"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo XIV

No final dos anos sessenta do século passado, depois de ter aprendido com o professor João Itagiba, no Colégio Canadá, que, devido à retirada da Filosofia do segundo grau do sistema de ensino, “as novas gerações desaprenderão de pensar”, vim refletir um pouco mais sobre a tragédia anunciada ao conhecer o professor Cid Marcus, no Curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos.

Foi a partir das aulas desse professor e amigo que aprendi sobre o movimento regressivo que já então se manifestava na sociedade — início dos anos setenta —, com a transformação de banalidades em manifestações culturais, equívocos alçados à condição de vanguardas, platitudes filosóficas tidas e havidas como inauguradoras de novas escolas, entre outras diluições construídas sobre interpretações mal digeridas daqueles que pensaram e pensavam o mundo e a vida.

Neste primeiro quarto do séc. XXI, enquanto constatamos o domínio do individualismo, a tábua de salvação lançada ao mar em resposta ao muito anunciado naufrágio da espécie, vemos intensificar-se o medo da morte, explicitado pelo renascimento de antigas e o surgimento de novas crenças fundamentalistas. Todas, sem distinção, nos prometendo consolo, justificativa, razão, alento para o fim da vida pessoal e terrena.

Não acredito que a nossa falência na defesa da vida e, por consequência, na preservação da Terra, possa ter sucesso sem que façamos um total e definitivo esforço (antropológico?) em busca dos elementos desencadeadores do ethos autodestrutivo que domina as ações humanas, desde os primórdios da espécie.

Estou convicto de que todos os atos humanos resultam das interações vivenciadas pelos sentidos e retidas em nosso subconsciente ainda quando se dava a transição do Hominidae ao Homo sapiens. Ou seja, quando principiamos a nos agregar já trouxemos para o grupo um enredado de experiências, as quais viriam constituir os componentes psíquicos determinantes das relações de poder que passaram a se estabelecer.

Trouxemos, essencialmente, o medo de perigos reais e imaginários, fruto de nossa absoluta ignorância sobre tudo. Viemos à vida como crianças e da infância emocional pouco nos afastamos ao longo desses 200 mil(?) anos. Foi com o medo (os medos) que erguemos nossas defesas mentais e físicas, traduzidas, de um lado, pelas práticas que levaram, bem mais adiante, à constituição de um Contrato Social, como já me referi; e, de outro lado, pelas regras que garantiram aos mais fortes de físico ou de astúcia os melhores quinhões do que viesse a ser conquistado.

Agregados pelo medo, os pequenos grupos multiplicaram-se em outros. Disseminaram-se no espaço. Projetaram-se no tempo. Reuniram-se em sociedades, países e impérios, sempre fiéis descendentes da centelha produtora do impulso originário da espécie. O resultado que hoje temos é uma sociedade estruturalmente complexa, rica em culturas, sofisticada em ciências, avançada em tecnologias, mas profunda e doentiamente imatura.

Os filósofos foram os primeiros a identificar este fato. Um deles, Immanuel Kant (1724-1804), tem um ensaio fundamental sobre esta questão — “O que é o Iluminismo?”: “A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento!”, conclamava Kant, em 1784.

Quem tiver a curiosidade de ler o ensaio de Kant citado, verá que o filósofo busca conciliar a regra de ouro do Iluminismo (a opção irrecusável pela autoconstrução da Maioridade) com duas das consequências evolutivas, digamos assim, do medo primordial, ainda agora e sempre presentes na vida das pessoas: Religião e Estado.

Mas Kant publicou seu trabalho alguns anos antes do furacão que varreria as ruas de Paris, em 1789; muito antes da Revolução Industrial deflagrada pela Inglaterra, nas primeiras décadas do século seguinte; muito antes da publicação do Manifesto Comunista, por Marx-Engels, em 1848; muito antes da invenção da Linha de Montagem por Henry Ford, na América, em 1913; muito antes das duas Grandes Guerras mundiais, da ascensão do Comunismo (na verdade, a sua versão Totalitarismo de Estado), da explosão da primeira bomba atômica, da massificação do consumo de produtos supérfluos, da queda da União Soviética, do surgimento das grandes corporações financeiras transnacionais, da vitória do individualismo sobre a individualidade e do império do ridículo a partir do surgimento das redes sociais eletrônicas globalizadas.

Hoje, nesta exata terceira década do séc. XXI recém-inaugurada; na velocidade autodestrutiva em que nos encontramos, é melhor que aprendamos logo a entender e dominar os medos herdados dos primórdios da espécie. Não há o que nos salve, senão nós mesmos. Não há Religião, por mais compassiva que seja; não há Estado, por mais bem-estar a que se proponha. Nosso modelo de civilização faliu. Esgotou-se. Limita-se a repetir velhos e cansativos erros. Pior: amplifica-os, abreviando o tempo que resta para a consumação da catástrofe derradeira desta Era.

Qual catástrofe? Qualquer uma: ambiental, nuclear, biológica, psicossomática... Escolha. Aposte. E torça para que ainda tenhamos tempo para retomar a busca da Maioridade do homem vislumbrada no passado, em especial pelos filósofos do Iluminismo.

Não iremos adiante, se não voltarmos ao princípio. Se não mobilizarmos a nossa capacidade individual de tomarmos decisões guiadas principalmente pela Ética. Persistiremos nos erros que temos cometido, agora potencializados pelos avanços das ciências e das tecnologias, se não tomarmos as rédeas da busca/conquista da nossa Maioridade.

Se o Estado não nos proporciona as ferramentas educacionais para o pleno exercício da imprescindível Maioridade (e o Estado não o fará nunca, porque sua existência depende da obediência cega a valores, códigos e normas ditadas não pelo interesse da espécie, mas pela perpetuação do próprio Estado e a defesa de seus mantenedores), esta tarefa transcendental cabe a cada um de nós.

Cabe-nos transmitir aos nossos filhos as lições de liberdade e independência intelectual que houvermos aprendido ao longo da nossa trajetória, e torcer para que a cada geração mais se consolide a coragem de servir ao nosso próprio “entendimento”, sem a orientação de “outrem”. O destino da Humanidade depende disto, e não de algum plano escuso posto em prática pelo pacto egoísta de corporações transnacionais, para isso nos instrumentalizando por todos os meios e modos.

Individualismo crescente vis-à-vis indivíduo diante do seu fim são ideias complementares — “Viver como se não houvesse amanhã” é o mantra cômodo dessa geração, equivalente a tantos outros da mesma índole niilista inconsequente — “Se Deus está morto, então tudo é permitido” — lançados em momentos diferentes do passado, mas que, afinal, não nos têm conduzido a nada, pois a realidade desumana continua, apesar de nós e dos nossos slogans diversionistas.

O que temos de concreto é uma massa em expansão — a população do planeta — organizada em termos insuficientes e submetida à crescente pressão determinada pela velocidade da circulação de informações descategorizadas e mal organizadas.

Com perspectiva visionária, Aldous Huxley, o autor de Brave New World (“Admirável Mundo Novo”) descreveu em 1958 quase tudo o que viria a ocorrer no mundo nas décadas seguintes, falando ao jornalista Mike Wallace (o vídeo está no Youtube). Só não anteviu (embora pareça ter suspeitado) que a ameaça maior para a liberdade e sobrevivência do homem não viria do Totalitarismo de Estado, mas deste Totalitarismo de Mercado que vemos deitar seus domínios sobre todo o planeta.

O Estado todo poderoso não é mais capaz de manipular as “forças
impessoais” (como a superpopulação e a super-organização de empresas e de governos, segundo Huxley), nem de regular a utilização dos “dispositivos tecnológicos” (como o rádio, a televisão e as técnicas de propaganda, ele apontou). “Forças” estabelecidas e “dispositivos” estes inventados ao longo dos dois últimos séculos, ao largo dos instrumentos de controle ditos democráticos, ou seja, do escrutínio da população.

AI, BDC, BGD, ASESR são as possíveis siglas, em inglês, para definir Inteligência Artificial (interação máquina-homem), Coleta de Grandes Bancos de Dados (destinados à vigilância ampla das pessoas), Digitalização dos Negócios e dos Governos (com eliminação massiva de postos de trabalho na indústria e nos serviços privados e públicos), Automação da Engenharia Social e do Controle da Sociedade (para o monitoramento das pessoas e dos potenciais grupos de pressão).

O surgimento do ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer - Computador Integrador Numérico Eletrônico), em 1946, e as ferramentas psicossociais capazes de influenciar grandes massas de pessoas ao consumo (desenvolvidas pelo modelo de Publicidade do pós-II Guerra Mundial) abriram as portas para a formulação teórica dos sistemas de controle social em defesa do Estado. Foi a partir desses conceitos, apropriados com grande destreza pela iniciativa privada (e as nascentes corporações), que se acelerou e sofisticou o que hoje denominamos Totalitarismo de Mercado ou Corporativo Global, como queiram.

Esse quadro entrópico se retroalimenta da criação incessante de mitos e símbolos, sucedâneos de toda e qualquer fraqueza humana, substitutos pagãos da prática religiosa; ainda mais entre aquelas parcelas sociais propensas ao descrédito, como são muitos jovens por natureza contestadores e muitos adultos ditos intelectualizados.

Um dos mais notórios objetos de idolatria, dentre os mais glamourosos, são os computadores e seus aplicativos, concebidos invariavelmente com o propósito de facilitar e transformar para melhor a vida cotidiana, mas que logo se constituíram em instrumentos de manipulação social, atualizando a velhíssima fantasia do Deus ex machina. Com a (des)vantagem de que esse novíssimo Deus está no comando de uma imensidão de fiéis seguidores intercomunicados globalmente através do smartphone e seus apps, realizando a verdadeira (ir)revolução destes nossos tempos.

De cambulhada com falência do pensamento crítico e autocrítico, ergue-se uma coleção de neo-divindades humanas, sempre renovadas, às quais se atribuem dotes de genialidade quando, em verdade, são apenas praticantes exemplares e, admita-se, excelentes disseminadores da obsolescência, irmã gêmea da criação de desnecessidades perpetuadoras da grande armadilha produzida pelo Capital: mantenha-se em movimento!

Uma das evidências patéticas do avanço da irrelevância é a frequente invasão do mundo midiático por notícias dando conta de que aqui e ali milhares de pessoas puseram-se em filas quilométricas, atraídas pelo Santo Graal eletrônico do momento, pago a preço de ouro e logo substituído por outro dotado de mais recursos cosméticos e maior valor de mercado.

Para usar um termo que virou moda no início deste século, tratam-se apenas de renovadas bolhas de ilusão, periodicamente infladas pela nossa insegurança, medo e individualismo.

E vamos, assim, caminhando erráticos. Sempre e sempre diante da chance de levar a vida que dispomos de maneira diferente, porque temos, em tese, a possibilidade de fazer valer o nosso livre arbítrio, ainda que diante de apenas duas opções fundamentais — ser ou não ser. Afinal, se o passado nos constitui e o futuro nos atrai, é no presente contínuo que fazemos as nossas escolhas, à luz da independência e da capacidade de discernimento de cada um.

Por isso, o impasse em que nos encontramos pode ser proveitoso, pois, sabemos, as mais bem-sucedidas soluções decorrem das extremas necessidades. Se isto não parecesse irônico, diria que precisamos de uma epifania coletiva; não-religiosa, diga-se, para que não se perpetuem as históricas intolerâncias e consequentes exclusões.

Desde logo admito que a construção do homem independente e responsável não passa pela exacerbação do moralismo. Vejo um aleijado na rua, movendo-se com dificuldade rumo a uma porta, e concluo tratar-se de um pobre coitado a caminho de sua coleta diária de esmolas. Se me informar melhor, como já ocorreu, saberei tratar-se de uma pessoa aleijada, ou com necessidades especiais, chegando ao seu trabalho. Lembro de ter me repreendido pelo mau pensamento, num ou noutro caso específico, mas sempre me surpreendo tomado por outras dessas avaliações apressadas, que depois se revelaram injustas.

As fraquezas de caráter são da natureza humana; delas, acredito, não nos livraremos tão cedo. São como vincos marcados em nossa história de vida, vestígios da nossa animalidade, vulgo baixos instintos; situam-se no mesmo escaninho onde está o medo, potencializado pelas relações sociais. Atuam como a ‘memória de forma’, propriedade que possuem alguns materiais de assumirem e manterem tal e qual configuração desde o momento em que são constituídos.

As pessoas também carregam tais ‘memórias’. Algumas integram a cultura do seu grupo e, de tanto serem repetidas, assemelham-se a uma herança genética; são impossíveis de serem desfeitas ou modificadas. É preciso compreendê-las; aceitá-las; fazê-las trabalhar em nosso favor, até que um dia caiam em desuso.

Muitos chamam de inteligência a capacidade de administrar nossas debilidades de caráter, quando, na verdade, estamos falando de sabedoria, que é um valor adquirido e sempre com algum esforço, fruto da experiência acumulada, da observação dos fatos e das decisões que tomamos, resultando disso o nosso amadurecimento.

É por esse motivo que ninguém tem lições a dar a quem quer que seja; até porque alguns prejulgamentos muitas vezes se provam acertados — afinal, somos humanos, “demasiadamente humanos”, conforme já se pontuou. Assim, cada qual haverá de trilhar seu caminho e construir suas fortalezas particulares, que, na soma, não haverão de ser diferentes nem conflitantes com as de outros seres conscientes.

A proliferação de publicações de autoajuda (entre as quais este texto não se inclui, pois o que aqui se propõe não projeta conforto físico ou mental), talvez os únicos livros hoje realmente consumidos, em todas as suas versões — dos guias técnicos aos modos de fazer; das bulas de remédio aos conselhos de bem viver e às biografias, de modo geral —, apenas comprovam a tese de que estamos errados e reiteramos no erro, pois se traduzem na exploração das nossas debilidades.

Os mais bem-sucedidos autores dessas publicações são aqueles capazes de, espertamente, transformar algumas poucas verdades basilares em produtos de consumo, praticando o sofisma de que alguma felicidade pode ser alcançada seguindo os passos de um manual.

Não. Nunca. A felicidade, como um estado de bem-aventurança permanente, inexiste. Repare que ela não é capaz de se realizar sequer como um projeto mental claro e definido; trata-se, tão-somente, de um conceito fugidio, uma ilusão. Na verdade, é uma dessas muletas mentais que o ser humano inventou, em algum instante da construção de suas fraquezas, para se confortar; tanto quanto a proteção dos deuses (via religião) e o afago dos mitos (via capital).

Acreditemos em satisfação momentânea de necessidades. Aceitemos como verdade os prazeres consumados e fortuitos dos nossos cinco sentidos; ousemos tentar repeti-los, se isto nos é agradável e possível. Podemos até nos alegrar com a confirmação de uma intuição, mas não fraquejemos o espírito correndo atrás da tal felicidade como coisa palpável, reproduzível, conservável.

Não nos enganemos também com a definitiva consumação da utopia, esse não-lugar onde tudo seria perfeito, e fim. Esse estado de perfeição não existe, nem teria existido mesmo que houvéssemos acertado em todas as nossas decisões, desde o momento em que fomos chamados a decidir.

Somos, sim, deuses, mas em autoconstrução infinda. E, nesse processo, o ser humano precisa, necessita da imperfeição para orientar seu rumo. Da imperfeição e do espelho, este para enxergar plenamente as falhas de seu caráter. E também precisa sonhar enquanto dorme, para viajar através de seus medos. É desse enfrentamento que necessitamos, não da negação da realidade e do autoengano patrocinado pelas fórmulas da autoajuda.