Nossa insólita corrida existencial

Na postagem anterior deixei no ar uma importante questão, a meu ver crucial para entendermos o mundo de sempre, mas, especialmente, o conturbado mundo de hoje: "Por que as pessoas são diferentes?". Para enfrentar essa pergunta, e suas implicações, recorro ao excelente apoio de textos do meu falecido amigo e mestre Cid Marcus.

Em duas publicações dedicadas ao "Prof. Bangalore Venkata Raman (1912-1998) mestre de Jyotish, autor de vários livros e editor do The Astrological Magazine", Cid expõe de forma detalhada a visão e a prática da Astrologia Hindu (Jyotish) — leia aqui:  "texto I" e "texto II" —, sob a ótica da relação "karma, dharma e reencarnação"

"As diferenças que encontramos entre as pessoas decorrem das suas respectivas ações passadas. Ações corretas, isto é, bom karma (*), leva a encarnações em níveis cada vez mais elevados. Más ações, ao contrário. Da sabedoria, ações sábias, resulta, pois, bem-estar, vida justa. Servidão e infelicidade resultarão de más ações. Assim, enquanto os karmas bons ou maus não forem esgotados não chegaremos a moksha, à emancipação, à libertação."

Segundo o hinduísmo, "nunca chegamos ao mundo em total estado de ignorância, em completa escuridão. (...) Cada ser, ao contrário do que comumente julgamos, nasce com certos desejos que estão associados ao que experimentou em vidas passadas. A alma migra com o chamado corpo astral (Sukshuma Sarira), a contraparte sutil do corpo físico, que carrega consigo impressões (samskaras) e tendências (vasanas) da alma individual".

Ou seja, a firmeza, insistência, teimosia, empatia, desprendimento, tolerância, tanto quanto a renúncia, desistência, complacência, obediência, indiferença, medo, que marcam a caminhada de cada um, estão de alguma forma preestabelecidos, roteirizados junto ao nosso DNA. Da mesma maneira que as nossas características físicas e condições mentais.

Noutra passagem esclarecedora, Cid relata que em vários textos hinduístas encontramos esta frase: "Nós não temos a liberdade de determinar o resultado das nossas ações; o que temos, sim, é a liberdade de determinar o curso delas" (Narma Svantatrya). Krishna, na Canção do Senhor, diz: "O problema está sempre na ação, não nos frutos". Compare (isso) — destaca ele "com a muito citada afirmação de Sartre (Jean-Paul, 1905-1980, filósofo do Existencialismo), de que só podemos nos escolher com relação à nossa maneira de ser e não com relação ao nosso ser".

Mais da Astrologia Hindu: "Tudo o que recai sobre nós de bom ou de mau é consequência de ações que praticamos. As consequências (de nossas ações) numa existência podem nela não ser experimentadas. Podemos até ter que esperar muito tempo, dizem certos mestres hindus, para experimentá-las. O certo, porém, é que sempre as experimentaremos, mais cedo ou mais tarde. A lógica da lei do karma é inflexível. Sempre seremos punidos ou recompensados, mesmo que não nos lembremos das ações praticadas. Por isso, os realmente hindus não se espantam quando veem alguém sofrer sem uma causa aparente ou presenciam o crime não punido".

Assim, o que temos no conjunto da humanidade são criaturas extremamente individualizadas, cada uma cumprindo os seus intransferíveis karma ("tudo aquilo que decorre do que fazemos, da nossa ação") e dharma ("a obrigação que temos de assumir os efeitos das ações praticadas por nós e/ou pelos membros do grupo a que pertencemos"), em medidas, ritmos e condições diferentes (inclusive como animais e minerais), o que aponta para uma virtual impossibilidade de que se realize  ao menos até aonde a vista alcança  a tão desejada e necessária harmonia da espécie. Somos mais que muitos, porque somos cada um em si, não temos iguais na matéria e muito menos no espírito. Somos, neste exato instante, 8 bilhões de seres dedicados a cumprir suas insólitas individualidades cósmicas.  

Voltemos a Cid Marcus: "Com base no hinduísmo, Jyotish (Luz Divina) considera Prarabdha ("o que está maduro para ser colhido, o que temos que colher, que assumir, e não pode ser alterado, mudado") como: 1) Fixo (dridha); 2) Fixo-Não Fixo (dridha-adridha); 3) Não Fixo (adridha). O karma classificado como fixo é muito difícil de ser mudado, praticamente impossível. As ações que a ele deram causa foram muito significativas, graves, proporcionais ao que agora é experimentado com a mesma importância e intensidade. Terá este karma que ser vivido. A sensação que temos é a de que ele simplesmente “acontece”, apesar de todos os nossos esforços contrários. Dizem os astrólogos hindus que o karma fixo aparece no mapa numa confluência, isto é, quando muitos fatores astrológicos convergem para uma indicação que permita considerá-lo como tal, como uma espécie de nó cego".

"O segundo tipo, fixo-não fixo aparece também através de vários pontos, convergindo todos (...) para uma determinada área. Este tipo de karma poderá, contudo, ser mudado através de consideráveis esforços, por ações conduzidas através uma vontade firme, austeridade, de médio para longo prazo. Já o terceiro tipo, não fixo, gera efeitos que podem ser alterados ou superados com relativa facilidade. Nestes casos, os resultados obtidos são proporcionais aos esforços empreendidos."

E ainda: "Além dessas divisões, (...) o hinduísmo nos lembra (...) que todas as ações humanas podem ser subdivididas em três classes: 1) Kayaka, as que dizem respeito ao corpo físico, que tanto se referem às nossas ações quanto aos nossos sentidos; 2) Vachaka, as que dizem respeito às palavras; 3) Manasika, as que decorrem de influências mentais, pensamentos".

Diante desse quadro de relativo determinismo que a Astrologia Hinduísta aponta, resta-nos questionar o alcance das habilidades cognitivas que vêm sendo desenvolvidas por nossa espécie há milênios, e que nos possibilitaram erguer os fundamentos deste modelo de civilização, bem como a força do livre arbítrio, ou seja, a capacidade de cada indivíduo fazer suas próprias escolhas e moldar seu futuro. Afinal, é com esses atributos (cognição e livre arbítrio) que contamos para construir uma harmonia duradoura e em desenvolvimento, não apenas no sentido planetário, terreno, mas no plano cósmico, da eterna caminhada de volta ao Brahman, o Todo.

Sobre isso, Cid esclarece: "A proposta hinduísta de que a libertação do ciclo de renascimentos leva a uma dissolução do atman (alma) no Brahman (Todo) nunca foi muito tentadora para os ocidentais, convenhamos, pois ela sempre se constituiu numa exceção sob o ponto de vista soteriológico (estudo da salvação do homem por um redentor). O hinduísmo pede aos seus crentes, além da dissolução do ego, um esforço ascético duríssimo, uma ética rígida, a conquista de um desapego cada vez maior com relação à vida material e nenhuma recompensa oferecia quando pensamos numa vida pós-morte". 

"A maior parte das tradições religiosas sempre ofereceu aos seus crentes, nas suas soteriologias, além da eternidade, muita felicidade, bem-aventurança, harmonia, paz, simplicidade e pureza, tudo a ser 'vivido' num lugar no qual todas as necessidades e carências se veriam satisfeitas e resolvidas sem esforço algum. A concepção de paraíso da religião judaico-cristã, por exemplo, foi estabelecida por povos semíticos, que sempre viveram em lugares desérticos, secos, pedregosos, de quase nenhuma vegetação. Por isso, sua concepção não podia ser outra: o paraíso 'tinha' que ser um jardim sempre verde, com água abundante, lagos, rios, um lugar de primavera eterna, um lugar muito diferente daquele onde viviam. Algo divino, sem dúvida, satisfação permanente sem carência nenhuma."

Quem sabe possamos concluir, de forma grosseira, que não estamos exatamente no pleno e total comando de nossa existência. Melhor seria dizer que desempenhamos um papel existencial, que frequentemente pode ser bom, mas, com a mesma frequência também pode ser mau, e que a maneira como o desempenhamos será crucial não apenas para a nossa existência presente, mas em especial para o destino cósmico de cada indivíduo.

Talvez por isso  a incômoda verdade de que a Astrologia tem o poder de revelar as causas primeiras do comportamento da miríade de seres humanos que assomaram e assomam a este planeta é que a cultura iluminista (o uso da razão como única ferramenta confiável para entender o mundo), prevalecente desde o século XVIII, tenha passado a defini-la como pseudociência, intuição, adivinhação, pressentimento, ou seja, tratando-a como manifestação frívola, fruto de um certo diletantismo convenientemente, relegado a conversas de salões e, mais adiante no tempo, a colunas de jornais.

Afirmam seus críticos que "no paradigma da física moderna não existe nenhuma forma de interação que possa ser responsável pela transmissão da suposta influência entre uma pessoa e a posição de planetas e estrelas no céu, no momento de seu nascimento". Ora, mas o fato é que até outro dia a 'física moderna' desconhecia, por exemplo, a existência da mecânica quântica e seus fenômenos "fantasmagóricos", como um dia definiu Albert Einstein (1879-1955), o célebre formulador da Teoria da Relatividade. Assim sendo, o que autoriza a 'ciência' a descartar, e até mesmo ridicularizar, as formulações da Astrologia?

Seria mais prudente, e neste caso à luz de fenômenos reconhecidamente científicos, nos dedicarmos ao aprofundamento do estudo da sincronicidade (acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado), conceito desenvolvido pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), e que bem poderia ser a porta de entrada para se investigar, ‘racionalmente’, a efetividade da Astrologia sobre nós, indivíduos humanos tão individualmente diferentes.

(*) A título de esclarecimento: o karma no hinduísmo difere do carma no Espiritismo kardecista (do francês Allan Kardec, 1804-1869). O kardecismo "reconhece o princípio comum que move a ideia do carma, qual seja a lei da causalidade moral em face do grau de consciência e da sua intenção do indivíduo, também estendendo os efeitos possíveis dessa relação através das reencarnações, conquanto não admita a incorporação em um organismo inferior ao humano", ou seja, em corpo animal ou mesmo em mineral, como ocorre no karma hindu. — da Enciclopédia Espírita on line: https://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Carma