O indivíduo que o mundo precisa

Modernos pensadores (*), como Nassib Nicholas Taleb The architecture of the world we inhabit/A arquitetura do mundo em que habitamos , não veem o futuro como resultado da aleatoriedade, de um lance de dados, do acaso, mas sim de uma ordem oculta moldada por distribuições de probabilidade, e enraizada na História.

Para Taleb, a própria aleatoriedade é epistêmica, ou seja, é uma manifestação cognitiva fundada no conhecimento e nos fios profundos e ininterruptos que nos conectam ao nosso passado. Essa compreensão sobre o que poderá estar lá na frente, isto é, o futuro, tem relação direta com a armadilha criada pelo conceito de livre arbítrio.

É preciso ficar sempre claro, para a preservação da sanidade geral das pessoas, que o chamado livre arbítrio (a dita "capacidade de decidirmos de acordo com nossa vontade") não passa de uma construção mental com implicações religiosas e morais, ao sabor das conveniências de cada época.

O livre arbítrio não é um dado da realidade. Não pode virar justificativa para penas ou castigos. O que explica as maldades do mundo, resultantes de nossas ações ou inações, não é o livre arbítrio, mas os fatores determinantes e as circunstâncias enfrentadas pelos indivíduos que cometem tais ações. 

Fatores determinantes são aqueles que independem da nossa vontade; fatores circunstanciais são os que se apresentam a cada instante da nossa existência, na interação tensionada com outro indivíduo e mergulhada nas variáveis incontroláveis do ambiente. Essas determinações e circunstâncias se entrelaçam para compor a chave que abre a porta do desvendamento existencial de todo e qualquer indivíduo (ou seja, seu modo de ser e agir)

As escolhas que exercemos em nosso cotidiano são apenas e tão somente opções feitas a partir de demandas imediatas, que, sim, resultam em ganhos às vezes significativos, ou em perdas eventualmente catastróficas, mas, insisto, não passam de preferências subordinadas à nossa herança genética, vivências pessoais e familiares, bem como às conjunturas ambientais, sociais, econômicas e políticas.

Ou seja, são escolhas determinadas por uma ordem oculta moldada por distribuições de probabilidade, e enraizada na História, como sugere Taleb, seguramente inspirado na ideia de Carl Jung sobre arquétipos e sincronicidade.

Isso tem amplas repercussões individuais e sociais, tanto no campo da aplicação de leis quanto na construção de dogmas religiosos, mas é assim que as coisas são. Não podemos simplificar as relações de causa e efeito, atribuindo ao efeito (ou seja, à consequência) um peso maior que o da própria causa. Ambos se equivalem, tanto na física quanto na ética.

A partir dos ganhos ou perdas decorrentes de nossas escolhas cotidianas (as quais confundimos com livre arbítrio, embora não passem de opções dualísticas, ou seja, subordinadas à urgência das circunstâncias), construímos a débil teoria de que estamos sempre no comando, possuímos o poder de decidir; e que isso se alicerçaria em fundamentos morais/religiosos sólidos, os quais, se corretamente exercidos, resultariam em reconhecimento aos nossos (bons e/ou bem feitos) atos.

Nada contra fazer o bem, ou fazer bem. Mas que não se espere qualquer fruto, qualquer benefício ou recompensa advindos desses atos. Fazer o bem (ou seja, atendermos às necessidades objetivas de outrem) e fazer bem (isto é, agirmos da melhor forma que nos for possível) não são questões morais ou religiosas. São questões de ordem ética. Dizem respeito a valores fundamentais da espécie humana que, por consequência, ao longo da construção desta nossa História deveriam ter estabelecido os paradigmas da vida em sociedade. 

Sim, deveriam, pois não é isto (o fazer o bem por princípio e o fazer bem conforme nosso potencial) o que acontece cotidianamente, como se constata.

Ou seja, os tais paradigmas éticos permanecem no campo da idealização, de um nunca alcançável vir a ser e, a pretexto de praticarmos o livre arbítrio (compreendido aqui no sentido de exercitarmos nossa vontade, ou 'nossa liberdade'), fazemos escolhas segundo conveniências pessoais e/ou de nossos grupos (familiar, social, nacional), sem vergonha de recorrer a justificativas de encomenda, exercitando uma moral de ocasião.

Uma pergunta se impõe: O que tudo isso tem a ver com a vida de cada um de nós, indivíduos pensantes deste privilegiado planeta? A resposta até outro dia foi complexa, reservada a uns poucos seres compelidos (pela tal ordem oculta) a pensar  e pensar, entre entre outras coisas, sobre as razões da existência humana.

Esses indivíduos foram chamados de sábios, filósofos, iluminados, eleitos, mas também de malditos, pecadores e subversores capazes de exercer má influência sobre seus contemporâneos. Suas proposições foram demonizadas, reprimidas, confinadas a pequenos grupos, ou simplesmente deturpadas por aqueles que pela força sempre detiveram o poder.

Quando tais ideias, a despeito de todos os obstáculos, se instalavam em parcelas da consciência pública de cada época, produzindo consequências sociais inesperadas (tais como a percepção de que o usufruto das benesses do mundo são um direito universal, princípio que inspira as formulações de Marx-Engels), logo eram (e foram) categorizadas como afrontas ao status quo.

A consequência sempre foi (e tem sido) a segregação daqueles que as aceitavam e disseminavam, qualificando-os como pertencentes a grupos de interesses excêntricos, capazes de ameaçar o falso e hipócrita equilíbrio vigente. E quem segregava, desqualificava, perseguia? Exatamente: aqueles que pela força sempre detiveram o poder.   

Hoje, graças a modernos pensadores, seres libertos de dogmas religiosos e ideológicos, é talvez possível esperar que as questões fundamentais da existência humana possam voltar a ser formuladas, com alguma chance de retomarmos (melhor seria dizer iniciarmos) a construção de um modelo de civilização factível.

Não que estejamos perto de desvendar os mistérios da existência, mas, com certeza, vislumbramos a possibilidade de que mais indivíduos se credenciem a fazer as perguntas que precisam e devem ser feitas. Perguntar é da essência do ser humano.

Essas reflexões não nos ajudam a pagar nossas contas, mas podem nos ajudar, à moda do super-homem de Friedrich Nietzsche, a construir os alicerces internos do indivíduo que o mundo precisa. 

(*) Modernos pensadores, para mim, são aqueles que, alinhados aos grandes sábios do passado, mantêm-se expostos e abertos ao frenesi científico tecnológico destes tempos a que denomino de a Era Quântica. Essa condição de 'modernidade' fluída precisa e deve ser realçada, porque a dinâmica existencial a que esses indivíduos estão submetidos, traduzida na fartura e amplitude de conhecimentos hoje disponíveis (e em processo acelerado de expansão), os transforma em personagens únicos na História deste planeta; seres capacitados (ou com potencial) a propor e determinar uma inflexão virtuosa em direção a um melhor futuro.