Silêncio por favor
Enquanto esqueço um pouco
a dor no peito
Não diga nada
sobre meus defeitos
Eu não me lembro mais
quem me deixou assim
Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas
E nada mais nos braços
Só este amor
assim descontraído
Quem sabe de tudo não fale
Quem não sabe nada se cale
Se for preciso eu repito
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito
Esta canção, na interpretação minimalista de seu autor, Paulinho da Viola, ou no canto construído de Marisa Monte, é a concreta possibilidade de se produzir beleza. Nela estão reunidos precisão poética e modernos recursos formais, numa demonstração de que a maestria artística não se limita ao ambiente ‘erudito’, ou de ‘vanguarda’. Também pode estar no ‘popular’.
A expressão organizada de estados emocionais — a que denominamos arte —, bem como sua fruição, constituem atributos exclusivamente humanos. Categorizá-los de acordo com a origem social de seus produtores e, pior ainda, conforme o público a que se destina, são comportamentos típicos de mentes arrogantes.
A invenção, nas artes ou nas ciências (estas mesmas uma forma de arte — leia 'Ars Humanae' quântica), independe da origem social de seu produtor. Certamente que o acesso à educação e à cultura pode lhe proporcionar alguma vantagem, ou oportunidade, mas não necessariamente.
O que está na essência do inventor, ou mesmo do mestre — admitindo-se a categorização do poeta e crítico Ezra Pound (1885-1972) —, é o talento natural e as habilidades aprimoradas daquele que organiza e emite a mensagem (artística ou científica). É a genialidade da raça.
Paulinho da Viola, que tomei como exemplo, é mestre no ofício de depurar emoções em precisas palavras; desvendar a essencialidade humana; mostrar que é possível ser popular e universal.
Quê importa sua origem social, ou se ele possui atributos formais além daqueles que o permitem se expressar em textos depurados e sons organizados? O que tem valor é a qualidade fina de sua obra; seu poder de emocionar, inquietar e suscitar reflexão, independente da educação e da cultura de seu público. Como tantos outros dessa estirpe (preste atenção no solo do cuiqueiro, na versão de Marisa...).
Categorizar os indivíduos — em especial produtores de artes — segundo suas aparências, origens ou o meio em que circulam, é uma atitude desinteligente, um vício civilizacional adquirido e que não conseguimos abandonar. Mas também é, e principalmente, uma muleta social e um biombo moral para esconder nossa própria ignorância e limitação.
A escrita é a grande invenção. Foi a escrita, na verdade, aquilo que transformou um certo ser irracional em humano, esta espécie que domina o planeta para o bem e para o mal. Com a escrita, apenas, este blog se propõe a analisar e opinar sobre alguns dos principais temas da atualidade, no Brasil e no mundo, como qualquer cidadão faz ou deveria fazer. Meu nome é Oswaldo de Mello. Sou jornalista.
Ignorância e limitação
Nosso primeiro passo
Da mesma forma que — como observou alguém falando da opressão imposta pela grandeza de New York aos seus visitantes, ensinando que para capturar e se apropriar do espírito da metrópole era preciso olhá-la de seu ponto mais elevado —, para internalizar nosso pertencimento ao Cosmos é igualmente necessário que observemos a Terra do ponto mais distante que nos for possível.
Isto, quase por milagre, nos foi proporcionado em 1990, conforme mencionei em texto anterior — “Tributo a Sagan” —, mas pode ser revisto e compreendido aqui: “Pálido Ponto Azul”.
O que nossa espécie precisava para alçar um novo patamar cognitivo — e a partir dele iniciarmos nossa jornada de amadurecimento mental e espiritual — era de um evento dessa magnitude e força de convencimento. Pois há 35 anos o temos. É urgente reconhecer seu valor e utilidade.
Alguns dizem que a disposição de nos voltarmos para o Cosmos só ocorrerá após imenso cataclismo, seja ele provocado por nós (pandemias geradas por desequilíbrio ecológico, desastres ambientais produzidos pela crise climática, histeria planetária decorrente de entropia comunicacional, guerra nuclear…), ou proveniente do espaço (choque de um grande meteoro, tempestade solar…). Mas, a partir dessa experiência que Sagan nos proporcionou, não precisa ser assim.
Penso, como tantos outros, que se aquelas imagens (e seu significado) forem mostradas, analisadas e contextualizadas para crianças, adolescentes e jovens, ao longo do processo educacional e com a profundidade adequada a cada faixa de idade, algum impacto humanístico relevante haveremos de alcançar.
Se nossa sina é “vivermos imersos nessa quase maldição de pensar em saídas, sem vislumbrar luz; conscientes de que tal circunstância, em si mesma, é uma daquelas necessidades básicas que nos estão determinadas” — ou seja, das quais não podemos declinar —, que abracemos conscientemente esta inevitabilidade existencial.
A luta não continua. A luta é agora!
Ela deve se dar primeiro em nossas mentes; impor-se à nossa vontade cotidiana e mundana, de sol a sol; sem que percamos da vista e da vontade o imperativo categórico ético anunciando por Immanuel Kant (1724-1804), que define uma ação como correta se a sua máxima (o princípio por trás da ação) puder ser universalizada, ou seja, se puder ser aplicada como uma lei a todos os seres racionais sem contradição.
Temos já bastante poder de discernimento para pôr em prática o processo de resgate da espécie humana. Ele começa pelo autoconvencimento da essencialidade de nossa conciliação com o Cosmos.
Esta jornada terá início com o primeiro passo. Sua disseminação para segmentos mais amplos da sociedade se dará de forma estruturada, orgânica e pacífica, em oposição à demência a que estamos submetidos neste exato instante da História.
Esta é a nossa ‘reação igual e oposta’; nossa aplicação racional e possível da 3ª lei de Isaac Newton (1643-1727).
Sempre o outro
Pensar é só pensar. Digo isso, quase citando na íntegra Millôr Fernandes (1923-2012), depois de reler o último texto que aqui postei — “O caminho da intuição” —, na linha das ideias e objetivos de tantos dos meus textos e livros já publicados. E confesso que encontrei pela frente, alto e nítido, o muro maciço desta evidência existencial concreta: não temos saída.
Estamos irremediavelmente aprisionados às demandas da vida material, cotidiana, a via do prosseguimento, como um dia nomeei — aquela que se impõe, de sol a sol, sem nos deixar tempo nem espaço para empreendermos qualquer tentativa de fuga deste labirinto em que nos encontramos.
Nossos pensamentos acerca da conquista do amadurecimento mental de nossa espécie não passam de hipóteses, reflexões de certa forma presunçosas, pois se trata tão somente de pensar sem consequências, sem as ações requeridas.
Parece ser verdade que a tomada de consciência de nosso status cósmico — coisa que tenho defendido em todo lugar — tem, terá ou teria o poder de realizar a necessária inflexão mental que nossa espécie necessita. A questão é como essa maravilha se dá, dará, ou daria.
Não será — e aí se encontra o ‘muro’ — através de palavras faladas ou escritas. A poder de convencimento da linguagem é limitado. Não há argumento capaz de superar a imposição das necessidades básicas da existência — a tal via do prosseguimento.
No resumo da ópera, o que prevalece é o grito da fome, da sede, dos sofrimentos físicos e psicológicos, das inseguranças pessoais e sociais, do abandono, e não menos da sexualidade mal resolvida.
Impossível competir com tais demônios concretos, onipresentes, carnais.
O que é isso, uma renúncia, uma confissão de fracasso, o fim da História? Não, ainda, pois tanto quanto as exigências do corpo e da mente, está na essência do ser humano conjecturar sobre outras e melhores possibilidades existenciais.
Irônico, vivermos imersos nessa quase maldição de pensar em saídas, sem vislumbrar luz; conscientes de que tal circunstância, em si mesma, é uma daquelas necessidades básicas que nos estão determinadas...
Desconhecemos o tempo que nos resta para encontrar a solução desse mistério. E, como indivíduos imaturos, que somos, seguimos esta jornada inconsequente, formulando ideias libertadoras sem realmente nos determinarmos a construir a tal conciliação cósmica; consumidos pelas imposições da via do prosseguimento.
Tenho defendido aqui, desde o começo, e nos meus livros também, que essa conciliação subordina-se à conquista de nossa maturidade. Continuo pensando assim, mas o que agora percebo, de forma cristalina (e para mim sempre dramática), é que não seremos capazes de cumprir essa tarefa; ao menos na ordem de eventos que eu imaginava, ou desejava; não ao menos até onde minha vista alcança no futuro.
Queremos que o outro venha nos resgatar.
O outro. Sempre o outro.
O caminho da intuição
O prosseguimento de nossa existência depende da superação dos desafios impostos a este ser imperfeito e finito, nos três planos em que a luta se desenvolve: físico, mental, espiritual.
Esta é a nossa condição incontornável e o nosso único caminho: lutar em prol da preservação do corpo, do equilíbrio da mente, de nossa conciliação com o cosmos. Não deveria haver um ordenamento nessas 'frentes de batalha’, mas é assim que está posto e só nos cabe ‘combater’.
Primeiramente, é preciso destacar que viver nos cobra compromisso intransferível com as experiências proporcionadas pelos nossos sentidos. O mundo conforme o entendemos é fruto do modo como o vemos, ouvimos, cheiramos, saboreamos e sentimos, embora essas vivências não sejam suficientes para nos elevar acima e além dos condicionamentos primários (estes que também garantem a existência reativa de outras espécies). Falta-nos a intuição.
Há de se reconhecer que no plano físico algum sucesso alcançamos. Hoje vivemos mais; muitas doenças estão sob controle; e temos meios para saciar a fome de todos que habitam a casca deste planeta (só não o fazemos porque o egoísmo nos impede).
No plano mental, porém, continuamos distantes da maturidade; não por falta de percepção das fraquezas que nos dominam — nós as conhecemos! —, mas porque ainda não fomos capazes de mapear e neutralizar as motivações e os gatilhos que nos mantêm emocionalmente rebaixados (o egoísmo apontado acima, por exemplo).
O fato de nos inconformarmos com o que somos (imperfeitos e finitos), e por isso vivermos em estado de permanente angústia, ainda que sufocada, resulta de ainda não termos alcançado a conciliação no plano espiritual. Este talvez seja o maior dos nossos desafios, porque, uma vez enfrentado, produzirá benéficos efeitos sobre os planos físico e mental. Mas, reafirmo o que tenho dito (e tantos outros dizem): formular e praticar religiões não foi e não será uma opção; constatar e aceitar isso tem sido um longo, lento, e doloroso processo.
As dores e os prazeres decorrentes da luta nesses três planos, tendo o físico como predominante, constituem perdas e ganhos essencialmente nossos, individuais. Ainda que a ideia de livre arbítrio seja um equívoco, pois somos determinados por sucessivos e interconectados fatores sobre os quais não detemos qualquer poder (combinação genética, origem geográfica, meio social, condição familiar etc.), as escolhas que a cada instante fazemos são exclusivamente nossas. E são nossas porque não são outros que as praticam, mas nós mesmos, seus agentes — quer resultem em flores ou espinhos. É simples assim!
Quanto menos negarmos que a vida é luta; quanto menos rejeitarmos nossas responsabilidades no protagonismo dessa luta; quanto menos ignorarmos as relações de causa e efeito decorrentes das ações que protagonizamos; quanto menos nos distrairmos perseguindo crenças, esperanças, quimeras fugazes; quanto menos nos perdermos entre o que nossos sentidos oferecem e o que desejamos que eles nos proporcionem, mais municiaremos a intuição a nos oferecer novos entendimentos sobre nossa existência. E com mais harmonia avançaremos nos três planos de luta.
Avançaremos para melhor?
Essa é a questão sem resposta. Primeiro é necessário definir o que compreendemos por "melhor".
Tributo a Sagan
John Lennon, aquele velho romântico do rock and roll planetário dos 1960-70 (hoje teria 85 anos), cantou até a exaustão que ‘de amor é o que cada um de nós precisa’. Hoje sabemos que as coisas da vida não são bem assim. Não é de ‘amor’ que cada uma das pessoas deste mundo carece, mas de pensar.
Pensar é mais difícil do que amar. O amor decorre de processos neurológicos associados à empatia entre indivíduos; de compromissos sociais; de interações químicas — nada disso está sob nosso controle; são manifestações espontâneas, individuais, irracionais.
Pensar é diferente. Exige abstinência das distrações que subvertem nosso momento (tais quais as guloseimas, que devemos evitar, pois sequestram nossa fome); pede desprendimento para considerar posições contrárias (pois a força de um argumento independe de ideologias, é uma questão de lógica); e também requer tempo e ambiente propício (porque o pensamento é incompatível, por exemplo, com uma chaleira chiando na cozinha).
Essas são algumas das condições para se obter reflexões produtivas. A crescente ausência desses fatores subjetivos e/ou objetivos talvez explique o porquê do pensamento filosófico deste nosso tempo não superar as melhores ideias formuladas pelos filósofos do passado.
O fato é que, desde o início do século XX, quando já se definiam as linhas mestras da cultura de massas, instalada no mundo após a II Guerra Mundial — tendência antecipada por Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650) —, o que temos tido são sucessivos intelectuais dedicados a gravitar em torno dos antigos teóricos.
Sim, alguns têm sido ousados e esclarecedores — cito Sigmund Freud (1856-1939), Carl Gustav Jung (1875-1961), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Zygmunt Bauman (1925-2017), apenas para ficar nos meus preferidos —, mas, talvez por ignorância minha, não enxergo em nenhum desses, e em outros, desde a virada do século XIX para o XX, a condição de propositores de passos à frente na compreensão da existência humana.
Onde vi alguma luz foi na iniciativa de astrofísicos, como Carl Sagan (1934-1996), que insistentemente nos apontou o caminho do Cosmos, e no dia 14 de fevereiro de 1990 conseguiu que a Voyager I direcionasse suas câmeras para o espaço atrás, já percorrido, capturando uma sequência de 60 imagens inéditas da Terra, pouco antes de mergulhar para além do Sistema Solar.
Esse evento transcendente (naquele dia a Voyager I, lançada doze anos antes, se encontrava a 6 bilhões de quilômetros do nosso planeta) deveria ter despertado “mais e melhores” reflexões filosóficas, pois nos proporcionou a inédita e inestimável prova da insignificante presença cósmica do ser humano, em contraste com nossa imensurável imodéstia.
Não foi o que aconteceu. Sagan lançou muitos livros, produziu incontáveis artigos, proferiu inúmeras conferências, mas seu enlightenment cosmológico ficou restrito ao campo das curiosidades, nunca tendo superado a arrogância dos ‘pensadores autorizados’ a interpretar nossa existência.
Esquecem-se esses ‘intérpretes’ que tem sido a prática da ciência, desde as eras primitivas (quando ainda nem de ciência se falava), a responsável por puxar os fios da cognição humana. Pensar é preciso. Mas para pensar “mais e melhor” é necessário ter os pés plantados na Terra. Ainda que a Terra não passe de um “pálido ponto azul” perdido no espaço.
Nós as comemos
O que somos nós, seres humanos, sob o ponto de vista estritamente biológico? Até prova em contrário, descendemos do Homo neanderthalensis e do Homo sapiens, ambos originários da grande família Hominidae, surgida há 7 milhões de anos na África. Éramos, então, animais onívoros, ou seja, nos alimentávamos de vegetais e carnes.
O vegetarianismo tem suas referências mais antigas no Hinduísmo (2.200 a.C.) e no Budismo (1500 a.C.), quando era recomendado, mas não imposto aos seguidores dessas religiões. Na antiga Grécia, por influência de filósofos, uma parcela da sociedade passou a se alimentar preferencialmente de vegetais, sob a justificativa de promover a “benevolência entre as espécies”. À frente desse entendimento estavam Pitágoras (c.570 a 495 a.C), Platão (428 a.C. a 347 a.C.), Epicuro (341 a.C. a 271 a.C.) e Plutarco (46 d.C. a 120 d.C.) — Pitágoras, inclusive, ficou conhecido como “pai do vegetarianismo ético”.
A prática continuou durante o Império Romano (27 a.C. a 476 d.C.), especialmente entre filósofos e religiosos, mas se perdeu durante a Idade Média (476 d.C. a 1453 d.C.). A partir do Renascimento (1400 d.C. a 1700 d.C.), com a valorização da cultura grega clássica na Europa, o vegetarianismo foi retomado e defendido também por grandes pensadores, como o francês Voltaire (1694-1778) e o norte-americano Henry David Thoreau (1817-1862). “Em 1847 — conforme a revista National Geographic — foi fundada a primeira sociedade vegetariana no mundo, na Inglaterra, e em 1889 se criou a International Vegetarian Union”.
Desde então, o vegetarianismo (prática mais moderada) e o veganismo (sua versão radical, surgida oficialmente em 1944, que exclui a ingestão ou utilização de todos os alimentos ou objetos de origem animal) não pararam de se expandir. Nos dias de hoje, imensa parcela da sociedade se declara escandalizada, até mesmo enojada, com o consumo de carnes, tendo excluído a proteína animal de sua dieta.
Sabe-se, no entanto, que ‘adotar um estilo de vida ativo é essencial para se manter saudável, e que isto requer ganho de força e massa muscular. Para isso, é necessário estimular a síntese proteica no músculo. Os dois principais estímulos são o exercício de força e a proteína alimentar. Mas o primeiro também aumenta o catabolismo proteico (a degradação de proteínas) no músculo. Por isso, um aporte nutricional que garanta um saldo proteico positivo (em que a síntese seja maior do que a degradação) é essencial. Assim, em teoria, a proteína animal é considerada melhor para ganho de massa e força muscular’, explicam especialistas ouvidos pela BBC.
Nos primórdios de nossa ancestralidade, o ‘ganho de força e massa muscular’ foram essenciais na luta pela sobrevivência. Se essas condições não estivessem presentes no metabolismo daqueles indivíduos, através do consumo da carne de animais, provavelmente nossa espécie não teria seguido adiante e construído uma História.
Portanto, conforme o Hinduísmo, o Budismo, os antigos gregos nos ensinaram, e as pessoas sensatas costumam recomendar, a sabedoria não está nos extremos. Enquanto a ciência não for capaz de produzir proteína sintética equivalente a animal, o consumo de carnes continuará necessário, de preferência com moderação. E não nos esqueçamos de que as plantas, embora não sintam dor, também são seres vivos.
Elas emitem sons em situações de estresse; comunicam-se por uma rede subterrânea de fungos; partilham nutrientes com suas vizinhas; produzem substâncias químicas para atrair predadores dos insetos que as atacam — ou seja, pedem socorro. Ainda que sua seiva não seja vermelha como o sangue animal, elas são tão dignas de “benevolência” como os bichos que abatemos. E mesmo assim as comemos.
Nosso cárcere suave
Ouvi hoje meu neto mais novo, o Otto, prestes a completar 7 anos, exercitando sua recente conquista: a capacidade de ler palavras e compreender mensagens contidas em seus livrinhos de histórias.
Feliz com o significado desse momento, o que me ocorreu de imediato foi a importância transcende do processo de invenção da linguagem falada, e depois escrita, para o desenvolvimento cognitivo da nossa espécie. Ainda que sobre sua origem só nos restem suposições, tal mistério se assemelha à pergunta que se faz a respeito da matemática: ela foi descoberta ou inventada? Com uma agravante: superando a linguagem dos números, a linguagem dos signos revela inegáveis fragilidades e insuficiências.
Prova disso é que — muito mais do que a matemática, cuja expansão tem proporcionado o incessante desenvolvimento das ciências e a interminável revolução tecnológica — a linguagem dos signos e dos significados tem fracassado naquilo a que exatamente se propõe: promover o entendimento entre os seres humanos. É sobre isso o Capítulo III do meu primeiro livro — “Do que se fazem as salsichas” —, parcialmente reproduzido abaixo:
A linguagem codificada é um confortável obstáculo ao avanço da nossa espécie. Com a invenção e o desenvolvimento dos idiomas falados e, mais ainda, com suas representações escritas e depois amplamente reproduzíveis, fomos capazes de exprimir conceitos, transmitir experiências, disseminar ensinamentos, definir contratos, construir uma civilização.
Porém, embevecidos com os sons que passamos a produzir, as ideias e os conceitos expressados, deixamos de perceber que ela, a linguagem, é incapaz de transmitir a complexidade da compreensão que os nossos sentidos e intuição, associados, alcançam. Como tantas (todas?) as invenções humanas, a linguagem é limitada, enganosa, intangível, imensurável em seu significado.
Alguém já questionou sua precariedade para cumprir plenamente seu papel como código a serviço do entendimento entre as pessoas, mesmo aquelas detentoras de repertórios equivalentes e pertencentes aos mesmos estratos culturais e sociais, ainda que contemporâneas das mesmas experiências.
Todos os atos e produtos humanos são passíveis de avaliação e quase sempre se revelam falhos, ou fraudulentos. Já a linguagem, ela própria uma das primeiras e fundamentais invenções (ou descobertas) humanas, condição indispensável para a evolução da nossa espécie (embora ainda haja dúvida se de fato isto que temos é evolução), esta resta majestosa, depositada num Olimpo inquestionável. E, no entanto, porém, não obstante, a despeito da crença cega em seus poderes, trata-se de uma ferramenta insuficiente e, por isso, se não fracassada, ao menos passível de muitos aprimoramentos.
Quando nos dedicamos a quaisquer tentativas de produzir esclarecimento, o que brota dali (e daqui, reconheço!) são borrões, rascunhos de percepções, interpretações equivocadas. Por isso, construir uma comunicação por meio exclusivo das formas de linguagem de que dispomos pode até ser nobre tentativa, mas, convenhamos, é uma tarefa frustrante. Vejam estes tempos que nos cercam. Quanto entendimento pode ser obtido, neste exato instante, por meio do uso da linguagem falada e escrita, em qualquer mídia (media) que se queira utilizar?
Não culpemos nossos antepassados mais remotos, aqueles que do grito, da associação de ideias primárias e da mimetização dos ruídos produzidos por seus próprios corpos e pelo ambiente que os cercava desenvolveram magníficos códigos, significantes de tantos sentimentos e instigadores de tantas ações. Foram heroicos aqueles seres. Graças ao modo e ao método com que responderam ao desespero de suas existências, alguma oportunidade civilizatória se abriu para nossa espécie.
Mas, o fato é que, veja, estamos encarcerados pela linguagem, presos ao que os textos e as falas podem, precariamente, nos dizer. Nem mesmo o que nos chega por intermédio de imagens e de sons organizados, como a pintura e a música (também elas linguagens); nem mesmo o que nossos músculos espontaneamente expressam (o que se apresenta como uma outra forma de comunicação) somos capazes de valorizar, pois a linguagem lida/ouvida tornou-se a nossa prisão, a chancela do nosso (des)entendimento.
Com a linguagem constituímos um modo de ser e sobreviver, e a isso denominamos civilização. Mas não fomos capazes, ainda, de aceitar a fragilidade de sua simbologia para enfrentar a grande tarefa de nos situarmos no espaço-tempo. Daqui de dentro deste código, no mesmo instante em que o utilizo e enquanto agradeço a tantos que o criaram, desenvolveram e aperfeiçoaram, não posso deixar de nele reconhecer os contornos de um cárcere suave. E, no entanto, um cárcere.
Vejam como são as coisas
Dizem historiadores que, ao contrário do que se convencionou, a primeira povoação do nascente Brasil, no início do século XVI, teria sido Cananéia, surgida cinco meses antes da fundação de São Vicente (a 22 de janeiro de 1532), hoje tida como a “célula mater na nacionalidade”.
Alguns atribuem o nome à palavra tupi kanindé, ou kaniné, um tipo de arara existente na região, aportuguesada ao longo do tempo para Cananéia. Ocorre que, em 24 de janeiro de 1502, dois anos após a ‘descoberta’ do futuro Brasil, uma expedição exploratória tendo à frente Gaspar de Lemos e Américo Vespúcio — destinada a reivindicar e demarcar as novas terras para Portugal — teria nomeado a região como Barra do Rio Cananor. Talvez em homenagem à importante cidade portuária de mesmo nome, localizada na costa sudoeste da Índia, dedicada ao comércio com a Pérsia e Arábia nos séculos XII e XIII.
Dizem também que em 1531, quando Portugal enviou uma nova expedição, sob o comando de Martim Afonso de Souza, o local não se chamava Kanindé, ou Kaniné, mas Maratayama (mara = mar e tayama = terra, ‘onde o mar encontra a terra’).
Fato curioso é que a mesma expedição exploratória de Lemos e Vespúcio, a de 1502, teria trazido de Portugal uma ‘figura obscura, o degredado português Cosme Fernandes’, desterrado exatamente naquela localidade, onde se tornou personagem poderosa.
Há controvérsias sobre o verdadeiro nome de Cosme Fernandes; sobre quem o trouxe de Portugal; e até mesmo sobre a data em que ele aqui chegou. Mas o que se dizia, à época, era que a ilha de Cananeia havia se tornado ‘um verdadeiro depósito de degredados’, destinado a povoar os limites portugueses, ao Sul, do Tratado de Tordesilhas (firmado entre Portugal e Espanha em 1494). Degredados ‘eram pessoas condenadas pela justiça ou pela Inquisição a cumprir pena no exílio. E não só criminosos comuns, mas também presos políticos e cristãos-novos perseguidos’.
Cristãos-novos era a designação dada a judeus e muçulmanos convertidos à força ao cristianismo na Península Ibérica, especialmente a partir do final do século XV. Ou seja, Cosme Fernandes (ou Cosme Fernandes Pessoa, ou Duarte Perez) pode muito bem ter sido um cananeu, denominação dos indivíduos vinculados à antiga Canaã (atual Israel e Palestina, vejam só!), uma das mais antigas civilizações da história da humanidade.
Muitos degredados eram jovens, fundamentais para a ocupação dos primeiros povoados, contribuindo com suas habilidades de negociação e força de trabalho para o desenvolvimento das terras além-mar. Mas, como a História é cheia de surpresas, Cosme Fernandes, o Bacharel de Cananéia, nunca prestou obediência à coroa portuguesa. Passou a combatê-la e, na opinião de muitos, inaugurou o espírito indômito que marcaria a alma do povo de Santos [*], São Paulo, a cidade-sede da região.
[*] Meu livro “Sonífera ILHA” conta em 100 páginas a história de como o caráter combativo do santista se estabeleceu, e foi substituído pela apatia desde a segunda metade do século passado.
Não vale “poder e riqueza”
Ouvi nesses dias de um iraniano (Nima R. Alkhorshid), em conversa com um norte-americano (Larry C. Johnson) — Dialogue Works —, analistas de geopolítica, estimulante reflexão sobre o valor do nacionalismo. Ambos concordaram nos seguintes termos:
Nima: “Se você se ama, então é capaz de amar outras pessoas também. E de certa forma, o nacionalismo remete a esse conceito. Se você ama o seu país, consegue entender que outras pessoas também amam o país delas. É por isso que você pode encontrar um terreno comum para trabalhar com outras pessoas, ao invés de tratá-las como diferentes. Sim, elas são diferentes porque são brasileiras, norte-americanas, mas no fim das contas todos são seres humanos, que podem se unir, trabalhar juntos, encontrar um terreno comum para atuar. Mas antes de amar a si mesmo e ao seu país, você não é capaz de dar amor ou amar qualquer outra nação, qualquer outro povo”.
Larry: “Você já conheceu alguém que realmente se odiava e por causa desse auto ódio se envolvia em todo tipo de comportamento autodestrutivo. Os mesmos princípios, eu diria, se aplicam aos países. Então, quando você realmente coloca a si em primeiro lugar, parece egoísmo, mas quando você lida com outro país que também está se colocando em primeiro lugar, é aí que entra a arte da diplomacia. Você descobre no que podemos concordar, o que podemos fazer juntos que vai melhorar a situação de ambos. Porque o mundo não foi construído para ser apenas um jogo de soma zero, onde eu ganho e você tem de perder. E é isso que estamos enfrentando agora”.
Nima, que vive no Brasil, e Larry, nos EUA, traduzem nesse diálogo um aspecto daquilo que tentei expor no texto Destinados a ser. Os dois partem da aceitação fundamental de que, tendo nascido aqui, ali ou acolá, todos somos seres humanos, pertencemos à mesma espécie, habitamos o mesmo planeta.
Mas a conversa traz outra oportuna constatação: o fato de estar disponibilizada na internet, ao alcance de milhões de pessoas, contando inclusive com tradução em áudio realizada com recursos de Inteligência Artificial (IA).
Este é, sem dúvida, o maior valor que a comunicação global nos tem proporcionado — a oportunidade de democratizar o acesso a questões fundamentais da existência, numa demonstração de que tais assuntos não se destinam a ambientes fechados, nem a ouvidos privilegiados. Se bem explicados, todos podem entender.
Por isso, o lado sombrio e destrutivo da internet, tanto quanto o potencial disruptivo da IA, não podem servir de argumento para condená-las. Temos de dialogar a fim de desenvolver meios e modos de assumirmos o controle social sobre o uso desses recursos, pois seus potenciais são imensos. Nesse diálogo, a principal pergunta a ser feita é: O quê nos motiva a desenvolver essas tecnologias? Não vale a resposta “poder e riqueza”.
O que se ilumina
Karl Marx, na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1844), afirma: “A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória”.
Camille Paglia, no livro Imagens cintilantes (2013), escreve: “Respeito todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas de símbolos que contêm uma verdade profunda sobre a existência humana. Embora em seu nome se tenham cometido males, a religião tem sido uma força enorme de civilização na história do mundo”.
Não tenho o objetivo, aqui, de buscar validação para minhas reflexões a partir das ideias de pensadores consagrados. Quero, com as citações acima, apenas destacar interpretações amplamente difundidas, mas que, a meu ver, são igualmente insuficientes ou equivocadas.
Paglia, tocada pelo espírito deste tempo, apresenta um entendimento condescendente do fenômeno religioso; Marx, submetido ao espírito de seu tempo, primeira metade do século XIX, expressou uma oposição que hoje sabemos desfocada do mesmo fato. O ‘pecado’ em que se equivalem (por insuficiência das análises, repito) é a redução da espiritualidade a suas manifestações mundanas, apesar de milenares — as religiões.
Ocorre que em 12 de abril de 1961, quando a nave russa Vostok 1 lançou-se ao espaço, levando a bordo Yuri Gagarin, um ser humano, o que se rompeu não foi apenas a imensa força gravitacional deste planeta. Ao longo dos 64 anos que nos separam daquele feito científico-tecnológico-transcendente temos aprendido que a Terra não nos pertence, mas dela fazemos parte e juntos integramos o Cosmos — esse é o outro e mais importante rompimento ocorrido naquele dia, e que relutamos em aceitar.
Segundo essa compreensão, a ideia de religião se esvazia, não sem antes produzir as agitações e violências naturais das agonias que antecedem todo fim inconformado. Paulatinamente, o ser humano deixa de se curvar às misérias terrenas em busca de redenção.
Não estamos mais subjugados aos desígnios d’Ele, seja Ele quem se queira, em cada manifestação monoteísta. Assim, não precisamos cultivar esperanças — “felicidade ilusória”, como apontou Marx; ou condescender com seus “males”, como admitiu Paglia. O futuro pertence a cada um nesta casca de planeta. Ele é intransferível, e o presente é o nosso instrumento para construí-lo.
Essa visão nos assusta, mas também estimula. Se de um lado retira nossas muletas e justificativas milenares, de outro nos liberta desses grilhões; desvela o modo como as coisas da existência são (e sempre foram); e nos coloca frente as consequências de nossas imediatas escolhas.
O fato que vai se iluminando é que não há mais de se falar de religiões “enquanto felicidade ilusória”, ou “força enorme de civilização”. O mal do mundo está exatamente aí: tomar religião como sinônimo de espiritualidade.
Destinados a ser
Os patéticos embates políticos que ocorrem no Brasil [Sem Anistia!, é bom que se grite], tanto quanto os conflitos geopolíticos que assombram o mundo, são apenas mais do mesmo — distração daquilo que é a essência do nosso irresolvido dilema existencial. Isto me parece evidente, mas vou tentar me explicar.
O que justifica o caos em que nos encontramos? Ele não resulta exclusivamente de que há 12 mil anos o nomadismo (subsistência obtida pelo extrativismo) passou a ser substituído pelo sedentarismo (desenvolvimento da agricultura e pecuária), com o estabelecimento de relações humanas mais complexas, calcadas em hierarquias e desigualdades sociais.
Antes mesmo dessa radical mudança de paradigma — que 10 mil anos adiante fundamentaria a poderosa interpretação da História proposta por Karl Marx e Friedrich Engels —, os indivíduos originários já carregavam, em si, este que é o germe fundador da existência do Homo sapiens: viver sem porquê.
É sabido que a ‘via do prosseguimento’ exige de nós completa dedicação à luta pelo viver, em tudo que isto implica: saciar a sede, aplacar a fome, combater as dores físicas, usufruir da sexualidade, minorar os sofrimentos mentais, procriar, controlar os desconfortos impostos pelo ambiente etc. Essas são necessidades imediatas e incontornáveis.
Na interseção das demandas do viver com a fragilidade exposta pelo porquê — ou seja, na 'terra sem lei' povoada pelo sem —, o que se impõe é a busca desesperada pelo apaziguamento de nossas inseguranças existenciais; sem atentarmos para o fato de que todas as saídas (religiosas) tentadas têm basicamente fracassado, pois não aquietam, apenas postergam, nossas incertezas.
Isto é, embora sejamos dominados pela ‘via do prosseguimento’ — esta que se desdobra nos sistemas econômicos, nas disputas políticas nacionais e nos embates geopolíticos que nos cercam, e que absorvem nossas energias, validando a referida distração —, resta latente na psique da espécie o mistério desde o começo posto: viver sem porquê.
A questão seria trágica, caso não houvesse um caminho factível. E ele existe, sempre existiu! Trata-se de rejeitar o dilema que nos foi colocado, acatando a premissa de que, afinal, viver tem porquê.
Aceitar, porém, não é o bastante. É preciso entender e pôr em prática.
Viver faz sentido porque, embora não passemos de poeira cósmica, não há como negar nossa condição de existentes. Mesmo que possamos duvidar do valor (o porquê) de existirmos, e a partir desse questionamento mergulharmos em processos autodestrutivos, ou entregarmos nosso destino ao desconhecido — como temos feito, nos distraindo —, ainda assim continuaremos (para nós mesmos!) a existir, a ser.
E ser não sob o domínio implacável e exclusivo da luta que a ‘via do prosseguimento’ e seus desdobramentos nos impõem; e também não submetidos a recompensas espirituais ilusórias. Mas ser compreendendo, relativizando, superando as razões civilizatórias e amesquinhantes que nos trouxeram até este momento de caos nacionais e planetários.
Somos mais do que isso
Referi-me em texto anterior — O que nos aproxima e motiva — ao chamado “método Paulo Freire”, propondo que ele venha a ser utilizado como ferramenta de transformação da educação formal ampla, tornando-a mais atraente e frutífera no sentido da valorização das competências intuitivas de nossa espécie. Dentre essas competências, destaco a de percebermos, por caminhos lúdicos e compartilhados, a essência geométrica/matemática de uma partida de futebol.
Paulo Freire foi um filósofo e educador brasileiro, natural de Recife, PE, falecido em 1997, considerado um dos mais notáveis pensadores na história da Pedagogia. Lê-se na Wikipedia: “acreditando que todos os homens têm por vocação o ser mais (e não o ser menos), buscava que eles fossem sujeitos de suas ações, atingissem sua plena realização e fossem capazes de transformar o mundo. Em seu principal livro, ‘Pedagogia do Oprimido’, defendeu o diálogo com as pessoas simples, e não a imposição de ideias preconcebidas sobre elas. Trata-se do terceiro livro mais citado em trabalhos acadêmicos de ciências sociais em todo o mundo”.
Pois bem, o que significa utilizar o “método Paulo Freire” como ferramenta da educação formal ampla, tornando-a mais atraente e frutífera no sentido da valorização das competências intuitivas de nossa espécie?
Assim como Freire nos ensinou que o processo de alfabetização se torna mais prazeroso e eficaz quando parte do universo vocabular dos alunos e de suas próprias experiências, da mesma forma entendo que a melhor maneira de motivar o ser humano a compreender sua real inserção no Cosmos — isto é, seu pertencimento ao Todo — é demonstrar, a partir das vivências cotidianas de cada um, o valor de sua humanidade.
Diz-se que, tanto quanto o atendimento das necessidades fisiológicas, cada pessoa busca o reconhecimento de suas competências mentais; e que se essas necessidades (a física e a mental) foram atendidas, o resultado estará mais perto da completude emocional do indivíduo (o que alguns chamam de felicidade), do que de sua imperfeição.
A estrutura de recompensa emocional vigente, desde sempre, tem sido a de valorizar as pessoas pelos conhecimentos que elas formalmente adquirem, prática que eterniza um modelo existencial excludente, pois premia as beneficiadas por fatores que não lhes são intrínsecos (herança genética, nacionalidade, origem social, personalidade etc.), abandonando à própria sorte as não contempladas pelo acaso, e que são a maioria.
Ocorre que essa maioria, como sabemos, são seres humanos iguais, em essência, a todos que habitam a casca deste planeta. E nessa condição potencialmente possuem as mesmas competências cognitivas que os demais — são capazes, por exemplo, de geometrizar/matematizar uma partida de futebol, e com isso se emocionarem.
O que nos falta como sociedade (talvez) é conhecer, ressaltar, desenvolver e expandir as intuitivas competências do conjunto dos indivíduos de nossa espécie. Somos mais do que isso que está aí.
Poeiras pensantes
Retomemos a ideia levantada no texto anterior — O que nos aproxima e motiva —, a propósito da inconveniência, digamos assim, dos seres humanos não se reconhecerem como partes do Todo.
Primeiramente, é preciso definir o conceito. O Todo, segundo a visão panteísta, mas de certa forma também no monoteísmo, é igual a O Tudo, O Uno/Único, Aquele, O Absoluto, O Grande, O Criador, A Mente Suprema, O Bem Supremo, O Pai ou A Mãe Universal.
Sob o entendimento e a prática do monoteísmo, O Todo é O Criador, Aquele que nos concebeu e submete, premiando-nos ou nos punindo, de acordo com nossos pensamentos e atos — devemos-Lhe obediência e descansaremos ao Seu lado, se e quando nos arrependermos de nossos pecados. No monoteísmo estamos em eterna evolução vigiada. Tudo nos foi dado e pode ser retirado.
Do ponto de vista do panteísmo hermético, O Todo é O Absoluto, O Uno que integra a existência humana no conjunto das coisas acessíveis aos nossos cinco sentidos, mas também nas ideias que apenas intuímos, e que têm sido o motor do nosso desenvolvimento cognitivo. Somos o que nos fizermos ser.
Este texto não se ocupa do monoteísmo, pois ele não nos autoriza a pensar com autonomia. Seus dogmas nos submetem.
Muitos sábios já demonstraram — os herméticos do antigo Egito, os gregos que com eles aprenderam, e ainda os velhíssimos construtores das civilizações asiáticas — que nossa espécie não é detentora de qualquer privilégio existencial. Somos tão somente “poeira de estrelas”, como sentenciou o astrônomo Carl Sagan (1934-1996).
E como ‘os átomos que compõem os seres vivos na Terra e o próprio planeta foram forjados no interior de estrelas extintas e posteriormente dispersos pelo universo’, parece intuitivamente demonstrado que integramos O Todo.
Estaríamos, então, existencialmente à deriva, submetidos aos caprichos (ordem) do Cosmos? Como tantos já disseram e dizem, também digo que não. Somos “poeiras”, mas pensantes, e temos, ainda conforme o panteísmo, alguns bons Princípios a seguir, tais como:
Mentalismo: Tudo é uma manifestação de uma mente, sendo o universo a ideia da mente divina;
Correspondência: O que acontece num plano se reflete nos outros, do micro ao macrocosmo;
Vibração: As coisas não são estáticas; tudo está em movimento constante, e a vida é moldada por essa sintonia vibracional;
Polaridade: Os opostos são a mesma coisa em graus diferentes, como quente e frio;
Ritmo: As coisas seguem um padrão de altos e baixos, e é importante buscar o meio-termo e a neutralização para evitar extremos;
Causa e Efeito: Cada ação tem uma consequência, sendo a vida uma relação de sementes e frutos;
Gênero: Os gêneros masculino e feminino regem a criação, tanto nas ideias quanto nos planos físicos e mentais.
O prosseguimento da espécie humana, portanto, depende de que nos reconheçamos como partes do Todo. O resto será consequência.
O que nos aproxima e motiva
Alguém me questionou sobre o porque do texto anteriormente publicado — O futebol nos enobrece —, abordando a paixão produzida por esse esporte entre pessoas das mais diferentes nações e culturas. A explicação é simples: é preciso investigar e refletir sobre tudo o que nos aproxima e motiva.
A espécie humana é um mistério; talvez não haja no Cosmos ser(es) equivalente(s). Mais incompreensível, ainda — porque a solução parece estar ao nosso alcance —, é o fato de até hoje não termos aprendido a lidar com as pulsões que nos movem: Eros e Tânatos, prazer e morte, os extremos identificados por Sigmund Freud (1856-1939) há mais de um século.
Cem anos talvez sejam poucos, quase nada para almejarmos uma inflexão histórica desse porte, qual seja, domar a intensidade de tais extremos. Domar, sim; amansar, refrear, quem sabe administrar, exercer racionalidade sobre eles, pois o que parece inalcançável, e mesmo indesejável, é de alguma forma extirpar tais atributos de nossa psique.
Assim como os medos primitivos parecem ter sido a mola que nos conduziu ao caminho da cognição, e continuam a impulsionar seu aprimoramento ["a dor ensina a gemer", diz o senso comum], a tensão entre criar e destruir parece constituir o fio em que se equilibra a permanência do humano. Aquilo que em outros textos denominei de a via do prosseguimento.
Onde a paixão planetária pelo futebol "se insere nesse contexto", como diziam, com ironia, intelectuais que publicavam no jornal O Pasquim dos anos 1960-70?
Repito: é preciso investigar e refletir sobre tudo o que nos aproxima e motiva. Não será fruto do acaso que metade da população da Terra torça por esse esporte. No texto antes publicado levantei a possibilidade de que isso se deva ao modo como o futebol é praticado.
Ou seja, ao fato de que ele proporciona, tanto àqueles que jogam quanto aos que apenas assistem, a apropriação mental, intuitiva, visceral, instantânea de algumas das 'verdades' mais universais ao alcance de nossa cognição: a agradável percepção da linguagem matemática através da geometria.
Quem assiste a uma boa partida de futebol é capaz de 'antecipar' o melhor movimento dos atletas em campo — para o bem ou para o mal de seus times. Quem está no campo, na peleja, sabe mental e fisicamente, antes mesmo de realizar o movimento, o potencial de sucesso de sua jogada. Só desconhece a capacidade do adversário em neutralizá-la.
Não há verdadeiramente inimigos na partida do futebol ideal (aquela que diminui a participação de indivíduos emocionalmente instáveis, excessivamente oscilantes entre o criar e o destruir); há adversários que se respeitam e ali estão para pôr à prova seus méritos 'matemáticos/geométricos' individuais, ainda que desconheçam formalmente esse valor.
As perguntas que me faço são estas: Não seria o caso de nos dedicarmos a investigar e refletir sobre as competências intuitivas de nossa espécie? A educação formal não seria mais atraente e frutífera se buscássemos sua validação nas manifestações pessoais e sociais espontâneas, radicalizando a aplicação do método* Paulo Freire' (1921-1997)?
Da mesma forma que tantos outros, tenho dito e repito: o ser humano não se reconhece como parte de um Todo. Ou melhor: não se deixa reconhecer. Ou ainda: não lhe permitem que se reconheça. Para rompermos esse impasse existencial, é preciso buscar o que nos aproxima e motiva.
*Está na internet: "O método Paulo Freire busca alfabetizar através de um processo de investigação e problematização da realidade do aluno, utilizando palavras e temas do seu cotidiano para desenvolver a leitura, a escrita e a consciência crítica. As etapas principais envolvem a investigação do universo vocabular dos alunos, a escolha de palavras-chave (palavras geradoras), a criação de situações-problema e a elaboração de materiais didáticos que partem da vivência e dos desafios dos estudantes, visando a transformação social".
O futebol nos enobrece
Gosto de futebol. Torço pelo Santos desde 1963, quando ainda menino cheguei à cidade que lhe dá nome, vindo da então verdejante e decadente Manaus, AM. Mas não é do meu time (hoje combalido) que quero falar.
Dizem os especialistas que o futebol possui 3,5 bilhões de torcedores (quase a metade da população do planeta) e envolve mais de 270 milhões de pessoas no mundo, das quais 265 milhões são praticantes.
O que sempre me intrigou — a partir do momento em que aceitei minha completa e total inaptidão para esse esporte, bem como para todos os demais, coletivos ou individuais — foi a paixão que ele desperta.
Teria sido o franco-argelino Albert Camus (1913-1960), filósofo autor de "O Estrangeiro", "A Peste", "O Mito de Sísifo", entre outras obras, aquele que pela primeira vez relacionou o futebol com a vida, na medida em que ele espelharia as complexidades da existência humana, como a superação de desafios, a alegria da vitória e a dor da derrota.
Mas também não é isso o que me interessa aqui, pois já sabemos que o futebol tem mesmo esse poder do projetar nossas superações e frustrações, sem deixar que as tristezas e euforias que ele traz sejam capazes de nos fazer esquecer dos deveres que o dia seguinte nos cobra.
Não há "quartas-feiras de cinzas", nem ressacas no futebol — o dia após as vitórias ou derrotas é sempre mais um, sem nada de especial. Ou seja, cada time 'é o motivo de todo o nosso riso, de nossas lágrimas e emoção', cantam, a seu modo, os hinos de todos os clubes que se prezam.
Basta estar no meio de uma arquibancada, cercado por nossos iguais na paixão, exultando com as habilidades ou sofrendo com as insuficiências de nossos jogadores para intuir que alguma coisa o futebol toca, para além de simples vitórias ou derrotas.
E no que toca o futebol?
Penso que o encanto desse esporte começa por sua acessibilidade social — qualquer criança pode praticá-lo e, se a natureza a brindar com os necessários requisitos físicos e mentais, um(a) novo(a) atleta se revelará para o mundo. Mas isso ainda não explica a sedução planetária exercida pelo futebol.
Ele me parece, na verdade — mesmo para os que apenas veem as partidas, ou aqueles que no passado as ouviam pelo rádio, imaginando as jogadas a partir das fantásticas descrições dos narradores —, um meio inventado pela cognição para nos capacitar a todos de conhecimentos matemáticos práticos.
E o futebol, mais do que os demais esportes coletivos —porque praticado basicamente com os pés, associados aos movimentos dos quadris e da cabeça, aos músculos das pernas e coxas, e à percepção espacial de curta, média e longa distância, além da concentração e intensidade — me parece exatamente isso: puro exercício de geometria, ramo da matemática cujos primeiros entendimentos se acham nos antigos egípcios e depois nos gregos.
A bola, esse objeto esférico que nos remete às formas basilares da natureza, desenha em campo, tocada de um a outro atleta rumo ao gol retangular, essencialmente retas, curvas, parábolas, ângulos, círculos, ondulações produtoras de movimentos e atos capazes de superar obstáculos quase sempre inesperados, num verdadeiro exercitar de contra-tempos e demonstração de pura arte. E lá na meta retangular ainda se acha um indivíduo quase intransponível, autorizado a realizar todos os movimentos de que for capaz, inclusive com as mãos.
Reside aí, me parece, nessa intuitiva apreensão dos fundamentos de uma linguagem universal, de forma lúdica e compartilhada, a essência da paixão produzida pelo futebol. Ele nos transforma a todos em matemáticos, geômetras, formuladores de possibilidades espaciais; destrava nossa imaginação, aguça nossos sentidos, estimula a inventividade daqueles que o praticam, e também dos que o veem e torcem. Ele nos enobrece.