Meu adeus a Pelé

Teve um dia na década de 1970, trabalhando no Jornal da Tarde, na Geral (ou substituindo o Mauri Alexandrino, uma vez, na editoria de Esportes), que eu pus na cabeça que deveria entrevistar o Pelé; buscar dele uma explicação para a frase famosa de que "o brasileiro não sabe votar", que a esquerda festiva explorava à exaustão, para desmerecê-lo.

Minha intenção era veja se pode?! dar ao Pelé a oportunidade de esclarecer o que verdadeiramente quis dizer com aquela declaração.

Na verdade, o que eu queria mesmo era provar que o Pelé não era contra o povo, não menosprezava o povo, mas o criticava legitimamente, pois entendia que o povo, ainda que condicionado pela opressão secular, exercia mal o seu poder, não utilizava a sua força.

Era uma tese que eu tinha, e queria que o Pelé a corroborasse, para que o meu ídolo fosse redimido. Fiz aquilo que nenhum jornalista 'isento' pode fazer, mas fiz.

Foi dificílimo conseguir uma entrevista com ele. Entrei em contato com a escritório do homem, cheguei ao sujeito que era o assessor direto dele (me foge o nome, era um nome meio espanholado, bem conhecido, mas eu não lembro...). Expliquei que queria entrevistar o Pelé sobre aquela frase e ele fez cara de que não tinha muito interesse em agendar o encontro.

Dias depois, numa tarde de calor, estava eu lá jogado na Sucursal do Jornal da Tarde, na Rui Frei Gaspar, no Centro de Santos, à espera de alguma coisa, quando me chamam ao telefone e era o tal assessor do Pelé, dizendo que eu poderia fazer a entrevista naquela hora, imediatamente, que ele estava me esperando no escritório dele, ali perto da Sucursal.

Parti pra lá sem saber absolutamente nada do que iria perguntar. Tinha apenas a tal frase na cabeça. Cheguei, me levaram pra sala da secretária e logo depois me mandaram entrar na sala do Pelé. Ele estava sentado na mesa dele, com aquele sorriso, meio curioso, tendo ao lado, de pé e às vezes sentado, o Pepito ou Paquito (acho que era um desses o nome do sujeito).

De cara, esse Pepito ou Paquito me disse: "Não pode gravar nada (tudo bem, eu nem tinha gravador!) e também não pode anotar nada". Aí eu entrei em pânico, porque o ato de anotar é principalmente a possibilidade de registrar palavras-chaves, para depois reconstituir a conversa. Eu, particularmente, não tenho memória de elefante; minha memória é mais visual.

E foi assim, em pânico, que comecei a 'conversar' com o Pelé, mais preocupado em lembrar o que ele estava dizendo do que em pensar sobre o que ele dizia para preparar a pergunta seguinte. Ah, sim, o tal do Pepito ou Paquito, no final, ainda decretou: "Queremos ver antes o que vai ser publicado".

Saí de lá, depois de não muito tempo, em choque e revoltado, pois não admitia submeter minha matéria à aprovação do entrevistado. Fui pra Redação. Sentei na máquina e escrevi uma merda de matéria, acho que a pior da minha vida, pois deu um branco; eu simplesmente não lembrava de nada do que o Pelé havia dito.

Mesmo assim mandei o texto, um pequeno texto, acho que pouco mais de uma lauda, pra Redação em São Paulo, alertando que tinham me pedido para mostrar antes, mas que eu não havia feito isso.

Bom, o jornal não publicou, mas dias depois li uma matéria anódina de outro jornalista da Redação paulistana, que havia estado em Santos e entrevistado o Pelé exatamente sobre o que eu havia escrito no meu texto.

Sem dúvida que era uma matéria muito mais rica e extensa do que a minha, mas não esclarecia em nada sobre as verdadeiras intenções do Pelé com aquela famosa frase, "o brasileiro não sabe votar". Ao contrário, nas entrelinhas reafirmava o chavão esquerdista de que 'o Pelé não tinha jeito mesmo, era um alienado'. É claro que não estava escrito assim, mas o subtexto dizia isso.

Hoje, depois que saiu a notícia da morte (esperada) de Pelé, eu chorei um pouco. Acho que foi também pela matéria que eu não soube fazer com ele.

Bom, pelo menos eu apertei a mão de uma lenda e disse, lá para os meus botões: "Obrigado pelas alegrias que você me proporcionou".

Talvez tenha sido este o real motivo de eu ter insistido tanto em entrevistá-lo.

Descanse em paz, Pelé!

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Resolvi publicar aqui este texto (que escrevi para minhas filhas e filho no dia da morte do Pelé, 30 de Dezembro de 2022), depois de acompanhar no canteiro central da avenida da praia do Boqueirão, em Santos, a passagem do cortejo do Pelé, neste glorioso 3 de Janeiro de 2023. Glorioso dia porque pude acompanhar pela televisão o longo e emocionante velório realizado no exato meio do gramado do campo da Vila Belmiro --- onde tantas e tantas vezes vi Pelé jogar, ou "se apresentar ao público", como muitos hoje reconhecem --- e também testemunhar a homenagem prestada ao Rei do Futebol pelo não menos fabuloso Luiz Inácio Lula da Silva, há três dias empossado (pela terceira vez!) Presidente do Brasil.

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Veja aqui um pouco do cortejo do Pelé pela avenida da praia de Santos, São Paulo, Brasil.