O desafio da espécie está posto

Já aprendemos, ou deveríamos ter aprendido, que a grande História é um corpo de acontecimentos imbricados, manifestado nos ciclos de uma espiral. É difícil, exasperador até, nos conformarmos com as vicissitudes pessoais e/ou as violências sociais que esse paulatino e inexorável processo nos impõe.

A guisa de consolo, olhamos para acontecimentos passados, para aqueles fragmentos pretéritos que pensamos observar e interpretar, e deles extraímos lições, ensinamentos morais e, mais grave: conclusões desejosas de que, sim, teríamos a partir dali avançado mais um passo no caminho da civilização.

Normas, Códigos, Tratados foram elaborados e oralmente pregados, escritos e largamente difundidos, no esforço meritório de espalhar as boas novidades. Acreditava-se, acreditou-se, acredita-se que fé e obediência seriam os instrumentos (espiritual e mundano) suficientes e capazes de regular nossas ações ao longo desta jornada. 

Estamos, assim, sempre dispostos a julgar ser possível, estar ao nosso alcance a possibilidade de implementar outras práticas que, temos acreditado, sejam socialmente melhores, civilizatórias, sem atentarmos para a componente fundamental, a variável incontornável do processo construtivo dos ciclos históricos do passado, do presente e do futuro: a espécie humana.

A presença do fator humano na equação histórica não é uma constatação trivial, um ingrediente cuja dosagem se possa relativizar, conduzir pela fé ou obediência. Não, ela é básica e indomável. É a molécula constitutiva da sociedade, aquela que é intangível e na qual, como se um DNA (Ácido Desoxirribonucleico) fosse, encontram-se em permanente ebulição todas as nossas contradições emocionais.

É provável, quase certo, que esteja eu aqui apenas repetindo essa que me parece ser uma das verdades incontestáveis da construção da História. Muitos já disseram e provaram isto; outros tantos continuam dizendo e demonstrando. O polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), mesmo, cansou-se de expor este fato, apontando a contradição segurança x liberdade como as balizas delimitadoras (desculpem o pleonasmo) da nossa existência.

Quem empunha o timão da segurança e/ou da liberdade, senão o homem, nós mesmos? Não é preciso pensar muito para nos convencermos da responsabilidade que todos e cada um carrega, a partir dos atos que estamos a protagonizar nos instantes que compõem as nossas vidas, e que em seu conjunto constituem os ciclos daquela espiral.

Neste presente histórico, à contradição segurança x liberdade adicionou-se  e volto a recorrer a Bauman  a constatação da "modernidade líquida", onde nada se mantém por muito tempo e, pior, onde coisa alguma, inclusive e principalmente as relações humanas, almeja a durabilidade. Ser "líquido" é a opção desta nossa época. Ou seja, desta volta da velha espiral.

Apesar da oposição segurança x liberdade, que se projeta nos embates ideológicos e políticos, e nos conduz a renovados impasses; não obstante a liquidez da vida moderna, consubstanciada nos avanços científicos e traduzida nas facilicitações (tecnológicas) ilusórias do cotidiano; conquanto esses obstáculos da equação humana, o que ainda e sempre nos anima é a permanência nos elementos constitutivos da nossa espécie de uma segunda contradição: medo x ousadia.

É desse permanente tensionamento que derivaram, derivam e haverão de derivar outras, e sempre renovadas, tentativas de enfrentar o embate entre segurança x liberdade. O lance mais recente e duradouro nos foi dado por Marx-Engels, quando dissecaram e expuseram os termos das relações econômicas do homem social.

Por duvidarem de sua origem, ou por cautela, preferiram não incorporar o peso das contradições emocionais à sua (ainda assim) vitoriosa tese. Graças a essas mentes brilhantes, entendemos muito, hoje, de como as relações de exploração regulam a vida em sociedade e porque devemos combatê-las. Falta-nos dissecar e expor a gênese do medo. Para isso contamos com a ousadia.