"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo IV

A História é uma construção paulatina, determinada pela satisfação das necessidades humanas básicas (fisiológicas, emocionais, sentimentais, morais), mas também pela corrupção dessas mesmas necessidades.

Foi justamente sobre esses desvios ou depravações, como queiram, mas sem o peso moralista da palavra (“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, por exemplo, é uma divertida amostra do que se passa na mente humana), que se assentou e se mantém o processo de esgarçamento das possibilidades de avanço civilizatório.

Para remediar seu curso permanente de degradamento, as sociedades primitivas desenvolveram práticas, códigos, dogmas, ritos. Em socorro às urgências da mundanidade, constituíram sucessivos e sempre mais complexos contratos sociais, dos quais resultaram diferentes modalidades de governos, com suas leis e sistemas de Justiça travestidos de defensores de todos, mas, em verdade, guardiões dos interesses privados.

São esses pilares que, adaptando-se às circunstâncias de cada momento da História, têm postergado a derrocada final da espécie, sem, no entanto, impedir que ela se degrade e desespere.

Olhemos em volta: Religião, Estado e Capital nunca foram realmente capazes de cumprir com efetividade os seus deveres para com o espírito e a mundanidade. O Estado não cuida da proteção dos interesses de todos, mas tão somente daqueles que protegem o seu status e constituem a sua burocracia; a Religião dedica o melhor dos seus esforços à preservação da ascendência mística sobre as pessoas, devolvendo resíduos de esperança àqueles que a professam; e o Capital, por definição, destina-se a produzir lucros e vantagens a uma escassa minoria.

Se o proveito dos donos do Capital não pode ser escondido, embora se dilua na impessoalidade de seus maiores detentores, o Estado e a Religião não descuidam da pompa e da circunstância, imprimindo no imaginário de seus súditos, cidadãos, seguidores e fiéis a expectativa e a crença, sempre traídas, de justiça e redenção. E assim, como já disse e não canso de repetir, mantêm aceso o fogo fátuo da irrealização do futuro que prometem.

Abaixo, alguns exemplos de necessidades e corrupções (degradações) cotidianas da nossa espécie, sem que se pretenda lhes atribuir qualquer julgamento moralista. São apenas fatos da vida:
Alimento - preservação da vitalidade
[perversão: Gula]
Repouso - recuperação da sanidade
[perversão: Preguiça]
Sexo – satisfação do prazer
[perversão: Luxúria]
Convivência - construção da segurança
[perversão: Dependência]
Honradez - defesa da integridade
[perversão: Ira]
Reconhecimento - alimento da autoestima
[perversão: Vaidade]
Generosidade - composição da harmonia
[perversão: Omissão]
Temperança - busca da justiça
[perversão: Inveja]
Economia - prática da moderação
[perversão: Avareza]
Humildade – reconhecimento da finitude
[perversão: Submissão]
E tantos outros…

[Uma Hierarquia das Necessidades Humanas (ou Pirâmide de Maslow) foi desenvolvida pelo psicólogo Abraham Maslow (1908-1970, EUA), vinculado à Psicologia Humanista, cuja tese publicada em “A Theory of Human Motivation”, de 1954, partiu da observação de macacos e do fato de que estes se comportavam com base em suas necessidades pessoais: mais agressivos, quando não tinham comida; mais sociais e dóceis após satisfazerem suas necessidades fisiológicas. Concluiu Maslow que o mesmo ocorria com os seres humanos. Na base de sua pirâmide estão as necessidades Fisiológicas: regulação dos níveis sanguíneos de sal, açúcar, proteínas, gorduras, oxigênio, cálcio, equilíbrio ácido-base, temperatura etc., elementos que definem as sensações de fome, sede, desejo sexual, sono etc. Sem a satisfação dessas necessidades nós nos tornamos agressivos e selvagens. No patamar imediatamente superior, as de Segurança: a necessidade de proteção contra a violência, catástrofes naturais, busca da estabilidade econômica. O patamar seguinte, as Psicológicas e Sociais: a necessidade de se relacionar com outros, a começar pela família, companheira/companheiro, filhos, colegas, grupos de afinidades e afiliação, relações estas que estão associadas à necessidade de dar e receber afeto. Segue-se a Estima: necessidade de reconhecimento, ter orgulho, poder, prestígio. Por fim, no topo da pirâmide, as de Realização Pessoal: a necessidade de aproveitamento do potencial de cada um, realização daquilo que se pode ser, fazer o que se gosta e é capaz, ter autonomia, independência, autocontrole, criatividade, espontaneidade etc. Embora muitos estudiosos tenham revisto aspectos da hierarquia de Maslow, nenhuma de fato a substituiu de maneira convincente e nova.]