"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo XV

Diz-se que o nosso físico é resultado daquilo que comemos, bem como a nossa saúde e estado de humor. Do mesmo modo, a qualidade da nossa humanidade resultará da variedade das experiências que acumulamos, das lições que formos capazes de extrair dos episódios da nossa existência e de quanto conseguiremos nos desvencilhar do pensamento da manada. Por isso, não há obstáculos intransponíveis. Há vontade, decisão, ação. E vontade, novamente. Sempre e sempre a vontade de fazer.

Algumas pessoas chamam a isso de perseverança, conferindo-lhe atributos mágicos ou heroicos. Não nos deixemos enganar: perseverar é uma qualidade humana; todos nós a possuímos e devemos utilizá-la — devemos, repito — a todo instante de nossa existência.

Não se aprende perseverança, pratica-se. E quanto mais a praticamos, mais hábeis e fortes nos tornamos. Esta, certamente, deveria ter sido outra das lições ensinadas nos primeiros bancos escolares das crianças que frequentaram as primeiras escolas dos primórdios desta nossa civilização. Não foi assim e vem piorando, o que é uma tragédia.

Minha companheira Sílvia, uma apaixonada pela educação infantil, punha árias de ópera para seus alunos de 4 a 5 anos. Invariavelmente, eles se calavam e escutavam com inusitada atenção; com frequência choravam ao som de Pavarotti interpretando Nessun Dorma. Como se explica isso? Eram crianças de uma favela, sem qualquer formação musical, vivendo em condições precárias… Por que choravam, quando deveriam realmente chorar?

Choravam porque Puccini, um ser livre, perseverante e humanamente poderoso de seu tempo tocou, com essa composição, o nervo da alma universal, produzindo aquele sentimento que independe do intelecto para se manifestar. Nesse caso, o som é linguagem suficiente, dispensando explicações.

Nada apagará da pele e dos músculos dessas crianças, desde o ponto em que esta houver se instalado em seu cérebro, a sensação daqueles momentos de enlevo. Suas vidas terão sido diferentes da vida que teriam, se não houvessem passado por aquela experiência. Sobre isso nos dizem as lembranças que guardamos de nossa própria infância, aquelas que nos vêm à memória de forma recorrente, contribuindo para configurar nosso caráter.

Essa iniciativa isolada de uma professora de uma escola da periferia de Santos, fortalecida pelo amor à ópera herdado de seus avós, é insuficiente para mudar o curso largo da História. É uma gota no oceano de indiferença, mas também é mais uma prova de que há coisas certas a fazer. E que é possível fazer as coisas certas. E que elas poderiam ser feitas de forma sistemática, institucionalizada.

A existência horizontal, mediana, é insuportável. Atravessar 40, 60 anos sem sonhar é uma forma de desespero e caminho para doenças. Todo mundo tem o dever de viajar para onde quiser e puder; frequentar diferentes estados emocionais; sentir-se capaz de, às vezes, fazer acontecer, seja lá o que for — ser como são as crianças é o segredo: sempre com os pés em dois mundos, simultaneamente agora. Pergunte a um inovador onde estão as raízes de suas descobertas e acertos. Se ele for sincero, dirá que estão na infância, nos cantos mais íntimos de sua memória.

Quando penso nesse estado ideal de espírito, a infância, vêm-me à ideia os carros flex, cujos motores funcionam com qualquer dosagem de etanol e gasolina — adaptam-se à mistura presente no tanque de armazenamento e fazem o que se espera de um automóvel, independente de quanto de um ou outro combustível tiver sido colocado. O modo mais perfeito de viver seria, para mim, este que transita entre a realidade e o sonho, em dosagens variáveis, cambiantes e sempre estimuladoras.

De certa maneira, é assim que nos comportamos todos, afinal, pois não há dúvida de que a vida em sociedade é um teatro permanente, ainda que canhestro, porque somos incapazes de nos divertir com ele. Ao contrário das crianças, que, por não saberem ainda racionalizar, levam seus dias na inconstância produzida pelos estímulos que recebem, para o nosso desespero e, quem sabe, inveja. Não por acaso perdemos esse encanto na pré-adolescência, fase da vida em que passamos a ter opiniões, sendo capazes de defendê-las com argumentos que vão além de gritos e lamúrias.

Me espanta o quanto se confunde “inveja” com “ciúme”. Diz-se, comumente, que tal ou qual atitude foi movida por ciúme, quando se quer dizer inveja. De tão corriqueiro é esse erro, cometido por pessoas tão claramente instruídas, que só posso atribuí-lo ao medo que se tem da palavra “inveja”; de fato, um dos mais sórdidos sentimentos cultivados pelo homem-animal. É por isso, decerto, que se evita o termo, substituindo-o por ciúme, que tem sua conotação vinculada a apenas, digamos assim, uma fraqueza passiva de caráter, digna até de compaixão, e não àquela fraqueza ativa, corrosiva e traiçoeira sugerida pela inveja.

A fuga da inveja, no entanto, não é um episódio fortuito do comportamento geral das pessoas. Ela resulta da prática da dissimulação que, por força das relações errôneas estabelecidas nos primeiros momentos da História, consolidou-se como uma regra aceitável e até estimulada. Como contramedida, o mesmo contrato social desenvolveu normas de etiqueta que nos ‘ensinam’ a harmonizar potenciais conflitos através do uso — veja só! — de uma hipocrisia consentida.

É a doença nutrindo a doença, a realimentação dos desvios de caráter responsáveis pela tragédia destes dias. Este, enfim, é o resultado do emaranhado de impropriedades a que chamamos de relações sociais:
o fortalecimento da trama imperfeita que tentamos remendar, continuamente, como uma Penélope arrevesada que tece não para enganar, mas para enganar-se. Este é o nó górdio da nossa espécie, a exigir uma epifania coletiva que nos remetesse a uma nova chance de fazer direito. Como se isso fosse possível!

Em largos períodos da infância, todos recorremos a arquétipos. É nesse tempo que consolidamos o personagem que viremos a ser pelo resto da vida, aquele que o espelho nos mostra e nós, tantas vezes, desacreditamos de que seja real. Para isso contribuem as interações estabelecidas com o nosso ambiente e seus ocupantes.

Lembro-me de eventos capitais em que estive envolvido entre os cinco e dez anos de idade, quando estava entregue ao meu processo de socialização. Tais situações cristalizaram-se em minha memória, conformando o modo como eu passaria a agir dali para a frente, em circunstâncias similares, e definindo a pessoa em que me tornei.

Analisando-me hoje, tenho a convicção de que sou ainda aquele menino; ou aqueles meninos que foram se sobrepondo, à medida que eu acumulava as experiências que tive, especialmente aquelas que mais exigiram das minhas incipientes emoções. Mas, acredite, uma história de vida não é tão mutável como alguns propõem — por exemplo: uma vez filho-da-puta, para sempre filho-da-puta, pois há a memória genética e as marcas deixadas ainda nas fases uterina e imediatamente pós-uterina, além daquelas herdadas do
animal-homem.

Não é que a vida de cada um esteja predestinada a ser desta ou daquela forma, mas, sim, que as características que recebemos de nossos ascendentes, confrontadas com o ambiente familiar e com os embates travados pela nossa socialização determinam a constituição de quem passamos a ser.

Mudar-se, portanto, é um processo primeiro de autoconhecimento, de compreensão das nossas fraquezas. Exige que se queira muito, decididamente, levá-lo adiante; e entenda de forma clara que isto demandará um esforço de vida. Tenho como exemplo a condição de um amigo, que passou pelo trauma do alcoolismo e, após superá-lo, transformou-se em guardião da sua sobriedade, como de resto o são todos, nestes casos. A cada dia ele precisa reafirmar, diante do espelho, que está pronto para atravessar mais uma jornada sóbrio. Enquanto esse amigo cumprir esse seu trato íntimo, ele, sem dúvida, será um dos melhores dentre todos nós, porque terá nas mãos as rédeas do processo. Esse amigo experimentou sua particular epifania.

Após atravessarmos o turbilhão químico da adolescência — que pouco acrescenta ao nosso caráter, embora deixe marcas no físico —, o que nos resta é o eterno retorno aos sonhos da infância, lutando, concomitantemente, contra nossos pesadelos, os herdados e os adquiridos.

Quem assim age, avança e pode construir um futuro até brilhante; pode, repito, pois se existe uma lei incontornável da natureza humana esta é a do livre arbítrio oferecido àqueles que se dispõem a enfrentá-lo. Aos que não avançam, o que resta é compensar sua monótona existência, e incapacidade de aproveitar um dia de sol sobre o planeta, valendo-se da muleta psicológica da construção de mitos, da hipervalorização de falsas atitudes, da transformação de banalidades em talismãs.

Tenho para mim, repito, que as religiões — veja bem, as religiões, não o autoconvencimento da existência do transcendente, pois a vida e todas as coisas que nos cercam, ou que estão além e aquém de nós, são demais para serem explicadas —, as religiões, repito, nasceram dessa fissura no caráter humano.

Alimentam-se do medo atávico do desconhecido e contribuem decisivamente para a perpetuação do grande sistema em que se sustentam os mercados de consumo de coisas e símbolos. Servem a essa superestrutura e dela se beneficiam alegremente, com seus cânones, cânticos e louvores. Se vítimas houverem — e elas existem, aos bilhões, tombadas pelos caminhos da História —, “vamos salvá-las”, prometerão alguns; “é tempo de defendê-las”, conclamarão outros; “paciência”, dirão muitos, todos prontos para recolher o dízimo, o óbolo, o sangue, a cota parte, o juro, o imposto, a mais valia, o lucro ou que nome se dê ou venha a dar para o fruto pendido
da árvore da dependência-ignorância.

Esta é a dinâmica das relações entre as pessoas e suas instituições, o modo como se constitui a rede/teia social, fortalecendo seus nós/interseções e comprometendo-nos uns aos outros. Esqueçam Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704). Esqueçam Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Todo o esforço intelectual que levou à formulação dos princípios propostos em ‘Leviatã’ (1675), “Segundo Tratado sobre o Governo Civil” (1682) e “Do Contrato Social” (1762), pilares reguladores das sociedades-estados constituídas nos séculos XV e XVI, foi superado neste século XXI pelos interesses do mercado, esse poder invisível, difuso, impessoal, impenetrável e, no entanto, ‘acolhedor’.

A Justiça, seus códigos, liturgias e agentes são hoje apenas instrumentos/ferramentas a serviço de uma única causa: a preservação do status do patronato (na terminologia utilizada por Darcy Ribeiro, 1922-1997), mas num contexto planetário, pois estamos falando agora de relações globais, nas quais sempre se admitem novos sócios, ou seja, os neopatrões eventualmente emergidos dos vastos grupos situados nas demais camadas da estratificação social.

Que não se espere equidade de quem (e do que) não mais está a serviço da vontade geral, na visão de Rousseau. Isso (a instituição e as leis que a ela cabe aplicar) e esses (seus agentes executores) constituem tão-somente um palco para um teatro de cínicos ou ingênuos, regiamente auxiliado pelos mecanismos manipuladores a cargo dos meios corporativos de comunicação.

Não se desespere, por consequência, diante da apropriação do Estado pelas forças do atraso, como ocorre neste exato momento no Brasil. Esse Estado que aí está (e que está em todas as nações, para que fique bem claro) não serve ao interesse geral. Esse Estado (aqui e acolá) serve ao patronato, que pode ser ‘amável’, até ‘acolhedor’, mas com certeza é violento e vingativo quando contrariado.

Não se desespere, as coisas são como são. O melhor que se pode fazer para preservar a sanidade e continuar combativo é mapear o inimigo e vigiar os movimentos de seus tentáculos. De minha parte, quero (e preciso) acreditar que o imponderável possa jogar a favor da construção do amadurecimento.