Embora a rotina cotidiana, as paixões, os desejos, as necessidades de cada um nos impeçam de atentar devidamente para o que ocorre no mundo, o fato é que este planeta está atravessando, neste exato instante, um período crucial para o prosseguimento do Homo sapiens.
A civilização que viemos construindo desde muito antes destes 2.024 anos denominados depois de Cristo — cujas raízes históricas nos remetem na verdade às (ainda que) incipientes relações estabelecidas entre aqueles indivíduos dos tempos primordiais —, essa civilização está claramente esgotada.
Esgotou-se exatamente agora há pouco — adotando-se o ponto de referência cristão amplamente aceito —, na passagem do chamado segundo para o terceiro milênio. Ao longo desses dois e dos demais milênios que os antecederam, a espécie humana organizou-se dos mais diferentes modos, buscando, teoricamente, a forma mais eficaz de compartilhar a experiência de viver.
Falhamos. porém. Desperdiçamos todas as chances. Erramos inclusive nas tentativas de remediar nossos seguidos fracassos, como é o caso daquele brilhante (mas insuficiente) sistema a que se denominou socialismo científico, formulado em meados do século XIX.
E por que falhamos? Falhamos porque fomos condescendentes com nossa imaturidade emocional — simples e trágico assim. O fator psique humana nunca foi levado na devida conta nos arranjos sociais que formulamos.
Há muito sabemos que nossas ações são determinadas pela forma como lidamos com o medo — não o medo disto ou daquilo, mas ele próprio, o medo, esse elemento constitutivo de todos os seres vivos, que se potencializa ainda mais no psiquismo de nossa espécie, pois somos dotados do poder de fazer.
O fato do nosso fazer ser guiado pelo medo é o elemento definidor do nosso sucesso, mas também e principalmente do nosso fracasso. Do sucesso, porque é ele, o medo, que nos desafia a superar obstáculos; do fracasso, porque ele também é responsável por nossas inseguranças e pelos sentimentos e ações que as acompanham: ódio, preconceito, indiferença, violência.
A tragédia deste momento — e não esqueçamos que a história do Homo sapiens constitui ínfima parte da História grande, a cósmica — é que o debate civilizacional reduziu-se, finalmente, à disputa entre dois fabulosos (porque possuidores da força nuclear bélica) contendores: o Ocidente, tendo à frente os Estados Unidos da América; e o Oriente liderado pela China.
EUA x China, China x EUA. Tudo mais são satélites gravitando em torno desses dois eixos, alguns tangenciado a ambos, ainda sem a certeza de que serão bem-sucedidos nessa busca de equidistância. É o caso notório do Brasil, especialmente agora, sob o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Lula afirma com veemência que a sua guerra, a nossa guerra é contra a pobreza e a fome, produzidas pela secular má distribuição de renda. Seu diagnóstico e determinação estão corretíssimos. Resta saber se ele contará com as condições objetivas para liderar essa guerra social interna (o que por si só já seria e será difícil), em meio a um cenário externo aceleradamente mais conflituoso.
Cenário em que os EUA, a potência (nuclear, repito) que declina, recusa-se a ceder terreno à potência (nuclear) que emerge, a China. Por enquanto, hipocritamente — como é frequente, quase uma regra, entre nós, humanos — a tensão entre as duas maiores potências circunscreve-se ao âmbito comercial, como se se tratasse de uma disputa entre cavalheiros.
A carnificina se dá entre satélites de lado a lado, como ocorre na guerra Rússia x Ucrânia. O que se trava ali é a disputa Ocidente x Oriente. É a derradeira tentativa (fadada ao fracasso) de recolocar o Homo sapiens na via do prosseguimento, seja por uma improvável vitória da Rússia, seja por uma impossível vitória da Ucrânia. Improvável e impossível exatamente porque ambos os lados acenam, em última instância, com o uso da solução final, a nuclear.
Lula da Silva, quase solitariamente, tem atuado em defesa do bom-senso, propondo o diálogo entre Rússia e Ucrânia para a superação do conflito. Mas que diálogo seria possível, entre esses dois contendores, se eles próprios não se representam? O que é hoje a Ucrânia, se não um aríete a serviço do ainda presente Império americano? O que hoje é a Rússia, se não a linha de frente da guerra travada pelo postulante Império chinês?
Disse acima fadada ao fracasso porque, mais uma vez e sempre, ignora-se o elemento primordial do teorema tão bem demonstrado na "hierarquia de necessidades", do norte-americano Abraham Maslow (1908-1970): fisiologia/segurança/amor-relacionamento/estima/realização pessoal.
Nem o Ocidente, nem, agora, o Oriente, contemplaram, contemplam ou contemplarão o atendimento de todas as necessidades de espécie humana. Esforçam-se, no máximo, para suprir os patamares mais baixos daquela hierarquia (fisiologia e segurança). Ainda assim de forma insuficiente (como o fez o socialismo científico), pois passam ao largo desse elemento primordial, e também básico, que é a compreensão do medo.
Este, enfim, é o drama definitivo enfrentado pelo promissor animal surgido há 2,5 milhões de anos, e que há 350 milênios, no Norte da atual África, evoluiria para o Homo sapiens. Não há mais o quê, nem porquê tergiversar. A conciliação da espécie é incontornável.