“Gente quer saber o um”

A consciência da espiritualidade é um dos pilares da condição humana. Não me refiro à espiritualidade vulgar, hierarquizada, opressora, punitivista, que se manifesta em religiões, crenças e cultos, mas à verdadeira, à única, a que nos vincula ao Universo e está presente na materialidade do planeta, viva, ativa e pulsante em nossa existência cotidiana.

As provas de que esta espiritualidade é real estão, literalmente, em todo e qualquer lugar — ela atravessa o Cosmos, as Galáxias, as Estrelas, nosso sistema Solar e esta Terra a que pertencemos. Para qualquer ponto que olhemos, tal qual um fractal (padrão geométrico que se repete em diferentes escalas, com cada parte menor sendo uma cópia do todo, um conceito conhecido como autossimilaridade), a espiritualidade lá está.

Não há quem desconheça sua existência, mesmo que se trate de pessoa comum, dita simplória, sem educação formal, pois estamos falando de um conhecimento intuitivo, que dispensa intermediações, inerente aos indivíduos de nossa espécie desde o primeiro choro, quando o ar invade os pulmões e o sistema nervoso é, literalmente, ligado ao Todo. Ao Um.

Por isso que o nascimento de uma criança é compreendido, em qualquer cultura, como um milagre, graças às potencialidades que aquele novo ser nos traz e oferece ao mundo dos fenômenos, este onde existimos. Não há nascimento sem alegria, sem estímulo, sem esperança por parte daqueles que recebem o novo ser. Todos sabem, embora não verbalizem, que um mistério ali se corporificou.

A consciência desse milagre está impressa e confirmada em nossa memória pessoal e coletiva; sabemos que ele aconteceu fruto do enigma de uma concepção, daquele átimo em que duas células, dois gametas complementares se uniram para constituir um indivíduo completo e pleno de vir a ser, sob as bênçãos do Desconhecido.

No melhor dos mundos, a consciência cósmica que o milagre do nascimento suscita seria preservada e nutrida, lançando adiante a compreensão transcendente da existência da espécie humana. Mas, como sabemos, não é isso que ocorre. Fieis às nossas “vãs filosofias”, imediatamente projetamos um futuro feliz e brilhante para o recém-chegado, a ele almejando a realização de tudo o que não fomos capazes de ser e construir em nossa existência mundana.

Ao seja, lançamos em seus ombros nossas frustrações e o peso de uma civilização fracassada, sedimentada em falsas expectativas, valores superficiais, certezas imodestas, ganhos passageiros, heranças de sucessivas gerações de seres espiritualmente pervertidos pelo medo de estarem sozinhos no espaço.

É neste exato instante que se inicia o processo de corrupção do novíssimo indivíduo, e ele perde a chance de incorporar sua real espiritualidade cósmica. Em seu lugar, lhe impingimos dogmas, mandamentos, superstições; religiões, crenças, cultos. E o milagre da grandeza humana se esgarça. E nossa espécie retroalimenta o conformismo desse simulacro de humanidade, essa vida de vanglórias.

Quase não há força interior que faça esse indivíduo desde o berço corrompido escapar da armadilha da História, como também não há vontade exterior — isto é, nas diferentes instituições de poder que constituem as sociedades — disposta a enfrentar tamanho desafio existencial.

O indivíduo, porque é refém de sua própria conveniência imediatista e vítima da manipulação promovida pelos grupos perpetuadores da submissão interesseira; as instituições de poder, porque enxergam na emancipação espiritual do ser humano uma ameaça à sua permanência, o que de fato é, pois quem se emancipa não se submete.

Resta-nos, como tenho dito, as possibilidades que se abrem a partir do caos em que estamos metidos. E para ilustrar, ocorre-me esta música de Caetano Veloso, onde já no primeiro verso está posto: “Gente olha pro céu, gente quer saber o um”.