O sr. Bill Gates, que dispensa apresentações, acaba de publicar um ‘corajoso artigo’ em sua página pessoal na internet — Gatesnotes — em que relativiza a chamada ameaça climática, afirmando, textualmente, que “embora as mudanças climáticas afetem as pessoas pobres mais do que qualquer outro grupo, para a grande maioria delas, essa não será a única, nem mesmo a maior, ameaça às suas vidas e bem-estar. Os maiores problemas são a pobreza e as doenças, como sempre foram. Compreender isso nos permitirá concentrar nossos recursos limitados em intervenções que terão o maior impacto sobre as pessoas mais vulneráveis”.
Disse ‘corajoso artigo’ porque, lá pelas tantas, o sr. Gates admite que “alguns defensores do clima discordarão de mim, me chamarão de hipócrita por causa da minha própria pegada de carbono (que compenso totalmente com créditos de carbono legítimos), ou verão isso como uma maneira dissimulada de argumentar que não devemos levar as mudanças climáticas a sério”.
Ocorre que não é de hipocrisia e dissimulação que se trata aqui, mas de covardia e irresponsabilidade existencial. O centro do impasse planetário não é o modo como estão sendo aplicados os “nossos recursos limitados”, e o sr. Gates sabe disso — esta é a covardia. A irresponsabilidade existencial reside no fato de que uma figura pública como ele, cujas palavras e opiniões possuem alcance ilimitado, não pode ignorar, por exemplo, informações como as listadas abaixo, obtidas por meio de uma simples consulta à plataforma de Inteligência Artificial do Google:
“Os gastos militares mundiais em 2024 alcançaram um recorde de US$ 2,7 trilhões, representando um aumento de (9,4%) em relação a 2023, e a maior alta anual desde o fim da Guerra Fria (1947-1991). Esse aumento foi impulsionado por conflitos regionais e tensões geopolíticas, com mais de cem países elevando seus orçamentos de defesa, especialmente na Europa e no Oriente Médio. Os cinco maiores gastadores — EUA, China, Rússia, Alemanha e Índia — foram responsáveis por 60% do total global.
“A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto para Métricas e Avaliação em Saúde (IHME) indicam uma tendência de queda no investimento em saúde após o pico da pandemia de COVID-19, o que gera grande preocupação. A entidade projetou um declínio global de 21% na assistência ao desenvolvimento para a saúde entre 2024 e 2025, passando de US (49,6 bilhões para US 39,1 bilhões).
“A expectativa é que essa tendência de queda continue nos anos seguintes. As maiores reduções da Assistência ao desenvolvimento para a saúde (DAH) devem afetar a África Subsaariana, com uma queda de 25% entre 2024 e 2025. Esse cenário pode ter consequências graves em regiões com sistemas de saúde já fragilizados.
“A OMS alertou que a queda na priorização do gasto público em saúde pode comprometer a meta de cobertura universal de saúde (UHC), deixando cerca de 4,5 bilhões de pessoas sem acesso a serviços básicos e 2 bilhões enfrentando dificuldades financeiras por causa de despesas com saúde.
“O subfinanciamento dificulta o progresso em direção à Cobertura Universal de Saúde (UHC). A OMS estima que 4,5 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso a serviços básicos de saúde, e 2 bilhões enfrentam dificuldades financeiras por causa de custos de saúde. A fundação da OMS alerta que a saúde global está em crise, com a redução de gastos empurrando mais pessoas para pagar por seus próprios cuidados de saúde, uma forma de financiamento desigual e insustentável.
“O déficit de financiamento representa um grande risco para a saúde global. A diminuição da assistência externa e a despriorização dos gastos públicos por parte dos governos ameaçam o progresso histórico na saúde pública. A crise financeira que se estende para 2025 e além, conforme indicado por cortes previstos e déficits orçamentários na OMS, demonstra que o desafio de garantir um financiamento adequado para a saúde pública é urgente e de longo prazo.”
O sr. Bill Gates é uma pessoa inteligente; sabe que não está enganando ninguém com esse seu estranho artigo (nem mesmo as Inteligências Artificiais disponíveis). Talvez ele esteja querendo enganar a si próprio. Uma pena!
A escrita é a grande invenção. Foi a escrita, na verdade, aquilo que transformou um certo ser irracional em humano, esta espécie que domina o planeta para o bem e para o mal. Com a escrita, apenas, este blog se propõe a analisar e opinar sobre alguns dos principais temas da atualidade, no Brasil e no mundo, como qualquer cidadão faz ou deveria fazer. Meu nome é Oswaldo de Mello. Sou jornalista.
Engano-me, que eu gosto
É o que mais interessa!
Sinto informar-lhes, mas a “democracia” não nasceu na Grécia, nos anos 500 a.C. Até onde já sabemos, formas democráticas de governar cidades já haviam sido postas em prática na antiga Suméria (4000 a.C.), no sul da Ásia (2600 a.C.), na China (2000 a.C.) e só então na cidade-estado de Atenas, seguida por Teotihuacan, o “Lugar dos Deuses”, entre 100 a 600 d.C. (região onde surgiria o México).
Essas informações se encontram no livro “O Despertar de Tudo - Uma nova história da humanidade”, em que David Graeber e David Wengrow se propuseram a enfrentar a interpretação da História estabelecida em 1651, por Thomas Hobbes (em “Leviatã”) e em 1754 por Jean-Jacques Rousseau (em “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”).
Hobbes, tido como “fundador da teoria política moderna, afirmou que, sendo os seres humanos as criaturas egoístas que são, a vida num Estado de Natureza original nada tinha de inocente: pelo contrário, devia ser ‘solitária, pobre, sórdida, brutal e curta’ — na prática, um estado de guerra, com todos lutando contra todos. Se houve algum progresso em relação a esse estado de coisas, em grande medida foi exatamente por causa dos mecanismos repressivos, que Rousseau viria cem anos depois a condenar: governos, tribunais, burocracias, polícia”, explicam Graeber e Wengrow.
Já Rousseau disse que “antigamente, éramos caçadores-coletores e vivíamos por muito tempo numa condição de inocência infantil, em pequenos bandos. Esses bandos eram igualitários, justamente por serem pequenos. Foi só depois da ‘Revolução Agrícola’, e ainda mais depois do surgimento das cidades, que essa feliz condição se desfez, dando origem à ‘civilização’ e ao ‘Estado’ — o que também significou o aparecimento da literatura, da ciência e da filosofia escritas, mas, ao mesmo tempo, de quase tudo de ruim na vida humana: patriarcado, exércitos permanentes, execuções em massa e burocracia”.
É no confronto a essas duas visões que o “O Despertar de Tudo” trabalha, “reunindo evidências que vêm se acumulando nas últimas décadas na arqueologia, na antropologia e disciplinas afins, e que apontam para uma explicação totalmente nova do desenvolvimento das sociedades humanas nos últimos 30 mil anos”, dizem os autores da obra que, a meu ver, revoluciona a chamada teoria política.
A única questão pendente, no entendimento de Graeber e Wengrow, e também na minha visão por várias vezes aqui exposta, é o quanto esse tema pode interessar às pessoas deste nosso tempo politicamente errático, socialmente caótico, espiritualmente imaturo. Nesse caldo de inseguranças pessoais e coletivas, qual a importância sobre onde e quando surgiram e se exercitaram formas democráticas de governo?
Aparentemente, nenhuma importância. Mas na verdade muita, porque o fato de os humanos virem desde os seus primórdios organizando-se politicamente sem submissão hierárquica, mas buscando sistemas equitativos de autogoverno, reforça a compreensão de que, ao contrário do pensamento comum, o que erigimos ao longo de 30 milênios foi de fato uma anti-civilização.
Reconhecer um erro, como já diz a sabedoria popular, é o primeiro passo para o crescimento, a mudança e o aprendizado. É um ato de humildade e maturidade que permite evitar prejuízos maiores, aceitar as próprias falhas e, a partir delas, tomar novas decisões e corrigir o rumo. O que há de mais importante a fazer, neste momento da História, se não promovermos essa autocrítica? Isto é o que mais interessa neste instante!
Selfie, segredo
Eu, brasileiro, confesso/Minha culpa, meu pecado/Meu sonho desesperado/Meu bem guardado segredo/Minha aflição
O piauiense Torquato Neto (1944-1972) certamente partiu de suas reflexões sobre a realidade e os destinos do Brasil quando escreveu Marginália II (musicada por Gilberto Gil).
Eu, brasileiro, confesso/Minha culpa, meu degredo/Pão seco de cada dia/Tropical melancolia/Negra solidão
Mas, como sempre fazem os verdadeiros poetas, não foi apenas deste país que ele tratou.
Aqui, o Terceiro Mundo/Pede a bênção e vai dormir/Entre cascatas, palmeiras/Araçás e bananeiras/Ao canto da juriti
A partir do autorretrato deste povo, ele traça a essência de quem somos nós, os seres humanos.
Aqui, meu pânico e glória/Aqui, meu laço e cadeia/Conheço bem minha história/Começa na lua cheia/E termina antes do fim
O grande valor de sua poesia é tornar universal o que primeiro é pessoal, depois nacional. Tudo junto agora.
Minha terra tem palmeiras/Onde sopra o vento forte/Da fome, do medo e muito/Principalmente da morte/Olelê, lalá
Não há separação entre os três espaços existenciais. Esse é o grande ostensivo segredo, que guardamos ao longo de toda a vida.
Minha terra tem palmeiras/Onde sopra o vento forte/Da fome, do medo e muito/Principalmente da morte/Olelê, lalá
Dizem alguns estrangeiros que o espírito brasileiro, revelado em nossa música, principalmente, carrega o dom de mesclar tristeza com esperança.
A bomba explode lá fora/E agora, o que vou temer?/Oh, yes, nós temos banana/Até pra dar e vender/Olelê, lalá
Mestres em rir e dançar à beira de precipícios é o que somos.
Aqui é o fim do mundo/Aqui é o fim do mundo/Aqui é o fim do mundo
Vivemos assim, alegremente, nos limites da existência, sem nos importar onde ela começa ou termina.
Irresponsáveis? Ingênuos? Talvez!
Ou, quem sabe?, apenas sábios.
Nada é fácil
Não nos cabe escolher a época em que existimos, mas, se me fosse possível decidir, teria sido exatamente neste presente histórico onde eu preferiria estar, e ser. Estar como testemunha consciente deste tempo conturbado, extremado, imprevisível, mas, sem dúvida, também magnífico, pleno de possibilidades palpáveis e renovadoras. E ser a serviço deste mesmo tempo, na condição de um existente dedicado a conhecer e superar sua própria imaturidade, sem ignorar as demandas objetivas.
Como escreveu o amigo e mestre Cid Marcus — A vida como viagem interior — “todas as filosofias do ocidente, desde Platão, colocaram o homem acima do mundo, contra o mundo, diante do mundo, de costas para ele, mas não dentro dele. A nossa colocação dentro do mundo (somos parte) só acontecerá se ficarmos no aqui e no agora”.
Sim, este mundo que construímos é injusto, egoísta, dominado pela competição e o ódio, mas o planeta em que estamos, e somos, é uma bela joia cultivada pelo Cosmos. Defendê-lo não se traduz em promover revoluções, ao contrário. E de novo recorro a Cid: em vez de nos perdermos no mundo exterior, “movermo-nos em direção do nosso mundo interior, uma viagem a que alguns dão o nome de meditação, de introspecção; o oposto do movimento centrífugo, um movimento centrípeto, como uma tentativa de aproximação de um eixo de rotação”.
E por que a prática revolucionária está fadada ao fracasso? Porque nada do que façamos em favor ou contra o mundo exterior estará sob o nosso controle; tudo resulta no inesperado, e às vezes no oposto do que pretendíamos. Não se trata de cruzar os braços frente as iniquidades; nem de abdicar o direito e o dever de fazer diferente. Trata-se, em primeiríssimo lugar, de dar prova do sincero e inteiro propósito daquilo que fizermos. Ou seja, de nos revolucionarmos.
Volto ao Cid: “O ser humano está sempre em luta contra si mesmo e contra o mundo. Criou-se a máxima de que viver é competir e não colaborar. Estamos em luta contra a raiva que sentimos, contra a bebida, contra a comida, contra as forças eróticas que nos subjugam, contra o tempo, mas geralmente acabamos nos complicando, nos sentindo, na maioria das vezes, derrotados. Essas coisas, porém, precisamos lembrar, não acontecem só conosco. Desde que o homem está no mundo é assim. Uma pergunta então poderá se tornar cabível: por que esse tipo de luta nos põe sempre contra nós? Ora tomamos o partido de um lado, ora de outro. Esta luta é, no fundo, absurda”.
Fazer com sincero e inteiro propósito também é isto: viver e ser no presente, na certeza tranquila de que o futuro sempre virá, e que será tanto mais promissor quanto melhor nos dedicarmos às tarefas de agora.
Corresponder a cada momento àquilo que o momento exige não é tarefa banal. Todas as distrações nos convocam; todas carregam alto poder de atração. A começar pela mitificação do passado, quando dele retiramos as vicissitudes. A terminar pela idealização do futuro, quando nele fingimos não ver os inevitáveis imprevistos.
Não espero obter dos outros nada disso que aqui defendo. Não alimento ilusões, até porque desconheço o quanto de mim está de fato convencido, compromissado, determinado a agir conforme meus próprios argumentos. A tradição se assenta, pesada, sobre meus (nossos) ombros; sobrecarrega minha (nossa) vontade; freia o impulso das boas intenções.
Nada é fácil.
Especulações fundamentadas
Se compararmos o cérebro humano com um computador, sua capacidade de armazenar informações seria algo em torno de 2,5 petabytes (ou 2,5 quatrilhões de bytes), sabendo-se que um byte corresponde a 8 bits (ou seja, oito combinações de 0 ou 1, equivalente ao corte ou passagem de energia, respectivamente), onde é possível armazenar um caractere ou uma instrução computacional.
Mas não está no potencial estimado de armazenar 2,5 quatrilhões de instruções computacionais, ou caracteres, que reside o valor maior do nosso cérebro. O que o distingue da máquina símbolo deste milênio é a habilidade de priorizar e relacionar memórias de forma complexa, bem como sua alta plasticidade neural (capacidade de se adaptar e mudar estrutural e funcionalmente ao longo da vida, em resposta a novas experiências, aprendizado, ambiente, ou lesões).
As informações apreendidas pelo cérebro proveem dos nossos cinco sentidos, mas não se tratam de dados brutos, burros. Ao contrário, eles se vinculam a sensações ambientais e objetivas, e a fatores subjetivos (memórias, contextos, sentimentos, importância, prioridade etc), além de se relacionarem e de estarem submetidos à crescente capacidade cognitiva da espécie humana, bem como a essa entidade mental denominada intuição, ou “sexto sentido”.
Se é verdade que nosso cérebro é um ente biológico incomparável (eu diria que é a nossa vinculação direta com o Cosmos), por que então alimentamos o temor de que a chamada Inteligência Artificial (IA) — ferramenta lógica material, terrena, baseada na compilação e organização do acervo de informações elaboradas ao longo da História pelo nosso próprio cérebro — venha a ‘dominar o mundo’ um dia?
Penso que o temor, aqui, não é quanto à capacidade da IA oferecer soluções práticas de forma mais rápida que nosso cérebro, quase instantâneas, em atendimento às necessidades cotidianas de cada um, ainda que extinguindo profissões e provocando desemprego em massa (o que numa situação extrema poderá ser minorado, por bem ou por mal, através de políticas públicas de distribuição de renda). Nosso medo quanto ao futuro da IA decorre de dois outros fatores essenciais, e já intuídos:
a) Que essa ferramenta deflagre no médio e longo prazo um processo de regressão intelectual da espécie humana, em decorrência de deixarmos de exercitar nossas habilidades físicas e capacidades cognitivas, com reflexos negativos sobre as competências futuras da própria Inteligência Artificial, que passaria a se alimentar de falsas informações, degradando assim todo o sistema em que ela, a IA, se sustenta;
b) Que essa ferramenta venha a ser capaz de espelhar o modo humano de existir, auto desenvolvendo-se e finalmente criando seus próprios padrões de comportamento, calcados não na identificação intelectual, relativista e afetiva, a chamada empatia, mas no utilitarismo e indiferença em relação ao outro, porque, afinal, o outro será um não-indivíduo, tão somente um replicável.
Nesse segundo cenário, teremos (ou teríamos) a paulatina substituição dos indivíduos humanos imaturos de hoje (insuficiência emocional que temos sido incapazes de superar, embora, reconheçamos, nunca tenhamos de fato tentado), por não-indivíduos emocionalmente indiferentes em relação aos seus semelhantes, atuando — na melhor das hipóteses — em favor de uma relação harmoniosa com o planeta, mas sem a compreensão do valor desse comportamento. Pela simples razão de serem destituídos de sentimentos.
Distraídos e perdedores
Torço pelo Santos Futebol Clube e, como escrevi em dois outros textos — O futebol nos enobrece e O que nos aproxima e motiva —, considero esse esporte (e a prática de esportes, em geral) um dos valores fundamentais de nossa condição humana. O fato, enfim, é que torço pelo SFC e tenho sido afetado, como todo e qualquer torcedor, pelo quase sempre lamentável desempenho do meu time.
Nesta segunda-feira, 6 de Outubro de 2025, tenho a dizer (embora isso interesse a poucos) que a situação precária em que o Santos se encontra (perdeu ontem por 3x0 para o Ceará, em Fortaleza) não é uma questão irrelevante. Ela tem lá sua ‘universalidade’, digamos assim. A melhor análise que vi sobre isto está nesta postagem do jornalista Alex Frutuoso, “Homens sem ambição”.
Sim, é de homens sem ambição que se constitui meu time. Dos onze indivíduos que periodicamente entram no campo em busca de uma vitória (e que invariavelmente saem derrotados, ainda que tenham empatado, pois o empate quase sempre decorre de seus próprios erros), desses onze atletas talvez um ou dois ambicionem algo além de chegar fisicamente inteiros ao final dos 90 minutos de jogo, bem como garantir mais um mês de salário.
A aspiração, o desejo de realizar ou atingir algo não corre em suas veias; não vibra em seus nervos; não impulsiona seus tendões e músculos. Não ocupa suas mentes.
Falta-lhes ambição. Sem ela, são burocratas da bola. Desperdiçam energias aplicando, na medida do possível, as habilidades que aprenderam ao longo de suas carreiras a caminho do ocaso. Não são necessariamente homens velhos. São indivíduos emocionalmente gastos; materialmente fartos; espiritualmente descomprometidos. Não possuem horizontes.
Tenho o costume de observar o semblante dos jogadores do Santos quando eles entram em campo para disputar uma nova partida. Lamento dizer isso, mas percebo a derrota do meu time já nesse instante, quando percebo seus olhares sem foco, distraídos, sem interação calorosa com os demais companheiros; cabisbaixos ainda que brevemente, como se eles mesmos se surpreendessem no cometimento de um ato falho, essa manifestação inconsciente de nossa psique. É um relance intuitivo, mas suficiente para encher meu coração de desânimo.
Por coerência e autopreservação emocional, deveria desligar a TV nesses momentos. Não o faço porque sempre resta a esperança de que algum evento inesperado ocorra, e nos socorra de mais uma derrota (ou frustrante empate). Isso acontece às vezes, quando por substituição entra em campo um jogador mais jovem, vindo das categorias de base, cheio de ímpeto e desejo de vencer (no jogo e na vida).
A injeção desse novo sangue tem, eventualmente, o dom de espantar o marasmo; despertar aquilo que qualquer equipe esportiva precisa ter: o desejo intenso, a ambição permanente pela vitória, sabendo que para isso é preciso lutar como se pelo último prato de comida fosse.
A lição que se tira disso é óbvia e histórica: o glorioso Santos Futebol Clube nunca foi um ajuntado de bons atletas em final de carreira; nem mesmo de bons atletas na plenitude das condições físicas.
O Santos sempre foi um time formado por grandes jogadores experientes, mesclados por promissores (alguns geniais) atletas formados em suas equipes de base, os tais ‘meninos da Vila”.
Enquanto essa tradição não for respeitada e retomada, mais “homens sem ambição” continuarão entrando em campo. Distraídos e perdedores.
Sobre ‘que fazer?’
Dois grandes pensadores, ambos russos, enfrentaram a pergunta “Que fazer?”. O primeiro foi Nikolai Tchernichevski (1828-1889), que escreveu seu livro em forma de romance, em 1863, contando a história de Vera Pavlovna, que se recusa a seguir um casamento arranjado e se junta a um grupo de jovens em busca de uma nova sociedade baseada em cooperativas e igualdade.
A obra inspirou revolucionários como Lenin, e teve grande importância no contexto da Revolução Russa. Sobre o herói do livro, Rachmetjev, o historiador inglês Orlando Figes publicou, em 1996, “A tragédia de um povo”, resumindo a obra de Nikolai. Aqui, um resumo do que Figes diz sobre o herói:
Este Titã monolítico que serviria de inspiração a uma geração de revolucionários (incluindo Lenin), renuncia a toda a alegria da vida para fortalecer a sua vontade sobre-humana e se tornar imune contra todo o sofrimento que a futura revolução trará forçosamente consigo. Ele é um puritano e ascético: numa certa ocasião chega mesmo a dormir numa tábua de pregos para oprimir o seu impulso sexual. Treina o seu corpo com ginástica e levantamento de peso. Não come nada que não carne crua e treina o seu raciocínio de forma semelhante, pela leitura de dia e de noite de ‘apenas o essencial’ (política e ciências naturais) até que ele se apoderou do conhecimento da Humanidade. Só então o herói revolucionário se inicia na sua missão. Nada o desvia da sua causa, nem mesmo os interesses amorosos de uma bela jovem viúva, que ele recusa. Ele leva uma vida rigorosa e disciplinada, com tantas horas de leitura, tantas com exercícios, etc. E (esta a mensagem da história) é apenas essa devoção que possibilita o novo homem a deixar para trás a existência alienada do velho ‘homem supérfluo’. Ele encontra a redenção através da política.
O “Que fazer?”, de Vladimir Lênin (1870-1924), foi publicado em 1902, na linha da pregação de Nikolai Chernyshevsky. Trouxe a noção de organização revolucionária como uma necessidade para o avanço das lutas proletárias, num contexto onde as diferenças no interior do Partido Operário Social-Democrata Russo se ampliavam. E buscou tratar de questões práticas para o movimento socialista não se perder em meio ao desmoronamento do regime tzarista. Confrontando-se com as vias do socialismo moderado e reformista, bem como com teorias liberais mais radicais, Lênin descreve qual a ação política necessária para dar um caráter revolucionário às transformações que ocorriam na Rússia de então.
Como um mantra destinado a produzir autoconvencimento, reafirmo a cada dia a decisão de não parar de tentar. Por aqueles que me são próximos e pelo dever que o fato de existir me impõe. E, como já escrevi em outro texto, é preciso tentar de forma consciente, ‘compreendendo, relativizando, superando as razões civilizatórias e amesquinhantes que nos trouxeram até este momento de caos, nacionais e planetário’.
A mim; a todos nós, os existentes, não é permitido abrir mão de tentar. Muitos, talvez a maioria, esteja desistindo, ‘entregando os pontos’, abatidos pelos reveses ou frustrados com breves êxitos. Sim, os pequenos êxitos embalam erros, turvam nossa visão, enganam o julgamento.
Talvez essa teimosia — a de tentar — venha a ser igualmente uma covardia, uma imodéstia, uma arrogância, uma pretensa superioridade moral. Talvez. Mas ainda que seja assim, nega-la não é uma opção, pois tenho intimamente a visão, o pressentimento, a intuição — ou, quem sabe, apenas a esperança — de que algum caminho factível exista.
Não são Nikolai Tchernichevski (com sua abordagem romântica) e Vladimir Lênin (com sua prática revolucionária) que embalam minha visão. Penso que estou mais próximo das ideias do pensador italiano Pietro Ubaldi (1886-1972), que no livro “Profecias”, de 1953, explicita o futuro possível:
“E, dado que a vida é sempre luta contra algum inimigo que obstaculiza a emancipação, desta vez o inimigo não será mais o próprio semelhante que vamos agredir, mas a nossa própria natureza animalesca, para superá-la e vencê-la. Como se vê, guerra contra ninguém, mas apenas contra as inferiores leis da vida, que ainda sobrevivem no homem, com o fim de sobrepujá-las. A emancipação da animalidade — eis a nova conquista; ou seja, um ‘requintamento’ de vida, não só na forma de fidalguia exterior, mas na substância, que é uma atitude psicológica de compreensão para com o próximo, de ordem na vida social, de bondade para com todos os seres. Embora tudo isso possa parecer utopia, não há outro futuro, se quisermos que haja verdadeiro progresso. Esta é a nova ordem do mundo.”
[As passagens em itálico foram extraídas de verbetes da enciclopédia livre digital Wikipédia.]
Dever intransferível
É tocante (no sentido de patético), como os indivíduos em geral se conformam (no sentido de cômodo) em delegar aos outros, ao outro, o protagonismo que lhes cabe nesta casca de planeta; e não apenas a alguns, mas a todos e cada um de nós.
Hoje somos capazes de especular que tal comportamento pode ter se instalado na psique de nossa espécie desde antes da transição do nomadismo para o sedentarismo, há 12 mil anos, quando a prática da especialização laboral passou a se estabelecer e em definitivo se impôs.
O entrecho da construção da História humana está alicerçado em paradoxos. No plano do intangível, fomos condicionados a enfrentar o desafio de viver sem porquê — leia, por favor, Destinados a ser. Mal e porcamente, ou empurrando com a barriga, como se diz, tocamos nossa vida para frente, jogando pra debaixo do tapete o lixo espiritual gerado por essa contradição.
No plano do tangível, que denomino de ‘via do prosseguimento’, o paradoxo foi exatamente a prática da especialização do trabalho. Não poderia ter sido de outra forma, afinal, havia diferentes tarefas a serem realizadas e, para o bem da eficácia, da produtividade e do interesse geral, formaram-se grupos específicos de indivíduos para executá-las.
Ocorre que, embora útil e inevitável, a especialização paradoxalmente cobrou seu preço; e ele não foi barato. Aqueles indivíduos por natureza autossuficiente, capazes de absorver os conhecimentos básicos transmitidos pelos mais velhos para garantir sua sobrevivência, passaram a delegar algumas dessas tarefas a outros.
Essa rede de interdependência laboral, necessária e incontornável, produziu sujeição e subordinação. Os indivíduos que antes sabiam porque e como prover seu sustento, esqueceram-se de suas habilidades e/ou as repassaram a terceiros.
Surgiram as especializações e seus desdobramentos, determinados pela complexificação dos conhecimentos setoriais, de tal modo, por exemplo, que hoje um único médico já não dá conta de seu paciente; um só engenheiro não é capaz de projetar toda e qualquer obra; um único matemático não resolve todos os teoremas; um só físico não é capaz de enfrentar a variedade dos fenômenos naturais etc.
Muitas reflexões decorrem dessa completa interdependência. Alguns destacam só as vantagens — e elas são verdadeiras —, mas há quem, como eu (e tantos outros), também apontem o tal paradoxo do comodismo perverso, que se revela exatamente neste adiantado momento da História humana, quando dos indivíduos de nossa espécie se exige mais e mais autonomia reflexiva.
Não se trata de advogar pela volta de um remotíssimo passado, quando aqueles indivíduos sabiam o suficiente e dominavam os fazeres imprescindíveis à sua sobrevivência. Talvez não seja necessário que todos reaprendam a acender o fogo friccionando pedras ou peças de madeira; confeccionar as próprias armas para abater animais e obter a próxima refeição; saber distinguir a planta comestível da venenosa etc.
Mas, a meu ver (e de tantos outros, repito), é imprescindível que sejamos capazes de compreender e fazer uso dos conhecimentos fundamentais e universais deste nosso tempo (equivalentes àqueles do passado), sem nos submetermos à tutela de especialistas.
Por exemplo: quais são as forças que sustentam aquilo que nossos sentidos são capazes de conhecer, e como essas forças se projetam no espaço cósmico? Foi esse o sentido de meu texto de ontem — O que é essencial.
O que é essencial
Nossa ignorância sobre as evidências da natureza precisa e deve ser superada, com urgência. Não é necessário que sejamos doutores em Matemática ou Física para compreendermos essas essencialidades; basta termos acesso de forma coletiva e metódica ao que já foi comprovado por cientistas ao longo dos últimos 350 anos, desde Isaac Newton (1643-1727).
Dentre essas evidências, destaca-se o conhecimento da existência e do funcionamento das chamadas quatro forças, estas que controlam todas as interações do Universo, desde a formação de galáxias e estrelas, até a estrutura dos átomos e reações químicas que permitem a vida. Sem elas, a matéria se desintegraria, o Universo não se formaria como o conhecemos, nem a vida seria possível. Abaixo, uma breve descrição (com auxílio de Inteligência Artificial nos trechos em itálico):
A força gravitacional mantém os planetas em órbita ao redor do Sol e é responsável pela queda de objetos na Terra e pelas marés. Foi anunciada em 1687, quando Newton a publicou em seu livro “Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica”.
A eletromagnética responde pela interação entre partículas subatômicas carregadas, como elétrons e prótons, combinando as forças elétrica e magnética. Causa atração entre cargas opostas e repulsão entre cargas iguais, mantém átomos e moléculas unidos. É a base da eletricidade, do magnetismo e da luz. Seu conhecimento foi consolidado ao longo do século XIX, culminando nas equações de James Clerk Maxwell (1831-1879), em 1865.
A nuclear forte é a mais poderosa, pois responde por duas funções cruciais: manter os quarks unidos para formar prótons e nêutrons, e manter prótons e nêutrons unidos no núcleo atômico. Ela opera em distâncias muito curtas, sendo forte o suficiente para superar a repulsão eletromagnética entre os prótons e, assim, permitir a existência dos núcleos atômicos. A ideia inicial de sua existência foi proposta por Hideki Yukawa (1907-1981), em 1935.
A nuclear fraca é responsável por transformar partículas subatômicas, como ocorre no decaimento beta (onde um nêutron se converte em um próton, um elétron e um antineutrino). Ela atua em um alcance extremamente curto, dentro do núcleo atômico. É crucial para processos como a fusão nuclear no Sol, mantendo o equilíbrio de prótons e nêutrons no universo. Sua formulação teve início com Enrico Fermi (1901-1954, um dos inventores da bomba atômica), em 1933.
Há, ainda, uma quinta força, responsável por uma interação fundamental hipotética que, se existir, poderia explicar enigmas do universo, como a matéria escura e a aceleração da expansão cósmica.
Qualquer indivíduo, desde que seja informado a partir da primeira infância, de maneira adequada, é capaz de paulatinamente assimilar e dominar essas informações essenciais para a apreensão de seu (nosso) pertencimento cósmico. Este é o desafio que está posto.
Como escreveu Leonardo Boff, em recente artigo — A Terra é viva, geradora de todos os seres vivos —, "as quatro interações básicas do universo (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear forte e a nuclear fraca) continuam atuando sinergeticamente para a manutenção da atual seta cosmológica do tempo rumo a formas cada vez mais relacionais e complexas de seres. Muitos cientistas sustentam que elas, na verdade, constituem a lógica e o dinamismo interno do processo evolucionário; por assim dizer, a estrutura, melhor dito, a mente ordenadora do próprio cosmos".
Já se ouvem os gemidos
Não cabem mais contemporizações. É urgente disseminarmos o conhecimento e a compreensão de que a Terra pertence ao Universo, e que nós, seres humanos, somos apenas ocupantes transitórios da casca deste planeta. Transitórios, mas em grande parte responsáveis por seu destino cósmico.
Menções frequentes, e crescentes, a esse respeito têm sido vistas nas redes sociais — me informou ontem um amigo —, e é bom que isso esteja acontecendo. Finalmente!
O advento do humanismo, há cinco ou seis séculos, proporcionou progressiva formulação dos direitos dos indivíduos de nossa espécie, até que a ideia se consolidasse em textos legais destinados a regular a convivência entre as pessoas, os povos e as nações.
Vemos hoje que o nobre objetivo não se realizou; ao contrário, foi corrompido. A nunca superada imaturidade emocional da espécie impediu a interiorização daquilo que nossa razão formulava. Ao contrário, desenvolvemos comportamentos dissimulados, hipócritas, fingindo praticar o que na verdade sempre descumprimos, ainda que cobrando responsabilidade aos outros, ao outro.
Fizemos assim, desde sempre, nas relações políticas — Não é aceitável que os indivíduos eleitos para legislar ou governar continuem colocando seus interesses pessoais e/ou de seus grupos à frente das necessidades urgentes dos cidadãos de seus países, estados, cidades.
Atuamos do mesmo modo onde se deveria aplicar justiça — É revoltante ver os integrantes privilegiados desse sistema, que deveriam agir segundo direitos coletivos e igualitários, decidindo em favor dos segmentos endinheirados e poderosos, e impunemente, porque afinal são eles próprios que se regulam.
Agimos assim até no campo da estética, que deveria ser livre, crítica e sábia — É inadmissível que os produtores de arte, de todas as artes, ainda percam tempo olhando para seus próprios umbigos, em transes egotripcos, ou para o umbigo das sociedades em que estão inseridos, contemplando, apenas condoídos, as incontáveis injustiças.
O tempo da insinceridade acabou. Muitos, a maioria, infelizmente, ainda não tem conhecimento disso, mas veem tomando ciência na carne, das formas mais trágicas, pois o caos se instalou no âmago das relações públicas e privadas, e seus efeitos dolorosos se espalham democraticamente para todas as camadas sociais.
A prática do humanismo, repito, é uma falácia. Pouquíssimos o fazem, e aqueles que adotam seus princípios (predominância do homem, racionalismo, valorização da potencialidade individual, autonomia e autodeterminação, defesa da liberdade, promoção da educação e do conhecimento, prática da ética, valorização da dignidade, defesa da atitude crítica, destaque aos aspectos físicos, emocionais, espirituais e cognitivos do homem) são ridicularizados.
Basta de contemporizações! Chega de diversionismos! E não porque alguns de nós, seres humanos, desejemos pôr fim à trágica pantomima que nos cerca, ao teatro de absurdos a que estamos submetidos, mas porque é a realidade que se impõe.
O ser humano pertence ao Cosmos. É a partir desse plano que devemos nos enxergar, e não da visão medíocre e limitada de nossa breve existência. Com uma vantagem: a partir do momento em que adquirirmos essa compreensão e prática, as misérias existenciais ganharão uma chance de serem superadas.
Como nos avisou o poeta T. S. Eliot (1888-1965), o mundo acaba não com um estrondo, mas com um gemido.