Eu sei porque causa tanto incômodo a afirmativa de que nada mudará no curso catastrófico deste nosso modelo de civilização, enquanto a espécie humana não compreender, aceitar, praticar sua condição de pertencer à Terra e igualmente integrar o Cosmos.
As imposições do cotidiano, as necessidades inadiáveis da nossa sobrevivência e daqueles que nos são próximos, o enfrentamento das dores físicas e do espírito, a busca por riqueza, reconhecimento, aplauso, fama, sucesso são fatores que, somados e misturados, nos impedem de enxergar além do primeiro plano do grande cenário da existência.
Vivemos desde sempre essa contradição existencial. Ela nos enreda, sequestra nossa atenção, corrói nossa vontade, nos impede de ir além do nosso próprio umbigo, ou do umbigo da sociedade em que estamos inseridos.
Três mecanismos, digamos assim, têm sido mobilizados ao longo dos milhões de anos em que estamos aqui, com o fim de desviar o nosso foco da questão central da espécie humana — repito: nosso pertencimento à Terra e nossa presença no Cosmos. Esses mecanismos são a religião (reverência ao sagrado), a estética (dedicação ao belo e ao sentimento que ele desperta) e a ciência (aquisição de saberes).
Não se trata — digo logo — de fazer juízo de valor sobre esses elementos construtores do nosso modelo de civilização. Eles se estabeleceram ao longo de milênios, e sem eles é quase certo que não teríamos chegado até este ponto da História humana. Não desta História.
Foi a partir da religião que se estabeleceram os códigos de convivência entre os primeiros humanos, de onde se originou a ideia da obediência a um poder, a qual promoveu a prática da submissão aos mais fortes de físico e/ou de espírito, e que foram lançadas as bases dos Estados e diferentes formas de governo, com suas leis destinadas à sustentação de uma superestrutura crescentemente ampliada e complexa. Não são as relações econômicas que estão na origem das iniquidades que presenciamos e praticamos hoje — é a religião; são as religiões.
O papel da estética é o de uma válvula de escape ao constrangimento construído a partir da religião. A estética não é uma criação submissa; ela se impôs a partir da espontânea expressão daqueles que ousaram desafiar o sagrado. É, assim, uma manifestação essencialmente humana, carregada de sentimentos, hospedada nos cinco sentidos, na intuição e na razão. Nem por isso a estética foi e tem sido capaz de cumprir aquela tarefa emancipadora, que seria o esclarecimento da espécie quanto à sua essencialidade: isto é, o pertencimento terreno e a presença cósmica.
A ciência, o terceiro dos tais mecanismos que nos têm impedido de trilhar o melhor caminho civilizatório, atua no processo de expansão de nossas capacidades cognitivas. Como seu impulso e dinâmica visam primordialmente facilitar o modelo de vida que temos adotado, para isso lançando mão da tecnologia, não há como a ciência atuar no sentido daquele necessário esclarecimento. A não ser através das contradições que ela carrega. Ou seja, à medida que nossa capacidade cognitiva se expande, mais incertezas se abrem à nossa frente, e com elas infinitas possibilidades de transgressões.
Observe, caro leitor (se é que ele existe), que a religião, a arte, a ciência não são males em si. O mal foi exatamente a instrumentalização mundana (não deliberada, mas real) de suas potencialidades emancipadoras. A percepção do sagrado remonta ao tempo em que os primeiros humanos puseram seus olhos no céu; a elaboração e fruição do belo responde à busca por excelência em nossas interações sociais; a produção de ciência atende ao prosseguimento de espécie.
E, no entanto, incomoda tanto cobrar das pessoas, de todas as pessoas que integram a casca deste insignificante e magnífico planeta que parem de olhar apenas para seus próprios umbigos pessoais e sociais. Até porque, no dia em que enxergarmos o grande cenário da existência teremos mais chance de enfrentar e superar as vicissitudes e iniquidades que nos cercam.
Mas essas são apenas as minhas ideias. Quem as tiver que conte outras.