"Do que se fazem as salsichas" - Capítulo X

A luz é a nossa referência primitiva, nosso primeiro contato com o mundo, mas foi a água e o ar que proporcionaram os meios para a caminhada da espécie humana. Foi o domínio desses dois elementos que nos trouxe até aqui, graças à constatação de que num e noutro as coisas sólidas persistem e ganham movimento. A partir de sua condição nômade, deslocando-se em busca de alimentos, o animal-homem encontrou no corpo líquido o impulso para ampliar os limites de sua sobrevivência.

Naquele momento, hoje sabemos, construir artefatos que flutuassem e avançassem envolvia menos conhecimentos e habilidades do que fazer objetos que se deslocassem pelo ar. O desenvolvimento dos meios adequados àquele passo na evolução seguiu a lógica ditada pela necessidade e oportunidade, combinadas com a capacidade de produzir ferramentas a partir dos recursos retirados do entorno.

A ideia da necessidade como determinante das coisas inventadas delimita o campo das tecnologias, sob o estímulo e a força das conjunturas. Para trilhar esse caminho, muitos passos têm sido dados desde o paleolítico, há milhões de anos, quando o fogo teria sido conquistado e as primeiras manifestações de linguagem desenvolvidas entre os hominídeos, ao que parece a partir da adaptação de sistemas de comunicação baseados em sinais e na onomatopeia.

Mas é preciso ter claro que linguagem também é lógica, ferramenta a ser utilizada com o domínio das técnicas e destreza no uso, para cumprir com mínima eficácia a sua tarefa. Não é por outro motivo que nos proporciona prazer a leitura dos escritores ditos clássicos, cujos textos precisos na forma, ricos de conotações e fluentes de ritmo nos ajudam a pensar em nós, no mundo e em nossas relações com os demais companheiros desta viagem sempre renovada.

A capacidade de organizar e dar significado ao discurso, portanto, é fator determinante para o avanço do processo civilizatório. Digo isto de forma singela, quase evitando encarar a magnitude desse desafio cotidiano e permanente que é a busca sempre infrutífera, ou incompleta, da comunicação sem ruídos entre os seres humanos.

O travessão, a propósito, serve para isolar uma frase dentro de um período, enfatizando ou adicionando informação ao conceito exatamente precedente. Assim, uma vírgula que pertença ao pensamento principal deve ser posta após o segundo travessão — isto é lógico! —, e não antes do primeiro, porque senão perde a sua utilidade enquanto vírgula e descaracteriza a finalidade do próprio travessão.

O mau uso da língua é um estorvo ao pensamento livre e ao livre agir. É como se utilizássemos uma pequena colher para cavar uma vala no chão — é possível tentar, mas a ferramenta não será adequada; perde-se tempo, energia e, por consequência, o sentido de valor da tarefa empreendida.

Somem-se a essa dificuldade os prejuízos gerados a partir dos comportamentos sedimentados na pré-história da sociedade, os quais consolidaram os modos de pensar constituintes das ações do homem no decorrer destes milênios — a aceitação do poder como prerrogativa da força física ou mental; a mitificação do desconhecido; a predominância do sobrenatural sobre o transcendente —, e teremos um vislumbre da questionável qualidade do itinerário seguido por nossos ancestrais.

Ao dissecar esse tenebroso caminho, talvez seja possível identificar os nós que teremos de desatar para recuperar o fio da meada do processo de construção da maioridade da espécie. Quem sabe? Afinal, enquanto o Sol não se extinguir, nossas possibilidades cósmicas restam intactas, fortalecidas, bem ou mal, por milênios de árduo aprendizado. Vamos por partes…

Utilizar a força física e/ou mental como instrumento de convencimento do outro terá sido da natureza dos seres que apenas deixavam a condição de primatas — não se trata, ainda hoje, de uma opção ditada pela racionalidade, mas de uma reação própria do animal que está em nossa origem, o que sempre haveremos de ser.

Manter essa prática, enquanto a linguagem simbólica se desenvolvia, foi também uma realidade inevitável, pois apenas se esboçava no homem a capacidade de reconhecimento do outro, o interlocutor, aquele a quem as mensagens são dirigidas e de quem elas provêm.

Perdurar nesse caminho — o uso predominante da força física e/ou mental — após dominarmos estruturas sofisticadas de pensamento e compreendermos a natureza e os desdobramentos sociais do poder dos mais fortes sobre os mais fracos — e agora não se fala mais, definitiva e exclusivamente, apenas do uso da força bruta, mas efetivamente também da mental — foi, sim, um erro fundador, porque consciente e assumido.

Pode-se argumentar que não caberia ao homem primitivo discernir sobre o certo e o errado, tendo em vista a repercussão de suas decisões no futuro. Não se teria naquele momento sequer a percepção de futuro, nem se discernia profundamente sobre nada. E, no entanto, alguma decisão foi tomada pelo sujeito da época, a partir de situações objetivas, funcionais; decisão que se constituiu em costume e se consolidou em tradição.

Quero dizer que em algum ponto do passado perdeu-se a chance de salientar a sublimidade da existência humana singular e sem quaisquer distinções. Ao contrário, criaram-se grupos, castas, hierarquias, classes sociais excludentes, ou seja, houve, sim, um encadeamento de ações ditadas pelas conveniências e subordinadas à aceitação do poder como prerrogativa da força física.

Impossível, ainda (ao menos até onde sei), assegurar os estágios desse processo, mas o fato é que ao longo dos tempos persistiram e se aprimoraram as práticas da submissão: aos fisicamente mais fortes uniram-se os mais cruéis, sendo ambos dominados pelos mais astutos, estabelecendo-se dessa maneira uma matriz de relações entre as pessoas — esta que nos trouxe até o presente, disseminada pelos estratos sociais, de qualquer latitude; embutida na concepção dos regimes e governos; realimentada pelos modos de fazer política.

As sucessivas gerações da espécie humana formaram-se sob essa cultura e já nem mesmo nos apercebemos das raízes de sua falência, limitando-nos a condenar os danos acarretados à sociedade — conceituada, aqui, não exatamente no sentido do conjunto das pessoas, mas em relação aos nossos próprios interesses —, como se todos fôssemos pacientes e vítimas sem compromissos, inocentes.

Ninguém é inocente. Alguns homens pensaram, ousaram, rebelaram-se, até. Na Grécia, 500 anos a.C., jônicos diziam que se pode entrar num rio uma vez, mas não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. Ou seja, sabia-se que vivemos um fluxo, um eterno vir a ser, independente de vontades; e que nossas únicas predeterminações são aquelas decorrentes das interações materiais conhecidas e a conhecer. E, no entanto, prevaleceu a força do comodismo ditado pelo autossubmetimento ou submissão, a perversão da humildade.

A mitificação do desconhecido, componente destacado dentre os descaminhos fundadores, foi mais uma categoria que se colocou ao animal-homem nos seus primórdios pré-sociais, mas que no avançar da História incorporou-se ao nosso patrimônio sensorial. O sentimento do medo — estado primário de emoção, igual a tantos outros —, que regula aquela mitificação, é apenas o motor que nos faz ir para adiante; e quem avança sabe que desafiá-lo é uma importante mola na conquista de conhecimento.

Sair da caverna, assim, foi mais do que um ato de coragem — teve a ver com a autopreservação, o instinto de sobrevivência, o elã criador que se impõe à racionalidade e para ela abre portas. O desconhecido, por isso, não seria motivo suficiente para suscitar medo e imobilidade, mas sua mitificação foi o tijolo construtor de prisões, que submeteram a alma humana — este é o paradoxo que nos está posto. A frase soa retumbante, mas é preciso circunscrever a experiência do medo à sua condição mais nobre, de impulso atávico e necessário: ferramenta psicológica proveitosa ao crescimento da espécie, e não destinada à sua redução e subordinação.

As religiões edificaram suas estruturas sobre este solo pantanoso e movediço, ao qual adicionaram as trevas e os sons tonitruantes. Apoiadas na percepção de transcendência inerente ao homem, elas — as religiões — subverteram sua atribuição histórica e didatizante — de disseminadoras de uma esperança a ser realizada por meio de ampla participação —, arrogando-se à condição de guardiães do sublime. De protagonistas, os homens foram relegados a um papel subalterno — o de coadjuvantes sob restritas condições.

Vislumbrando a oportunidade de se perpetuarem, as religiões arquitetaram dogmas, ergueram fortalezas morais e, com essas ferramentas, passaram a defender seus interesses bem materiais, numa atitude própria de qualquer ente privado. Ou seja, abdicaram de enfatizar e robustecer o valor da individualidade, que se traduz na divindade intrínseca do humano; e ignoraram a possibilidade da sua, da nossa deidade terrena. Relegaram o animal racional à condição de mero postulante a uma salvação inalcançável, situada no além, no tempo-espaço da quimera, no plano do sonho, da ilusão, da utopia, do auto-engano.

Engordadas por fileiras de crentes sujeitados pela exploração de fraquezas incutidas, transformarem-se em poder dominante e, no curso da história, espertamente — porque assim se isentaram da manutenção dos exércitos necessários à imposição de sua força —, constituíram-se em instância auxiliar e temida dos estados nacionais, mesmo quando se colocam ao lado das parcelas menos favorecidas
da população. Neste caso, exercem um simulacro de resistência, quando seria o caso de ao menos liderarem o esclarecimento moralmente autorizado de seus rebanhos.

Nestes casos, repito, trata-se, sem meias palavras, ainda e sempre do predomínio de um certo animus mercantilista, onde se visa a fidelização da clientela por meio de discursos e atos apropriados, que vão do assistencialismo ao velado consentimento de modelos situados na fronteira de ideologias ditas progressistas.

No primeiro caso, valem-se de pessoas piedosas; no segundo, em processo mais complexo, admitem que grassem teorias e práticas de indisfarçável teor demagógico, destinadas a minorar o sofrimento e a miséria, nunca a operar sobre as causas primárias de tais iniquidades, até porque delas fazem parte e dependem. Isto sem falar desse modelo mais recente, mistificador midiático, ostensivamente explorador das fraquezas humanas.

Num e noutro cenário, o que subsiste é a ordem de manter tensa a relação de dependência entre a instituição e a pessoa assistida, sem cuidar, insisto, de promover a singularidade do indivíduo e, menos ainda, de fortalecer a sua deidade terrena, conceito relativo ao entendimento de que, em sendo criatura única no universo — o que não significa deter a exclusividade da inteligência cósmica —, o homem, embora animal, possui valor especialíssimo, conferido por um potencial de realização, se não infinito, certamente de limites maravilhosamente desconhecidos.

Quando digo criatura única, refiro-me à unicidade de gênero, ou seja, à entidade humana singular, aquela que em verdade dispensa intermediários para se colocar frente ao universo. É claro que ao se expor assim, à luz do Sol e das galáxias, o homem tem de estar pronto a pagar o preço que toda responsabilidade nos cobra. Pelas mesmas razões, o fato é que o nosso processo histórico não nos tem preparado para liquidar essa conta e, hoje, a questão que se põe é: Estamos dispostos a pagá-la? Parece que ainda não, pois continuamos a delegar a pessoas jurídicas, as tais promotoras do sobrenatural, a tarefa de intermediar nossa relação com o desconhecido, entregando-lhes o governo do nosso medo.

Uma das ferramentas mentais dessa estrutura de submissão é tomar como dogma o que ainda não foi decodificado pelo conhecimento secular, atribuindo a tais eventos a condição de coisas milagrosas. Depois que a interpretação do mistério se realiza e a partir dela desenvolvem-se competências, via utilização dos conhecimentos adquiridos, outros segredos se colocam, realimentando a perspectiva do milagre e restabelecendo a fragilidade da alma humana — esta é a chave da relação de subserviência.

E não se trata de imputar aos mistérios do mundo a condição de instância preliminar e necessária na busca do conhecimento. Esse tipo de simplificação serve apenas ao interesse das religiões, pois fortalece o argumento falacioso, subentendido nos dogmas, de que o homem comum não possuiria o intelecto exigido para pensar e agir com autonomia, carecendo para isso da intermediação de seres iluminados.

A transcendência e o absoluto sempre estarão além dos limites da nossa vã compreensão e possibilidade, o que significa estarmos submetidos (e nos submetermos, é claro!, pois aí se encontra o impulso primitivo da espécie) a um estado de permanente desafio, a uma busca contínua e vigilante pelo esclarecimento dos fenômenos presentes e o devir — alargar os limites é o nosso compromisso cósmico; esta é a missão de todos.

Deste modo, o que devemos apreender é simples: transcendência e absoluto situam-se, igualmente, fora da capacidade de entendimento e alcance desses semideuses autoproclamados, e de seus asseclas. Não lhes damos consentimento (e a história da matemática como descoberta e invenção, por exemplo, é prova disto) para usurpar o poder de cada um enfrentar os mistérios.

É compreensível que as religiões, como entidades públicas e jurídicas que são, cuidem de perpetuar seus privilégios. Para isso, cultivam a pompa, o ritual, a solenidade, o discurso falsamente indulgente, preservando desta maneira a inviolabilidade de suas estruturas, que são defendidas com o uso da força, quando necessário, como já se viu ao longo da história.

Ao homem, tradução fulcral do sublime, sobre quem deveriam recair o ônus e o bônus da realização dessa ideia cósmica, resta o mero status de fiel ou infiel, faces da mesma moeda corrente no mercado onde habitam as coisas que têm preço. Isto é, de um ser destinado a alcançar as estrelas e erigir um mundo de possibilidades conscientemente formuladas, foi tornado mesquinho, apequenado, submetido a obediências, subordinado a leis instituídas pela vileza de autoproclamados legisladores e pretensos interlocutores junto a um Deus projetado. Tornamo-nos, todos, pecadores originais, compelidos a um débito factício e — hoje vemos — criminoso, à luz do inarredável e intransferível compromisso com nossa presença no universo.

Frente à desmoralização a que as religiões estão relegadas, subsistindo, algumas, exclusivamente à sombra de tensões produzidas por conflitos étnicos, cujas (des)razões remetem-se a embates, no fundo, irrelevantes, cabe lembrar a máxima de que não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Embora verdadeira, que tal assertiva não nos sirva de consolo. Diante de uma civilização de milênios construída sobre alicerces de barro, como vemos; frente ao mundo de perversidades que nos cerca e para o qual contribuímos de forma compulsória, muitas vezes ignorantes da extensão e das implicações do nosso envolvimento, nada nos pode servir de alívio.

Não há o quê ou a quem reclamar, mas é preciso entender as razões da nossa miséria física e de espírito. Esta é a verdadeira função dos estudos transdisciplinares: compreender o quê e o porquê do atraso em que nos encontramos. Se o homem, embora animal, almeja o tudo, ao menos deve ter a percepção de que está distante do tudo agora. A partir da conquista desse entendimento e aceitando a hipótese de que nos encontramos em meio a um processo que visa realizar o absoluto — ainda que este venha a ser um reencontro com o caos que precede a criação, num eterno recomeço —, qualquer tentativa de influir no rumo desta viagem tem de, necessariamente, passar pela educação das gerações que herdam os destinos da Terra.

Não se trata de uma tarefa fácil, percebe-se, dado que ninguém — nem Religião, nem Estado, nem Capital — está disposto a ceder, sequer admitir que ocupa o lado sombrio do problema — sim, porque o lado trágico é o que cabe ao gênero humano! Resta o indivíduo; sua capacidade de desenvolver entendimento; seu poder de assumir compromissos na História e de exercê-los de todas as formas subversivas de que for capaz. Esta, sim, é a grande e única revolução.

Hoje, fala-se que a vida eterna pode ser, desde já, uma possibilidade, à luz do conhecimento potencial que se vislumbra para os próximos séculos. No entanto, sua propalada efetividade levanta algumas questões. Do ponto de vista político, por exemplo, haveria que se sofisticar e perpetuar as relações de desigualdade social, pois é de se duvidar que o planeta seja capaz de sustentar a boa vida simultânea de 8 bilhões de eternos jovens (aos números da população planetária de 2021) sobre a sua superfície.

Alguns bilhões desses seres teriam a duração de suas vidas eventualmente reduzida, em benefício do grupo de privilegiados que, assim, constituiria a nata do sistema? Se isso vier a ser verdade, mesmo que tal decisão seja tomada mediante sorteio (não fraudulento!), recuaremos alguns bons séculos na História e, provavelmente, vamos gestar um processo de revolta. Ou, talvez, a tecnologia possa (e no andar dessa alegada carruagem certamente poderá) dissipar o ânimo dos revoltosos em potencial, fazendo com que se resignem alegremente com sua subcondição humana.

Neste caso, estaremos diante de outro formidável passo atrás, qual seja, a institucionalização inconsciente do controle social, esse mesmo contra o qual nos insurgimos agora (2021) e que é exercido, por insinuante imposição, pelas corporações do mundo digital, sob o protesto de grupos de cidadãos e de (pouquíssimos) segmentos de alguns governos nacionais.

Ou seja, nossa civilização viveria pela eternidade afora desafiando a morte, mas, na real, esse modelo não passaria de uma cópia lustrada da velha e manjada plutocracia. Com o passar do tempo (hahaha!), alguns dos eternos e privilegiados jovens poderão, para além de todo o controle e mercê de uma falha qualquer no sistema (motivada por uma pane no fornecimento de energia provocada por uma fabulosa tempestade de raios, ou o choque de um cometa, quem sabe?!), poderão, repito, rebelar-se contra o status quo… Afinal, os jovens são assim, eternos inconformados e reativos a sustos, não é mesmo?

Ainda talvez, mas bem possível, nossos bravos cientistas sejam capazes de isolar a superestrutura desse sistema de toda e qualquer ameaça atmosférica e/ou cósmica, preservando a integridade de suas operações, e tecnólogos de todas as especialidades, interdisciplinadas, venham a desenvolver os meios bioquímicos e/ou analógicos possíveis de tornar os futuros vencedores da morte inteira e completamente satisfeitos com sua condição, naturalizando todos os hoje imagináveis questionamentos filosóficos. Vamos supor.

Nesse caso, convenhamos, teremos definitivamente saltado para trás na História. Em vez de uma sociedade controlada pelo Estado ou pelas Corporações, como hoje ocorre, teremos uma sociedade planetária autorregulada, muito parecida com aquele mundo antecipado por George Orwell, com um ou dois detalhes:

1 – Supondo que o ingresso à imortalidade venha a ser progressivo, o que parece bem razoável, ao menos a primeira geração de imortais receberá tal benefício (?) de alguém, sendo mais provável que venha a ser uma corporação governante mundial. Ou seja, mesmo que seja um colegiado de sábios ― ou, pior, uma máquina que emule todo o conhecimento acumulado dos sábios ―, esse alguém ou algo estará no controle.

2 - Nesse mundo novo (?) os males físicos e mentais terão sido completamente debelados e ninguém deles morrerá, para sempre. O que nos traz, de imediato, um questionamento de ordem cosmológica: Se nem mesmo as estrelas sonham com a possibilidade de serem imortais, e certamente não o são, como conviveremos nós com esse paradoxo fundamental?

Imaginemos outro cenário: a possibilidade de que, sim, os novos conhecimentos disponíveis permitirão que o planeta venha a ser capaz de prover o sustento de 8 bilhões de eternos jovens (aos números de hoje, 2021, repito). Neste caso, tratar-se-ia apenas de manter o aperfeiçoamento das tecnologias necessárias e todos, absolutamente todos, seguiriam felizes pela eternidade afora. Ou, talvez, não venha a ser bem assim, pois um aspecto que não precisou ser levantado na hipótese anterior, seguramente se impõe nesta segunda:

Como serão as relações afetivas entre esses bilhões de eternos jovens? Em que momento da história anterior do planeta as relações emocionais do ser humano alcançaram algum grau aceitável de harmonia, para que venha a ser espelhada, com sucesso, nesse imaginado mundo de eternos jovens? Ah, sim, haverá uma solução multi-tecnológica para isso, a qual podemos dar o nome provisório de total satisfação induzida. Mas, quem administrará tal solução? E, mesmo que venha a ser autoadministrada, ela não estaria mais parecendo uma lobotomia química, aquela nossa velha conhecida?

Junte esses questionamentos àqueles elencados acima, em especial os de nº 1 e 2, e teremos um grande problema ao invés de uma solução. O fato é que inúmeras questões podem ser levantadas a partir da possibilidade da eternização da vida humana. Todas, seguramente, afinal terão de levar em conta o fato de que as vidas a serem eternizadas têm suas raízes fincadas nas entranhas físicas e mentais do homem primitivo, acrescidas das vivências de todos os homos que o sucederam, até o sapiens moderno (falo de 2021), este chamado de ser humano.

Não dá para ignorar a dura realidade: Mesmo que o homo do futuro venha a ser 100% biônico, dotado das memórias de vida que puder e quiser escolher, dentre tantas que um servidor quântico universal esteja programado ― veja bem, programado! ― para processar e a ele disponibilizar; mesmo que esse afortunado (?) ser mande às favas as questões filosóficas e/ou cósmicas (afinal, se as estrelas são mortais, que se danem as estrelas…), ainda assim ele estará a mimetizar as nuances cognitivas da espécie que lhe deu origem. Ou será uma outra coisa, não homo. E, neste caso, não nos interessa mais saber o que seja. Vá com deus!, como dizemos no Brasil. Ou, talvez, vá como deus!

Concluo, por enquanto: Mais do que termos a vida eterna como meta ― o que, por si só já é uma forma paroxística de egoísmo e presunção, duas das expressões de nossa imaturidade e fraqueza de caráter ―, muito melhor será (espero!) desenvolvermos meios e modos de aprimorar a prática da ética na espécie que o azo nos fez integrar. E para isso, sem dúvida, utilizarmos de todos os recursos que a ciência de hoje e do futuro for capaz de nos oferecer. Isso é uma utopia, uma ingenuidade? Penso que nem uma coisa, nem outra. Ou melhor, penso que é um caminho mais exequível e realista do que a conquista da imortalidade.


"Do que se fazem as salsichas" - Brasil