perfil pode ser projetado para os integrantes dos Ministérios Públicos estadual e federal.

Alguém poderá perguntar: E de que adianta sabermos a origem do mal que nos consome — “O ovo da serpente”, como definiu o cineasta Ingmar Bergman (1918-2007) —, se a desgraça está feita? Primeiramente, sempre é necessário conhecer a gênese do inimigo, para que as novas gerações errem menos. Em segundo lugar, é preciso entender o modelo de pensamento, a estrutura mental do inimigo, para que possamos confrontá-lo com eficácia, hoje.

A propósito disso, destaco a condenação do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva pela pretensa propriedade criminosa de um apartamento na cidade do Guarujá, litoral de São Paulo, e indico a leitura do livro-análise do filósofo Euclides Mance (“Falácias de Moro”, que pode ser baixado neste link: http://solidarius.com.br/mance/biblioteca/livro_falacias_de_moro.pdf
), que revela a ignorância, a maldade e os crimes de seu algoz, o então juiz federal Sérgio Moro (e, por consequência, de seus procuradores e delegados associados, bem como de seus imitadores no Judiciário).

O que difere o comportamento desumano dos integrantes desse sistema de justiça institucionalizado pelo Estado, daquele que moveu as jovens mulheres que jogarem o feto numa fogueira, em pleno século XXI; ou dos religiosos que sacrificaram uma criança com incapacidade mental porque, em busca da sobrevivência, ela utilizou as páginas de um livro sagrado como combustível? Cada qual haverá de ter suas justificativas, mas nenhum dos protagonistas desses crimes nos convencerá de que foram éticos e justos.


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil