Vida em hip hop

Tem sido motivo de regozijo haver nascido e ainda viver este tempo. Tal repentina euforia me veio ao sabor desse substantivo mágico, regozijo, que escrevo mais uma vez e repito, regozijo, antes que me esqueça de novo de quais letras se compõe, de tão inusual que ele é.

Vivi e vi sofrimentos, misérias, choros inadmissíveis de tantos inocentes, inaceitáveis humilhações de adultos, impingidas, amargamente aceitas em troca da esperança de um amanhã melhor. Tive nas mãos, aos 8 anos, um revólver reluzente, enquanto meu pai, bêbado, desacordava-se na cama ao lado devolvi-o à gaveta e esperei.

Testemunhei destruição, dores incontáveis, desesperos assombrosos, olhares vazios e cheios de perguntas definitivas, mas irrespondíveis. Caminhei através de catástrofes, quase tocando corpos carbonizados, reduzidos à sua essência mineral e desalmada. Presenciei o desenterrar da lama de crianças mortas, largadas como se nada fossem nos braços de homens determinados e impotentes.

Olhei no olho de mentirosos, de corruptos, de estelionatários e assassinos. Em todos vi mais o medo do que sabiam ser, do que a satisfação por aquilo que eram. Vi e vejo seres perdidos em seus próprios labirintos; erráticos, tontos de tanta ignorância, clamando por uma ajuda sem coragem de dizê-lo.

Vi e vivi isso que é o mundo. Não teria razões para declarar regozijo, mas o faço porque, afinal, sobrevivi a todos esses horrores, e posso [devo] agora dar meu testemunho. Não é o de um vencedor, mas o de uma pessoa perplexa com a teimosa exuberância desta existência cósmica daí o regozijo de poder dizer: Presente!

Digo perplexa porque constato, sim, o quanto a existência é tolerante, pois não se farta de ser agredida, vilipendiada, corrompida, submetida, e ainda assim nos oferece seus melhores, doces, renovados frutos.

Claro que a existência, representada pelas coisas que nos constituem e suportam, vem nos ensinando a eterna lição da perenidade cósmica. Não há horrores, misérias, dores, sofrimentos, dissimulações e fraquezas que ela desconheça.

Todas as iniquidades, as cometidas e as ainda a cometer, integram o [nosso] cardápio de possibilidades. Nada surpreende a existência  nada! Ela está sempre pronta a se pôr de pé, a se contrapor ao nosso podre não existir.

Viver, possuir e constituir a existência, e ainda mais nestes tempos tão intensos, de tantos fracassos e renovadas incertezas, de tantas gritantes e loucas esperanças, é, sim, motivo de regozijo.