"Coisas do mundo, minha nêga"

O nó górdio deste nosso tempo — e de todos os tempos, se pensarmos retroativamente na história humana — está na aparente impossibilidade de conciliarmos imanência e transcendência. Ou, seja, de estabelecermos convivência dinâmica e frutífera entre a experiência concreta e a consciência abstrata.

Digo 'aparente impossibilidade' porque entendo estarmos, mais uma vez e sempre, diante exatamente disto: uma aparência, termo que se qualifica por sua condição de incompletude, disfarce, fingimento, apenas probabilidade.

Quer queiramos ou não acreditar — embora não se trate de uma questão de crença, mas de um dado concreto, real, mensurável, e portanto (que estranha ironia!) imanente —, o fato é que a 'impossibilidade' de conciliar imanência e transcendência só existe no âmago dos nossos medos primevos.

São esses medos fundadores da existência de nossa espécie aqueles que nos impõem as oposições corpo-alma, matéria-espírito, chão-espaço e até, pasmem!, Terra-Cosmos.

Entendo o caráter utilitário dessa prática existencial. Percebo que a partir dela, como resultando de arranjos mentais convenientes, formulamos a existência de deuses e religiões. [Convenientes, sim!, porque desses arranjos o que resultou foi a repartição do que era e sempre foi uma só coisa.] Só não admito a ideia de que tal 'impossibilidade' seja irremovível.

E não admito por questões essencialmente práticas, ou seja (quanta ironia!), imanentes. Afirmo sem mais delongas: nossa espécie não sobreviverá aos cataclismos climáticos, sanitários, psicopatológicos, sociais, nucleares que se aproximam (celeremente!), sem que em primeiríssimo lugar restauremos aquilo que nunca deveria ter sido separado, ainda que em ideia e conveniência: o uno.

Sem querer inverter a falsa equação, não me refiro aqui a uma pretensa predominância do transcendente sobre o imanente. Não! Refiro-me ao fato, a cada dia mais claro e inequívoco, de que nossa vida terrena, cotidiana, mundana e material, não se contrapõe à nossa presença cósmica, eterna, misteriosa e transcendente.

'Estabelecermos convivência dinâmica e frutífera entre a experiência concreta e a consciência abstrata' é o desafio que se impõe a este momento da História. É verdade que sempre foi assim, pois nunca estivemos essencialmente repartidos, apesar desses milênios de esquizofrênica existência. Sempre foi assim, mas agora está diferente.

E está diferente porque agora, neste exato instante da aventura humana, podemos admitir que em consequência de tantos repetidos erros e sofrimentos (imanentes), frente a tantas frustradas esperanças e quimeras (transcendentes); e graças às competências cognitivas desenvolvidas a partir e por causa desses fracassos físicos e mentais, podemos admitir e finalmente pôr em prática a compreensão de que somos cada um e igualmente partes do Todo.

Não nos desesperemos. O usufruto das benesses terrenas nos está garantido, certamente sem o egoísmo que tem predominado até hoje. Bem como nos está reservada alguma cota de sofrimento, este, porém, sem o peso da culpa. Uns e outros, como disse Paulinho da Viola, são e serão "coisas do mundo".

No mato sem cachorro

Sim, prezadas(os) leitoras e leitores, a sopa de diluição a que me referi na postagem anterior não se limita ao mundo das artes. Ela está em todos os cantos e esferas. É muito maior, mais ampla e radical do que a geleia geral apontada por Torquato/Gil em 1968. [Grande Torquato Neto, o Cosmos o tem!]

O planeta está liquefeito (à moda de Zygmunt Bauman), diluído (à moda dos liquidificadores), submetido (à moda das ditaduras) ao deus tecnologia, aquele, este, que retira dos humanos a nossa construtora insegurança. A que, santa ironia!, nos trouxe até aqui.

Pensamos agora possuir poderes ilimitados. Com nossos smartphones no bolso de trás ou da frente das calças, nas bolsas ou nas mãos elegantes das mulheres, desfilamos por aí, marchando mal-ajambrados feito tropas de SSs sem líderes, e no entanto manipuladas por algoritmos oniscientes.

Fomos reduzidos a ativos informacionais enquanto coletivos, geradores de dados que só possuem valor em seu conjunto; individualmente não somos nada. Até (ou talvez principalmente!) os nossos medos, fraquezas e ignorância são e estão monetizados.

Aqueles poucos que ainda se rebelam são, no mínimo, paulatinamente cooptados. Isto quanto aos renitentes, porque os outros, a maioria, logo se verga, abrigando-se sob uma justificativa moral de ocasião.

Sobre o século XX, Julio Sosa disse: Que el mundo fue y será una porquería, ya lo sé. A respeito deste XXI, não sei mais o que dizer, além do que decretou Umberto Eco em 2015: "O idiota da aldeia foi promovido a portador da verdade".

Minhas amigas e meus amigos, estamos no mato sem cachorro. 

Nesta sopa de diluição

Ontem conversei longamente com meu dileto amigo Amaury Araújo, o Xará, que mora no Rio de Janeiro, e dentre os assuntos de sempre acabamos (re)falando sobre a pobreza cultural destes dias "cinza chocolate".

Hoje, ao ingressar no YouTube, deparei-me com uma entrevista de Arrigo Barnabé ao Luiz Thunderbird. O paranaense Barnabé foi um dos grandes produtores artísticos, a partir do Brasil, especialmente nos anos 1970, 80 e 90, utilizando-se da música como plataforma; assim como também o foi o paulista Thunderbird, um sujeito que transformou a inquietude em arte. Esse encontro, portanto, só poderia ser "sen-sa-ci-o-nal", como diz Thunder  veja aqui.

Mas este texto não se destina a louvar esses dois personagens, particularmente, embora ambos sejam dignos disso. Minha intenção, após ter tomado uma deliciosa sopa de inverno ao lado de meu filho e de minha companheira, é primeiramente lembrar que não há coincidências sobre a casca deste planeta. O aparecimento das figuras de Arrigo Barnabé e Luiz Thunderbird na tela do meu computador, após um boa sopa, meio que se integra à conversa com o amigo Xará.

E a pergunta que faço é simples: Onde está a arte neste nosso tempo?

Outro mestre e amigo dileto, Cid Marcus Braga Vasques, recém falecido, chamou minha atenção, no início dos anos 1970, para a onda de diluição que se alevantava no mundo da cultura. Por ele fui apresentado à classificação poundiana (de Ezra Pound), a dos inventores, mestres e diluidores, pois Cid, já àquela época, não enxergava mais muitos mestre na praça; menos ainda inventores. Só um exército de diluidores despontando no horizonte, vindo em nossa direção.

É claro que, conforme lembrava o próprio Pound, ninguém é sempre inventor ou mestre na vida, e também muitas vezes é diluidor. O que se constatava, porém, era um processo de rarefação de inventores, e até mestres, no universo das artes.

Se tivéssemos prestado atenção  talvez fosse a isso que Cid se referia; nunca lhe questionei a respeito —, é provável que, já naqueles primórdios dos 1970, tivéssemos compreendido o que estava por vir, e que afinal veio e está aí.

Não há mais invenção.

Não temos sequer maestria.

Esperamos "por Godot", como nos contou Samuel Beckett, um inventor, nos idos de 1952. Enquanto tal ser ou coisa não chega, vivemos uma era quântica, mergulhados nesta sopa de diluição. 

O falso paradoxo do livre arbítrio

Os pensadores têm assegurado que, por várias razões, subjetivas e objetivas, o livre arbítrio não existe. De forma lógica, esses sábios têm demonstrado que nossas atitudes decorrerem essencialmente do que somos, e não do que queremos. Ou, como disse Arthur Schopenhauer (1788-1860), "o homem é livre para fazer o que quer, mas não é livre para querer o que quer". Isto é: vivemos sob o império do determinismo.

Essa questão não é trivial, como a maioria pode pensar  ela está presente em cada um dos nossos atos; em todos os nossos atos, para dizer melhor. Na vida pública, a ideia de que inexiste o livre arbítrio conflita nada menos do que com a ética e a moral, produzindo um abalo sísmico quando se trata de pensar as relações entre direitos e deveres.

Uma pergunta que se impõe, por exemplo, é: ao cometer um crime, o indivíduo é agente ativo, ou passivo? Entendo que esse paradoxo é apenas aparente.

É, sim, verdade, que somos resultado de uma conjunção de fatores cósmicos, genéticos, químicos, familiares, geográficos, climáticos, econômicos, etc. etc. e, portanto, nossas ações são determinadas pela interação dinâmica dessas variáveis. Mas também é verdade que aquilo que nos distingue como espécie é a nossa capacidade de pensar; o uso e o desenvolvimento da cognição.

Dentre os conhecimentos que temos elaborado ao longo de milênios, particularmente nos últimos dez mil anos, estão justamente os conjuntos de regras (ética), princípios e valores (moral) que regem e sustentam a vida em sociedade. Essas regras e valores (e seus aperfeiçoamentos ao longo do tempo) constituem o alicerce dos códigos e regulamentos que balizam as relações entre pessoas, grupos sociais e nações. São aquilo que nos distingue do puro instinto animal.

Se não somos livres para querermos o que queremos, como parece ter demonstrado Schopenhauer, somos, no entanto, perfeitamente capazes de refletir, a cada instante, sobre o que queremos fazer. E, assim sendo, o determinismo que rege a ausência de livre arbítrio não nos está dado como um álibi, uma justificativa conveniente a nos isentar ou atenuar as responsabilidades pelos nossos maus atos. Ainda mais na altura deste nosso 'campeonato' civilizacional.

Não existe paradoxo quanto à inexistência de livre arbítrio, frente às escolhas que fazemos e aos atos que praticamos, à luz do determinismo. Se este, o determinismo, nos constitui, a cognição nos molda e capacita a agir não como seres programados e previsíveis, mas como indivíduos dotados de meios éticos e morais para fazer escolhas. A cognição nos proporcionou essas ferramentas.

Nesse sentido, livre arbítrio é apenas uma maneira de admitir que todo ser humano, em última instância, é responsável por seus atos porque vive em sociedade, a qual possui regras e valores. Ou seja, o livre arbítrio não existe como uma prerrogativa da espécie. Não nos foi concedido, nem conquistado. E também não nos exime de nada. 

[Leia também Inútil mistério.]