"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo IX

De quê substâncias se fez esta salsicha? Penso que tive dois momentos definidores na minha formação: o da infância até o começo da adolescência, passado em Manaus, Amazonas, período em que as circunstâncias me tornaram uma pessoa introspectiva, mas igualmente curiosa e observadora do comportamento daqueles com quem convivia e do mundo à minha volta; e o da segunda metade da adolescência em diante, quando me mudei para Santos, São Paulo, acompanhando minha mãe, meu irmão e irmãs, agora exposto a uma nova geografia, cultura e hábitos igualmente determinantes para o que eu viria a me tornar. Hoje entendo que as duas fases se completam.

Começo pelo segundo momento, pois considero que é aquele em que, sem a presença da figura paterna, tive a chance e a necessidade de tomar as rédeas da minha vida. Não foi uma jornada tranquila, mas um aprendizado custoso, um processo de experimentação em que ocorreram mais erros do que acertos, e os erros, afinal, são aquilo que nos define, porque nos desafiam.

O fato é que há sempre uma ilusão de bidimensionalidade no encontro entre os ambientes aquático vs. terrestre, em algum ponto da geografia de cidades portuárias.

Em Santos, isto ocorre particularmente no acesso ao cais, que se inicia no extremo da região turística e residencial, tendo à direita o Iate Clube com suas embarcações de recreio e, mais adiante, à esquerda, os barcos especializados que frequentam o Terminal Pesqueiro Público.

Quase encostados aos prédios de apartamentos das ruas próximas ao mar, os grandes navios de carga e turismo deslizam pela superfície calma das águas do canal, impondo-se contra o céu e tendo, em segundo plano, o desfile de recortes do que restou da Fortaleza de Santo Amaro, ruínas da colonização portuguesa dessa parte do Novo Mundo.

Estampadas em paralelo à mureta da Ponta da Praia, que separa a calçada do enrocamento de proteção contra as ressacas, se comparadas aos carros que circulam na avenida litorânea essas imponentes estruturas flutuantes de aço por instantes parecem não se mover e, no entanto, seguem seu curso rumo aos oceanos.

O conjunto de imagens, sons e movimentos que compõe esse choque de massas e proporções distribuídas num espaço de múltiplos universos de animais, racionais ou não, nos revela um embate de expectativas no qual se distingue ao menos esta rica dicotomia: a dos seres entregues às rotinas de seu cotidiano nas ruas, nas casas, prédios, bares e restaurantes, contraposta às dos que seguem a bordo, dedicados às fainas do tripulante, antecipando expectativa de aventuras mar adentro.

Especialíssima nesse cenário urbano é a parada de ônibus localizada na pista interna da curva do final da faixa de areia, de onde se tem uma inquietante, rica e bela visão desse imbricamento mar-cidade. Daquele ponto, onde as pessoas esperam diariamente o seu transporte coletivo, observam-se embarcações de formas e finalidades diversas, pedestres, atletas, estudantes, crianças, vendedores de comidas e bugigangas, aposentados em caminhadas com seus cães e todo o tipo de gente em diferentes trajetos e ritmos, elementos do microcosmo que constitui a privilegiada e ampla paisagem.

Igualmente reveladoras eram as colunas de Navegação dos jornais, em especial ao anunciarem: “Chegou ontem ao porto o navio tal, com avaria grossa em sua carga”.

Era um aviso de seguro; tinha a ver com prejuízos para alguns, mas significa mais: pessoas reduzidas a quase nada, entregues a tempestades em pleno oceano, flutuando dentro de cascas que mal conseguem se sustentar. As ondas batem, o aço range, as correntes e cabos se rompem, os volumes se soltam, a água inunda… Avaria grossa; pavor; fragilidade. E, no entanto, a alma calejada volta ao mar, porque o homem é assim, destemido, desde quando vagava nas planícies, abrigando-se em cavernas.

Estes são os fios que tecem a mística santista, pontuada no apito surdo dos vapores em meio à bruma, pela manhã. Enxergar os tesouros desta cidade é apoderar-se do prazer de integrar a tal dicotomia terra-mar e as suas traduções espalhadas por todos os bairros, refletidas no arranjo urbanístico dos canais de drenagem, obra de engenharia sanitária que há mais de um século venceu as doenças decorrentes do solo insalubre da ilha onde se plantou a vila;

Nos detalhes da arquitetura mais antiga produzida por artífices europeus; nas pessoas provenientes de todas as latitudes, com seus costumes, línguas, ideologias, profissões; e em tantos outros signos que definem o caráter internacional desta cidade — resultados de cinco séculos de ocupação territorial, no embate de duas culturas separadas por alguns milhares de anos de evolução: a europeia, que aqui aportou nos primórdios do séc. XVI, em pleno Renascimento; e a indígena, que ainda não havia deixado a idade da pedra, a Pré-História.

Penso no comércio do café, que fez a fama e a riqueza deste lugar, nas primeiras décadas do século passado. Imagino o corre-corre dos corretores do produto pelas ruas do Comércio, Conde D'Eu, XV de Novembro, largos do São Bento e do Rosário, Praça dos Andradas, cenas que antigas fotos imortalizam. Faço a conta dos milhões de libras esterlinas que circulavam naqueles anos por aqui, fartura que permitiu trazer da Europa os artesãos que construíram as sedes comerciais das casas exportadoras e as residências dos barões da rubiácea — importava-se tudo do velho continente. Vejo ao longe, entre as frestas dos prédios, um cargueiro deixando a barra — é a cena de que mais gosto ao levantar, como se fosse um prêmio, um bom presságio para o dia.

Minha ligação com o ambiente portuário vem da infância. Tinha
pouco mais de dez anos e passava horas no Roadway de Manaus, fascinado com o movimento de carga e descarga dos navios; vendo o entrar e sair de passageiros; sentindo o cheiro da borracha natural amarrada em fardos, as castanhas-do-pará acondicionadas em sacos e tantas outras mercadorias levadas para a terra, ou de lá trazidas para as embarcações pelo sistema de trilhos, instalado na plataforma de acesso ao porto.

Vejo-me pisando com cuidado as tábuas do cais flutuante, com a água escura do Rio Negro aparecendo embaixo, por entre as frestas; e de me perguntar o que fazia ali, cercado de tantos riscos; e mesmo de ser questionado por adultos quanto à minha presença num local exclusivamente de trabalho. O que me atraía para esse ambiente, eu sabia, era o movimento das máquinas; o klang, klang das peças de aço se chocando no interior dos porões; as pessoas em sua faina vistas desde o cais; o cheiro acre marcando tudo; o sentimento do desconhecido, da aventura, das infinitas possibilidades mundo afora sugeridas por esse conjunto de coisas e afazeres.

Era isso, mas não apenas. Certamente porque a minha história assim o determinasse, a vida no cais me prendia tanto quanto as conversas entre adultos que eu acompanhava atento nos finais de tarde, imóvel na cadeira de uma das ensebadas mesas da mercearia próxima à última casa onde morei na infância, na Rua Sete de Setembro.

Quase nada me interessava ali, pois dos assuntos pouco me recordo. Lembro-me, porém, da figura esguia, tez vermelha — e cada vez mais avermelhada, à medida que as horas se passavam e o álcool se acumulava em seu organismo —, de um inglês remanescente da extinta Manaus Tramways and Ligth Co., detentora da exploração do sistema de bondes e geração de energia da cidade. Ouvia suas imprecações, acompanhadas das ameaças de um dia deixar o calor sufocante da cidade e voltar ao seu país, e aprendia sobre a existência e os costumes de lugares diferentes.

Tanto quanto os barcos, máquinas de transportar mercadorias e gentes a mundos por mim apenas pressentidos, aquele homem, com seu sotaque e inflexões inesperadas me transportava para além dali, como se meu espírito se alimentasse dessa ideia de fuga buscada aonde quer que fosse. Fugir das minhas circunstâncias, mais do que uma escolha, era uma ideia de complementaridade.

Estávamos no final dos anos cinquenta e um dos alentos para os meus sonhos foi a visita de um primo distante, jornalista de uma revista de circulação nacional, que residia no Rio de Janeiro e se encontrava em Manaus para escrever mais uma reportagem sobre o ‘“inferno verde”, a selva amazônica. Foi ele, certamente, quem inspirou a escolha da minha profissão, influenciando-me pela expectativa de aventuras que o jornalismo parecia proporcionar. Desse primo guardo a história contada na sala de estar da minha casa, e que me custou noites de sonhos acordados:

Chegara ele ao Rio de Janeiro ainda jovem, no final da primeira metade daquele século, levado pelas oportunidades que a capital da República a todos oferecia. Nos primeiros dias, sozinho, com fome, foi atraído pelas bombas de chocolate expostas na vitrine de uma famosa confeitaria. Deu-se com ele um choque, uma paixão irracional a lhe tomar o espírito desde os sentidos e necessidades primárias. Todos os dias lá ia ele, consumir com os olhos seu objeto de desejo. Quando afinal conseguiu um emprego, gastou boa parte do primeiro salário na compra do tal doce; vários, saboreados até se fartar.

Imediato foi o encantamento que se estabeleceu quando me vi em Santos, cidade de frente para essa superfície ondulante, onde os homens se movem desde os tempos imemoriais, ao encontro de suas circunstâncias. Mais ainda quando passei a frequentar todos os dias a faixa portuária, a trabalho. Aí, sim, por necessidade e prazer estive a bordo de todo o tipo de barco, sempre mais ligado aos mistos — transportadores de cargas e passageiros —, onde as mercadorias
ganham a companhia de gente comum, não-tripulantes, humanizando a ideia de comércio-relação entre as pessoas de diferentes regiões e países.

Um desses, de bandeira indiana, era um antigo e luxuoso navio de turismo. Em seu interior ostentava magnífica escadaria que se abria em leque, dominada por vistosos candelabros e figuras em alto-relevo nas paredes laterais, até o convés de cima, onde se distribuíam amplos camarotes e largos ambientes de uso coletivo. Mantinha, assim, as características de seu passado, mas tudo, absolutamente tudo, todos os detalhes haviam sido tomados pela decadência. Agora era um barco de uso misto, por onde circulavam passageiros vestidos com modéstia, mas, principalmente, tripulantes comuns a qualquer cargueiro, com suas vestes desgastadas, de trabalho.

O fato é que o mar santista me cativou desde o primeiro dia; dia cinzento em que fui levado por um primo a conhecer a praia do José Menino. Pisei a areia seca, fofa, extensa, percorrida com esforço, pois meus pés nela afundavam; depois alcancei a areia molhada, que cedia sob os meus dedos como que me retirando o chão, quase viva e indomável.

Senti as ondas calmas indo e vindo num fluxo-refluxo regular, e caminhei com cuidado de encontro à espuma formada pela batida das ondas, mergulhando enfim naquele líquido tépido, salgado, estranhamente denso. Tão diferente das lembranças que eu trazia das águas doces, calmas, escuras dos afluentes do Rio Negro, onde, além de tudo, habitavam as carnívoras piranhas que um dia, ao meu lado, arrancaram dois dedos do pé esquerdo de um companheiro de aventuras. Com o passar dos dias e a volta do sol, descobri que o mar podia ser verde, ou azul, e que as marés, junto com o vento, produzem energia e movimento.


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