O caminho da China é mais do mesmo

O tema desta análise não ajuda ninguém a pagar as contas, nem dá solução para qualquer dos incontáveis problemas e dificuldades que enfrentamos no cotidiano. Mas, do meu ponto de vista, é uma das questões fundamentais a se abordar neste exato momento, se não a mais importante, porque estamos (talvez) diante da derradeira oportunidade de construirmos uma História consequente e, através dela, virmos a ser merecedores de um futuro.

Sim, pois o que tivemos até agora, ao longo desses 300 a 400 mil anos que nos separam do advento do Homo sapiens, foi uma inequívoca evolução material utilitarista, uma desastrosa experiência de serenamento espiritual e, até por causa desses fracassos, uma frustrada tentativa de harmonização social.  

Tendo em mente essas constatações, a pergunta que proponho é a seguinte: A China vem, de fato, construindo as bases de uma Nova Ordem Mundial? Ou, melhor dizendo: O lançamento, em 2013, do programa "Iniciativa Cinturão e Rota" (Belt and Road Initiative), mais conhecido como "Nova Rota da Seda", inaugurou verdadeiramente um novo momento na História? Gostaria que fosse verdade, mas tenho dúvidas.

Primeiramente, é necessário entender do que se trata isto que se pretende mudar, a Velha Ordem  a qual prefiro denominar de o nosso modelo de civilização , esta(este) que se encontra em crise e começou a ser construída(o) não a partir da Idade Moderna, como alguns advogam; muito menos da Idade Contemporânea, como outros querem, mas que remonta a cinco ou seis mil anos, quando se deu a invenção da escrita sistematizada, na Mesopotâmia  conforme asseguram achados arqueológicos , o que propiciou o registro físico e a difusão organizada de conhecimentos, fatores determinantes para o avanço da cognição.

Esse modelo civilizacional esteve voltado, com prioridade e desde sempre, à busca e ao desenvolvimento de meios e modos de preservar nossa espécie, praticando aquilo que chamo de via do prosseguimento, traduzida na acima referida evolução material utilitarista impulsionada pelas ciências e tecnologias.

Animados pela ousadia cognitiva  que pode ser entendida como dádiva, mas também como maldição, conforme especula a sabedoria mais antiga , aprendemos a preservar e melhorar as condições de nossa existência física. E fomos tão bem sucedidos nessa tarefa, que deixamos de atentar para o abismo que se abria entre o desenvolvimento material e o aprimoramento espiritual da espécie humana.

Nesse aspecto (o da espiritualidade), o máximo que produzimos foi instituir religiões, delegando a uns poucos iluminados o direito de nos impor dogmas e determinar comportamentos fundamentados no medo. Mais recentemente, reféns que somos da aventura cientificista, instituímos técnicas e profissões destinadas a cuidar de nossas fraquezas psíquicas, igualmente transferindo a terceiros, e a drogas sintéticas ou naturais, as responsabilidades que são intransferivelmente nossas, de cada um de nós, no pleno domínio do nosso livre-arbítrio possível.

Ou seja, adotamos nada mais do que bengalas místicas, psicológicas, psicotrópicas, enquanto negligenciávamos o enfrentamento do mistério do existir. Pensamos, assim, estar circunscrevendo nossas debilidades emocionais a limites socialmente aceitáveis, quando na verdade apenas reprimíamos aquilo que nos recusávamos a admitir: a aceitação dos mistérios e a busca (possível, insisto) da compreensão do muito que ainda resta inexplicável. Fortalecemos nossas fraquezas (justificando-as), criamos frágeis couraças, e nos iludimos com esses subterfúgios. Foi isto o que fizemos, e temos feito, embora a imagem pareça contraditória.    

Se esta é a Ordem que a China pretende assumir, tomar posse  ou seja, se a ideia não é pôr abaixo esse modelo civilizacional , o caminho chinês está errado. Não será uma Nova Ordem o que sairá desse projeto, mas, de novo, um imenso fracasso; mais um a se juntar à cronologia histórica iniciada, até onde se sabe, com a experiência suméria, seguida, entre outras, da egípcia, da grega, da romana e, nos dias de hoje, desta construída pelos Estados Unidos da América, suas nações associadas e aquelas submetidas — o tal do Império do Ocidente.

E como fracassará o pretendido Império do Oriente liderado pela China? Fracassará repetindo o velho erro de dividir, ao invés de somar; fracassará ao negligenciar, mais uma vez, a tarefa primordial da liderança, que é a promoção do direito e dever de cada indivíduo exercitar seu livre-arbítrio possível; fracassará ao não estender a todos os seres dotados de racionalidade a necessidade de aprender, compreender e aceitar seu pertencimento cósmico, condição essencial da veracidade, da qualidade e da viabilidade de todo e qualquer projeto desse tipo.

Já se passaram cinco mil anos de construção civilizatória (ou muito mais, se dermos crédito à existência da Atlântida referida pelo grego Platão), e a espécie humana ainda não se deu conta daquilo que sempre esteve à vista de todos: o planeta é um só e tudo o que nele há, e habita, é exatamente o que o constitui, inclusive o Homo sapiens. Ou seja, não somos inimigos de nós mesmos; nem do ambiente em que estamos inseridos e ao qual pertencemos. E não somos inimigos porque não devemos, no sentido moral, mas porque não podemos ser, no sentido lógico, objetivo, racional, prático e  como tantos gostam de dizer  científico.

Está previamente desenhado o fracasso de mais essa tentativa de impor uma hegemonia voltada ao atendimento de interesses meramente nacionais, regionais ou geopolíticos. Alguns dirão que não se trata disso; que a intenção chinesa é a de promover a harmonia universal, principiando pela construção de um mundo multipolar, em substituição ao atual modelo centralizado numa única potência, os EUA. Talvez. Mas se esse é o objetivo, a formulação é insuficiente e sua aplicação começou errada, pois colocou a divisão adiante da soma, o confronto à frente da concórdia, o fato consumado antes do convencimento.

Não se busca um câmbio civilizacional dessa magnitude sem um ponto de partida corretamente estabelecido, claramente posto e inequivocamente praticado. Assim, a âncora desse projeto não poderia ter sido a busca prioritária da viabilização do desenvolvimento chinês, como em última análise se configura a "Iniciativa Cinturão e Rota", o carro-chefe dessa ideia. Posto desde o começo desta forma, atraiu e continuará atraindo ressentimentos, resistências, contraofensivas (como estamos vendo nos conflitos Rússia x OTAN/Ucrânia e Israel x Palestina).

Se a China quis lançar as bases de uma Nova Ordem Mundial  e penso que sua história milenar a credenciaria a isso , o primeiríssimo passo não deveria ter sido o econômico, mas o político. Agindo como agiu, e como tem agido, apenas repete o que tantas outras nações tentaram: a busca de uma prevalência moral, com inclinação hegemônica e superioridade étnica, ainda que auto declaradamente pacífica, suave, colaborativa.

A Terra não depende da China, dos Estados Unidos da América, da Rússia, do Brasil. São essas e todas as demais nações, e seus respectivos povos, que dependem deste minúsculo maravilhoso planeta. É para a Terra, que nos abriga e contém, que devemos olhar. É por ela que devemos viver. Porque ela, enquanto existir, é a nossa casa, o nosso abrigo, a razão de nossa existência.