A hora é clara e incontornável

"Da convergência entre a renovação da tradição socialista, anticapitalista e anti-imperialista, do internacionalismo proletário  fundado por Marx no Manifesto Comunista  e das aspirações universalistas, humanistas, libertárias, ecológicas, feministas e democráticas dos novos movimentos sociais é que poderá surgir o internacionalismo do século XXI." (*)

Leia o parágrafo acima mais uma ou duas vezes e, por favor, faça a você mesmo algumas perguntas. Por exemplo: A proposta contida nessa frase é factível? É possível somar ao diagnóstico e aos propósitos do Manifesto Comunista (de Karl Marx e Friedrich Engels) tudo mais que aflorou no mundo, desde 1848, extraindo desse coquetel de manifestações econômicas, políticas e sociais a concretização de um verdadeiro internacionalismo?

Comecemos por definir o que é (a) e qual o objetivo (b) do internacionalismo, em especial esse a que denominam "do século XXI". Até prova em contrário, internacionalismo é a apropriação, por todos os indivíduos que habitam este planeta (a), dos meios que lhes permitam viver com dignidade, alegria e senso de valor existencial (b); o complemento "do século XXI" é apenas uma tentativa (mais uma) dos velhos camaradas de 'salvar a pele' do marxismo, buscando oxigená-lo com os ares do nosso tempo, digamos assim. Isto posto, dediquemo-nos agora a questionar aquilo que é essencial: como o verdadeiro e único internacionalismo poderia ser alcançado.

Passados 176 anos desde que o Socialismo Científico foi formulado (no Manifesto), o que se constata é a comprovação de sua insuficiência para alcançar a tarefa a que se propôs. Apesar da beleza e da generosidade de seus princípios e objetivos; não obstante a força moral de sua presença ao longo destes quase dois séculos ter proporcionado, e ainda estar proporcionando, impulsos civilizatórios fundamentais, o fato é que o capitalismo, reinado do individualismo, tem renovado e aprofundado suas distopias, desafiando-nos (os humanistas socialistas) não a continuar jogando o mesmo velho jogo de gato vs. rato, mas a literalmente adotar um novo modo de proceder.

Ah, sim, criar um novo jogo... Mas, como? Do jeito que os jogos são criados: definindo-se um objetivo, estabelecendo-se as regras, desenhando-se os meios de jogar. O objetivo, como tenho proposto em todos os cantos onde venho escrevendo (e, repito, não estou sozinho nem sou pioneiro nessa empreitada), é conquistar a maturidade de nossa espécie. Perceba que não se trata de praticar o Humanismo, o que pode soar como mero diletantismo, mas de exercê-lo individual e coletivamente, de incorporá-lo à existência humana. Para isso, faz-se necessário colocar, enfim, os bois adiante do carro.

As regras são as balizas, as referências que delimitam nosso campo de atuação. Por exemplo: não se exerce o Humanismo sem que, desde cedo, na vida, tenhamos consciência de nossa humanidade; sem que compreendamos nossa diminuta mas exuberante existência cósmica; sem que enxerguemos o ínfimo e o infinito valor de cada qual e de todas as coisas e fenômenos que nos cercam, preenchem, compõem e potencializam a nossa presença aqui e agora.

Os meios são os instrumentos que nos possibilitarão operacionalizar o jogo, colocá-lo em movimento. Neste ponto, talvez eu não conte com tantos companheiros de jornada, porque a minha visão se opõe a todas as ideias postas até agora sobre a mesa. A mais antiga delas sendo essa que apela para a introjeção da religiosidade dogmática, e pela submissão a ensinamentos supostamente legados por entes sagrados e seus privilegiados seguidores. 

Discordo desse meio pelo simples e claro motivo de que ele é essencialmente contraditório: prega a redenção do homem, mas nos nega o direito de assumir a transcendência de nossa individualidade. Ou seja, as religiões nos ensinam que somos parte do todo, mas não admitem que o todo está em nós, intrinsecamente, sem intermediários ou tradutores, pois isto seria conceder a cada ser humano, independente das particularidades de sua existência, a condição de ser iluminado e cósmico. As religiões não querem isso. O que elas querem e praticam é exatamente o monopólio da intermediação entre o transcendente e o mundano, entre o mistério e a materialidade. E para isso precisam nos submeter.

Outro meio que igualmente promete nos guiar rumo à felicidade é a ciência e sua filha dileta, a tecnologia. Esta difere da religiosidade dogmática, porque oferece ao homem esperanças palpáveis, mensuráveis, mundanas, contrapondo-se à submissão em troca de uma futura redenção proposta pelas religiões. Embora tenha o mérito de colocar o gênero humano frente à sua realidade terrena, carregada de dores e desafios cotidianos a serem concretamente superados, a ciência alcança seu limite quando ignora o caráter transcendente da espécie humana, que, afinal, é a destinatária das facilidades e benefícios que produz.

Desta forma, tanto quanto a religiosidade dogmática, a ciência nos frustra ao expor, ao fim e ao cabo, sua insuficiência como meio de se praticar um novo modo de agir com vistas à obtenção da dignidade de viver, e que seja pleno de senso de valor existencial e de alegria. Ainda assim, neste liminar de um novo Ciclo Cósmico de 25.920 anos (representado por uma volta completa do Sistema Solar ao redor do centro de nossa galáxia), é preciso que todos saibam, ou venham a saber, que os meios não estão esgotados.

Há, por exemplo, este a que sempre me refiro, cujo objetivo é a conquista da maturidade de nossa espécie, e que, de certa forma, é a simbiose de uma religiosidade antidogmática com uma ciência sem arrogância. Sim, porque dessa religiosidade tolerante aproveita o sentimento puro que ela nos pode proporcionar, ou seja, o de que somos ínfima partícula carregada de transcendência (no sentido espiritual e energético do termo). E isto sem que devamos nada a alguém ou a alguma coisa. Ou seja, ter/conquistar essa consciência não demandará adoração, submissão e expiação por alegados pecados.

Já da ciência aproveita os recursos que ela tem nos proporcionado, e mais ainda proporcionará. Tanto aqueles que minoram os sofrimentos e produzem facilidades para a vida prática, quanto os que aceleram a interação entre as pessoas, permitindo que a comunicação seja disseminada de forma instantânea e global. O momento planetário que vivemos assemelha-se ao que resultou do modo de impressão de tipos móveis, inventado por Johannes Gutenberg (1400-1468). Aquele está na raiz da Renascença, da Reforma Protestante, da Revolução Industrial e do modelo de civilização que erguemos até hoje; este, a que me refiro, possui o poder de remodelar a presença do gênero humano na Terra, através da criação e da prática dos meios e modos de obtermos, afinal, a nossa imprescindível maturidade.   

É por isso que, ainda e sempre, me impressiono o quão homens reconhecidamente inteligentes se recusam a enxergar a incapacidade, até mesmo teórica, do que denominam de "internacionalismo proletário" para resolver o problema central da espécie humana: a nossa insegurança existencial, que se traduz em desunião, intolerância, preconceito. A esses respeitáveis indivíduos, sugiro ler e levar a sério o que tantos sábios já disseram sobre a relatividade absoluta das coisas que nossos sentidos alcançam. Por exemplo, Hermann Hess, em sua obra "Sidarta":

"Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la. Esse fato, já o vislumbrei às vezes na minha juventude. Foi ele que me afastou dos meus mestres. Uma percepção me veio, ó Govinda, que talvez se te afigure novamente como uma brincadeira ou uma bobagem. Reza ela: 'O oposto de cada verdade é igualmente verdade'. Isso significa: uma verdade só poderá ser comunicada e formulada por meio de palavras, quando for unilateral. Ora, unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. Tudo aquilo é apenas um lado das coisas, não passa de parte, carece de totalidade, está incompleto, não tem unidade. Sempre que o augusto Gotara nas suas aulas nos falava do mundo, era preciso que o subdividisse em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e redenção. Não se pode proceder de outra forma. Não há outro caminho para quem quiser ensinar. Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe no nosso íntimo, não é nunca unilateral. Nenhuma criatura humana, nenhuma ação é inteiramente Sansara nem inteiramente Nirvana. Homem algum é totalmente santo ou totalmente pecador. Uma vez que facilmente nos equivocamos, temos a impressão de que o tempo seja algo real. Não, Govinda, o tempo não é real, como verifiquei em muitas ocasiões. E se o tempo não é real, não passa tampouco de ilusão aquele lapso que nos parece estender-se entre o mundo e a eternidade, entre o tormento e a bem-aventurança, entre o Bem e o Mal."

Queremos salvar o mundo (e nos salvarmos, como espécie)? Então, temos de parar de sonhar acordados e acordar deste pesadelo individualista possessivo e/ou internacionalista proletário. O internacionalismo vai além de adjetivos, de qualificações redutoras e excludentes. A hora do amadurecimento sempre esteve posta, em todos os instantes da presença humana na Terra, mas esta de agora é clara e incontornável.

(*) Do livro "Globalização e internacionalismo: atualidade do Manifesto comunista", citado por Michael Löwy, sociólogo e filósofo franco-brasileiro, pesquisador do pensamento marxista, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, publicado em forma de artigo no site A Terra é redonda --- https://aterraeredonda.com.br/marx-esse-desconhecido/