"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo XVI

Heróis e modelos a seguir são algumas das grandes pragas da humanidade. Devemos desprezá-los, ou ao menos relativizá-los, porque são muletas para quem delas não precisa.

Sei que as massas clamam por guias, mas elas nunca estão certas. As massas concentram os sentimentos — e as ações — mais mesquinhas da espécie. Tudo o que é próprio do inconsciente coletivo e relativo aos nossos comportamentos primitivos explode nas massas. É desse lixo que brotam os heróis, os líderes, os ditadores.

Entendo o peso de ser autônomo. Compreendo o medo de pensar e decidir. Sei que é mais fácil seguir os manuais, acreditar nos caminhos traçados por outros, mesmo que as circunstâncias sejam diversas e demandem diferentes decisões.

E, no entanto — isto é quase uma ironia —, aqueles que as pessoas admiram, os seus ídolos, são os que ousaram contrariar as regras. Infelizmente, seus exemplos são transformados em novas regras, dissimulando-se a lição fundamental de que toda decisão é única e cabe ao homem-animal tomá-la no seu devido instante e lugar.

Domar os nossos fantasmas, sejam os coletivos ou aqueles adquiridos no caminhar de nossa própria história, é de fato uma tarefa para super-homens. Mas é isso mesmo o que se espera dos homens-animais — que sejam homens superiores, ou não se queixem de mais nada, aceitando o jugo, conformando-se com as concessões impostas pelos mais fortes, esquecendo essa história de democracia, igualdade de oportunidades, direitos universais, livre-arbítrio concedido.

O ser humano, embora animal, é incompatível com o ser conformado; o contrário disso é o que dá origem às esquizofrenias. Se você não nasceu com insuficiência genética, mental ou física, certamente terá plena capacidade para realizar o potencial da sua espécie. Necessitará do apoio do grupo — pois somos frágeis, especialmente na primeira etapa da vida —, mas poderá desde muito cedo traçar seu destino, cultivando o destemor, o respeito à vida, o uso da inteligência.

Desde que o animal-homem passou a se reproduzir compulsivamente, o caráter da espécie entrou em deterioração — uns chamam a isso, espertamente, de ‘pecado original’. A capacidade de nos multiplicarmos criou dezenas de bilhões de seres desnecessários (aos olhos de nossos algozes), desde o início da História. Desnecessários, mas não inúteis, porque afinal descobriram-se meios eficazes e crescentes de obter ganhos com essa abundância de humanos, consolidando-se a ideia de que nasce um trouxa a cada segundo. De outro modo, mais otimista, é quase como se a dinâmica da existência nos multiplicasse exatamente com o intento de, via seleção natural, dar-nos a chance de buscarmos saídas.

Arrisco um palpite: foi a partir de um acontecimento fortuito que se traçou o perfil do que hoje denominamos de civilização. Alguém (uma fêmea? um indivíduo mais fraco? uma criança?) deve ter notado (com inveja?) a satisfação dos demais integrantes do grupo ao presenciarem o brutamonte derrotar a fera que lhe serviria de almoço, e, de forma muito natural, certamente movido por incontrolável inspiração, tomou de uma lasca de madeira queimada e riscou as paredes da caverna, como que representando a memorável cena. Foi por isso admirado e continuou a fazê-lo, criando imitadores, seguidores, plagiários.

Se a descoberta da importância do fogo para a manutenção do grupo significou um momento de inflexão na história daqueles seres, revelando-lhes o seu valor para o tratamento de alimentos, bem como a possibilidade de com o fogo desenvolverem melhores ferramentas e rotinas — a sistematização daquilo que viria a se chamar de trabalho —, a constatação de que alguns dentre eles eram capazes de mostrar na pedra a imagem dos animais que desejavam comer certamente acendeu-lhes outros circuitos mentais. Estava inventado o simbolismo, o poder da abstração, a capacidade de estabelecer um vínculo entre o necessário, o desejável e o possível, trazendo junto a chama da ilusão e o germe da esperança.

Multiplicaram-se tais riscadores, que se transformaram em classe de pessoas, que passaram a ganhar o sustento com isso, sem os riscos lá de fora da caverna, cientes de que os brutamontes fariam o trabalho duro por eles e por eles seriam louvados para voltarem a fazê-lo, ad aeternum. Pouco importava que os brutamontes fossem aclamados líderes, chefes pela força; e que nem brutamontes fossem mais, porém detivessem o poder de recompensar verdadeiros brutamontes para fazerem o trabalho que precisava ser realizado em prol do sustento do grupo.

A terceirização faz parte do processo histórico, tanto quanto a quarteirização etc. A isto, um dia, passamos a chamar de tecido social. A sofisticação dessas relações não afetou negativamente os inspirados riscadores; ao contrário, os fortaleceu como entes autônomos. Ou seja, o que contava era que o produtor cultural existia, firmara seu lugar, diversificara seus talentos e funções na sociedade; codificara suas técnicas e se profissionalizara, como se diz. Não será por acaso que arte também quer dizer engenho e artista é sinônimo de astucioso.

Astucioso e fingidor (leiam “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa), pois soube se emancipar tanto dos brutamontes quanto de seus contratadores, desenvolvendo técnicas de relacionar-se com uns e com outros, pondo à prova os limites de sua liberdade para exprimir o mundo. O mecenato do novo-riquismo em busca de aceitação social, os investimentos incentivados e a lavagem de dinheiro, por exemplo, integram o mesmo caldeirão de interesses.

Os críticos disto e daquilo, idem, com suas colunas especializadas na mídia, subsidiadas por tantas outras atividades subparasitárias encarregadas da tarefa de promover a idolatria. Hoje não vivemos sem a arte, todas as artes (ainda que nem artes sejam), esse alimento do espírito, como se diz.

O festejado esportista, a bela modelo, o político carismático, o advogado mais brilhante, todos são filhos daquele riscador da caverna, o que pôs na pedra os signos do que era desejável em seu entorno. Neste momento, é bom esclarecer que os viajantes deste planeta dividem-se em duas únicas categorias: produtores de coisas e produtores de não-coisas. Os primeiros, que são a maioria, se apossam dos recursos da Terra em benefício próprio e/ou de seus grupos; os segundos elaboram as justificativas, mesmo quando pensam ou dizem combatê-las.

Um grande estelionatário é igualmente um artista, por quê não?! Nesse tempo que tenho/tive de vida topei com muitos corruptos e corrompidos, por força da minha profissão; e sempre me impressionou a afabilidade deles todos. Nunca, é verdade, conheci um tipo desses que me despertasse rejeição, nem antes nem depois de constatar seus verdadeiros propósitos.

Ao contrário do que se imagina, essas pessoas são extremamente envolventes, convincentes, até, se se deparam com um espírito desatento, o que somos quase todos. Por isso, praticam um tipo de arte, sim! Foi nesse sentido, do poder que tem a nossa espécie de produzir o mal, que se coloca a frase do compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007), para quem o ataque terrorista do 11 de Setembro de 2001, aos EUA, teria sido a maior obra de arte de todos os tempos.

A propósito, lembro-me de um colega de classe, quando eu tinha meus 10, 12 anos. O sujeito, tipo calado, mais velho do que eu, possuía absurda habilidade para desenhar. Olhava para qualquer coisa e a reproduzia na folha do caderno com seu lápis macio, de grafite importado, sempre bem apontado. As meninas, então, ganhavam retratos de corpo inteiro, em poses, olhares e gestos sensuais.

O cara era de um sucesso irritante. Não sei quantas por ele se apaixonaram, mas poderia ter tido todas, inclusive a bela professora, tal o poder que detinha na ponta do seu grafite. Invejava-lhe a habilidade. Surpreendi, algumas vezes, o ligeiro sorriso que lançava a nós, reles mortais, mesmo a mim, sobrinho do respeitado professor de Educação Física. Essa é (sempre) a vida dos verdadeiros espertos. Que Deus os guarde e a nós proteja.

Cria-se o mito, vende-se essa marca, cuida-se para que ela seja perpetuada e tenha garantido o seu valor de mercado — esta é a estratégia perfeita, gerida por quem aprende a manipular as expectativas das massas, ferramentas que têm sido aprimoradas no desfiar da nossa história sobre esta casca de terra e que até ganharam status de curso universitário, com mestrado e doutorado. O oposto de estar submetido ao supermercado da mitologia é a simbiose com o mito, a incorporação da persona criada, o inevitável mergulho no abismo da loucura.